sábado, 19 de junho de 2004

A angeologia em S. Tomás de Aquino

Há poucos temas mais incompreendidos em teologia do que os temas angeológicos.
Quantas pessoas ainda hoje sabem o que é um anjo?

A pergunta fará rir muita gente, sobretudo os não crentes, mas o que é mesmo grave é que a pergunta faça rir um crente.

Nos tempos que correm, as entidades angélicas são vistas como alegorias ou como fantasia e folclore religioso por muitas pessoas que se dizem católicas. Alguns não crentes, sempre que ouvem falar em anjos, apressam-se a emitir umas sonoras gargalhadas, aproveitando para discorrer sobre a eterna questão da "superstição", num esforço desesperado para transmutar a religião num emaranhado de patranhas feitas por e para ignorantes.

Ora bastava, como sempre, recorrer a quem sabe destas coisas. Sim, voltamos de novo a S. Tomás de Aquino, e à sua sempre útil Summa Theologica. A secção da obra que lida com a angeologia é muito extensa, pelo que me restringirei a uma pequena parte desta secção, mais concretamente à quaestio disputata sobre a substância dos anjos.

A questio disputata, já agora, consiste no método dialético usado por S. Tomás para expor as suas teses. Existe primeiro uma questão que é lançada à discussão, neste caso a questão é a "Utrum angelus sit omnino incorporeus", ou seja, "se um anjo é incorpóreo como um todo". Aquino conclui que o é.

Seguindo a clássica estrutura da quaestio disputata, S. Tomás apresenta, após a quaestio, algumas objecções, ou seja, argumentos contra a incorporeidade dos anjos como um todo. Posteriormente, vem a "sed contra", ou seja, um argumento a favor da verdade da quaestio, e por isso contra as objecções levantadas. S. Tomás conclui com a sua posição acerca do assunto, tendo considerado tanto as objecções como os argumentos abonatórios, e finaliza com respostas directas às objecções.

Em latim:
Utrum angelus sit omnino incorporeus

Tradução em inglês:
Whether an angel is altogether incorporeal

Vejamos de perto a conclusão desta quaestio, visto que é uma boa ocasião para ver como a teologia católica concebe a substância dos anjos.

"Respondeo dicendum quod necesse est ponere aliquas creaturas incorporeas. Id enim quod praecipue in rebus creatis Deus intendit, est bonum quod consistit in assimilatione ad Deum. Perfecta autem assimilatio effectus ad causam attenditur, quando effectus imitatur causam secundum illud per quod causa producit effectum; sicut calidum facit calidum. Deus autem creaturam producit per intellectum et voluntatem, ut supra ostensum est. Unde ad perfectionem universi requiritur quod sint aliquae creaturae intellectuales. Intelligere autem non potest esse actus corporis, nec alicuius virtutis corporeae: quia omne corpus determinatur ad hic et nunc. Unde necesse est ponere, ad hoc quod universum sit perfectum, quod sit aliqua incorporea creatura.
Antiqui autem, ignorantes vim intelligendi, et non distinguentes inter sensum et intellectum, nihil esse existimaverunt in mundo, nisi quod sensu et imaginatione apprehendi potest. Et quia sub imaginatione non cadit nisi corpus, existimaverunt quod nullum ens esset nisi corpus, ut Philosophus dicit in IV Physic. Et ex his processit sadducaeorum error, dicentium non esse spiritum. Sed hoc ipsum quod intellectus est altior sensu, rationabiliter ostendit esse aliquas res incorporeas, a solo intellectu comprehensibiles."
- Summae Theologiae, Angelici Doctoris Sancti Thomae Aquinatis, Prima Pars, Quaestio L, Articulus 1, «Utrum angelus sit omnino incorporeus»

Sintetizando, S. Tomás diz que têm que existir algumas criaturas que sejam incorpóreas ("quod necesse est ponere aliquas creaturas incorporeas"), pelo facto de que o desejo principal de Deus para as suas criaturas é o bem, e que esse bem consiste na assimilação das criaturas ao Criador ("est bonum quod consistit in assimilatione ad Deum"). Ora a perfeita assimilação ocorre quando o efeito mimetiza a causa que o produziu, pelo que se Deus criou as criaturas pelo seu Intelecto e Vontade, as criaturas mais perfeitas são aquelas que possuirem de forma mais pura uma essência intelectual. A perfeição do Universo requer a existência de criaturas intelectuais ("Unde ad perfectionem universi requiritur quod sint aliquae creaturae intellectuales"). Usando o argumento de que a inteligência não pode vir da acção de um corpo ou de uma faculdade corpórea, porque cada corpo está limitado ao tempo e ao espaço, a perfeição do Universo também requer a existência de criaturas incorpóreas ("Unde necesse est ponere, ad hoc quod universum sit perfectum, quod sit aliqua incorporea creatura").

S. Tomás termina dizendo que alguns pensadores antigos se enganaram ao afirmar que nada existia senão aquilo que podia ser conhecido pelos sentidos e pela imaginação. Ou seja, S. Tomás diz que os empiristas estavam enganados. Termina o seu raciocínio com esta brilhante conclusão:

"Sed hoc ipsum quod intellectus est altior sensu, rationabiliter ostendit esse aliquas res incorporeas, a solo intellectu comprehensibiles."

Ou seja, pelo facto de que o intelecto está acima dos sentidos, é razoável afirmar que há coisas incorpóreas, portanto não apreensíveis empiricamente, e que apenas são apreensíveis pelo intelecto.

Por isso, o domínio angélico é o domínio das "coisas" do intelecto, que são, no fundo, criaturas também, mas incorpóreas. Por outras palavras, o domínio angélico é o domínio "subtil" que separa as criaturas corpóreas do Criador. Acima do estado de corporeidade terá que existir necessariamente um ou mais estados intermédios, onde existam criaturas hierarquica e progressivamente mais "intelectuais" e incorpóreas, que, de certa forma, façam a ponte entre o Homem, que reina sobre as criaturas corpóreas, e o Deus Criador transcendente.

O Homem faz, então, a fronteira entre o corpóreo e o intelectual. O Homem é a única criatura que, sendo ainda corpórea, já possui um intelecto.

Aposto que se muitos soubessem que o domínio angélico era, de certa forma, equiparável ao "mundo das ideias", não seriam tão precipitados nas críticas e na chacota fácil ao fascinante domínio da angeologia.

Bernardo

1 comentário:

Anónimo disse...

Sr.Bernardo Mota:

Como disse e muito bem,os católicos desconhecem muita coisa.
A Bíblia Sagrada foi proíbida durante milhares de anos.
Mas quem conhece a Palavra de Deus,sabe que a "anjeologia" é doutrina de demónios.
Chamo-me:
Maria Helena
Obs:só consegui postar o comentário como anónimo.
mhtafc@gmail.com