quarta-feira, 30 de junho de 2004

Vergonhosa decisão...

... do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
Leia-se a notícia no Público.

Esta notícia é verdadeiramente surpreendente:

"O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos entende que não existe qualquer violação da liberdade religiosa na interdição do uso do véu islâmico nas escolas e universidades."

Diz o tribunal que:

"a liberdade de manifestar a religião pode ser restringida a fim de preservar os valores democráticos e os princípios invioláveis da liberdade de religião e da igualdade dos cidadãos perante a lei"

Será que ninguém se dá conta do anacronismo? "a liberdade pode ser restringida", diz o tribunal... Ou seja, já não é bem uma liberdade. Como todas as novas "liberdades" que se aplicam aos crentes, trata-se de uma pseudo-liberdade. Querem eles "preservar valores" e "princípios"!

Que "valores"? Até dá vontade de rir. Nunca houve tanta falta de valores e princípios como nos tempos que correm, onde a pulsão niilista acomete com todas as suas forças para destruir a verdadeira espiritualidade onde quer que esta se manifeste. Qual é o mal com o uso dos véus? Ofende quem não usa?

Repare-se no outro lado da questão, o da aluna islâmica que quer usar o véu...
Então se uma estudante islâmica quer usar, por pudor, o seu véu, ela tem que aturar a falta de pudor dos outros. Até aqui tudo bem, porque foi ela quem escolheu estudar numa escola ocidental. Mas porque raio ficariam ofendidas ou "pressionadas" as restantes alunas?

"o tribunal não perdeu de vista que existem movimentos políticos extremistas, na Turquia, que procuram impor a toda a sociedade os seus símbolos religiosos e a sua concepção de sociedade baseada em princípios religiosos"

De que "movimentos políticos extremistas" falam eles? Do Islão? Desde quando é que ser islâmico, e querer viver a sua vida de acordo com as crenças islâmicas, é fazer parte de "movimentos políticos extremistas"? Estes senhores, com esta decisão infame e injusta, não estão a combater o que eles chamam eufemisticamente de "movimentos políticos extremistas". Estão sim a combater a religião, mais concretamente e neste caso o Islão. Pulsão niilista anti-religiosa, é o que isto é.

"As escolas podem tomar medidas para prevenir que certos movimentos religiosos fundamentalistas pressionem os estudantes que não praticam a fé da mesma forma e os que não têm a mesma fé"

Mas de que pressão falam eles, meu Deus?
Se uma criança levar um crucifixo ao peito para a escola, estará a "pressionar" os restantes alunos?

Que o Governo francês é pateta, isso não admira e é do conhecimento geral. A forma como conduziram toda esta questão do véu, a troco de um forçado e abusivo "laicismo" foi desastrosa e ficará na memória como um momento negro da pseudo-democracia francesa.

Agora, que seja o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos a ditar semelhante sentença, parece-me particularmente grave.
A patetice e o gosto pelo saloio tomaram de assalto as instituições a nível europeu. Como pode qualquer pessoa confiar o que quer que seja a este tribunal quando ele falha tão cabalmente, e numa questão tão elementar de justiça como esta?

De acordo com a mais elementar liberdade, toda e qualquer mulher islâmica deve poder usar o véu que quiser, como quiser, e onde quiser. Tudo o resto é conversa.

Afinal, para quê tudo isto? Para travar o Islão. Não para travar o terrorismo ou o fanatismo (usar o véu nada tem de fanático, é um preceito normal e natural do Islão), mas sim para travar a religião. Dizem eles que é tudo em nome de uma "separação entre religião e estado", mas ninguém está a discutir poderes, mas sim a discutir a liberdade das mulheres islâmicas poderem trajar o véu, que é parte do seu vestuário tradicional, quando frequentam uma escola ocidental.

Tudo isto é muito triste e medíocre.

Bernardo

Pseudo-intelectualidade serôdia...

... é o que se pode encontrar neste artigo do "Diário de uns Ateus", da autoria do nosso arqui-inimigo André Esteves.

Bem sei que estes senhores não podem representar o pensamento ateu, mas nem tão-pouco o pensamento ateu português! Porquê? Porque estes senhores não sabem (nem sentem) bem o que é isso de nacionalismo.

Para eles, rima com "fascismo" e com "patriotismo".
É este um dos grandes perigos de alienação intelectual do ateísmo. É que, na sua voragem "uniformizadora", cujo objectivo máximo é ateizar todo o Universo (Deus incluído), estes senhores não vêem interesse algum em posturas nacionalistas.

Por isso, vêm para a blogosfera criticar aqueles pobres medíocres coitados que andam pelas ruas a festejar as vitórias futebolísticas do Euro 2004. Que triste exemplo nos dão estes senhores armados em intelectuais e (bem pior) defensores da intelectualidade.

Por isso, nas noites de vitória de Portugal, ficam em casa a ler autores ateus, a escrever para blogues ateus, a trocar mails com OUTROS ateus, enfim, numa doentia e medíocre embriaguez ateia.

Pois sim: eu estive na rua a festejar TODAS as vitórias de Portugal. E berrei, e saltei, e corri, e festejei, e tudo o que convém e é salutar a qualquer português que se preze. Porque, caros senhores do "Diário", esses jogadores de futebol (oh, tão intelectualmente incapazes que eles são) defendem bem melhor o País do que vossas excelências. Mas enfim, para quem não vê o interesse neste tipo de coisas "patrióticas" (palavra que para eles ainda cheira a Salazar), todo este discurso é escusado.

Meus caros ateus "uniformizadores", para já, nem todos os ateus pensam como vocês (graças a Deus!). Há por aí ateus patriotas, que eu sei. Conheço alguns, bons.
Mas já se sabe que o perigo da postura ateia está na ausência total de princípios metafísicos. Esta ausência total cria um vácuo intelectual, e é preciso uma mente mais exercitada para conseguir ocupar eficientemente este vácuo. Estes senhores, que no seu preconceito aglutinam conceitos como Deus e Pátria, julgam que ao negar o primeiro, têm que recusar o segundo. E por isso ficam em casa.

Obviamente que me preocupo com as desgraças políticas que se abateram sobre o nosso país. Obviamente que condeno fortemente os últimos tristes acontecimentos provocados pelo nosso (des)Governo. Sinto uma profunda vergonha pelos políticos que servem o nosso país.

Mas sinto um profundo orgulho na nossa selecção.
O erro seria dizer que Portugal está bem graças ao futebol!
Portugal não está bem, está MAL. Muito MAL.
Mas, no futebol, está muito bem, e de parabéns!
Este país investiu muito esforço pessoal e institucional no Euro 2004. Eu sempre fui contra esta opção de investimento, porque sempre achei e acho que era um erro de prioridades. Mas agora que já se investiu, não querer tirar o máximo do Euro 2004 a todos os níveis é não ter consciência patriótica.

Triste seria ter que dizer:
"Só eu sei porque não fico em casa"

Mas, graças a Deus, não tenho que dizer tal frase, porque 10 milhões de portugueses, quando saem à rua a festejar, sabem bem porque é que não ficam em casa.

Desculpem-me o tom ligeiramente demagógico deste texto, mas achei importante partilhar a minha viva e decidida repulsa por este tipo de posturas tristes, serôdias, e pseudo-intelectuais.
Para terminar, um recado para alguns dos comentadores do artigo que referi: para ser "intelectual" à vossa maneira, não basta recusar Deus! Já agora, para ser intelectual, ajuda ter alguma cultura e (porque não?) escrever bem em português e sem erros ortográficos e gramaticais!

Bernardo

segunda-feira, 28 de junho de 2004

Constituição do novo governo

Apesar do assunto ser sério, não resisto a partilhar o mail que me acabaram de enviar, cujo autor desconheço... Está genial...

Segundo o hebdomadário de S. Bento da Porta Aberta, o governo poderá ter a seguinte composição:
Primeiro-ministro: Santana Lopes
Ministra dos Negócios Estrangeiros: Cinha Jardim
Ministra da Economia e Finanças: Lili Caneças
Ministro da Educação, da Cultura, da Ciência e das Universidades: Alberto João Jardim
Ministro da Administração Interna: Valentim Loureiro
Ministro da Justiça: Ferreira Torres
Ministro das Oposições com direito a uma coluna diária na 3ª série do Diário da República: Pacheco Pereira
Ministro das Pescas e do Ambiente: Vasco Graça Moura
Ministro da Defesa e Propaganda Nacional: Luís Filipe Scolari
Ministro das comunidades urbanas e das aldeias: Luís Filipe Meneses
Ministro das privatizações e das empresas públicas: Zézé Beleza


Com uma equipa destas, de certeza que nunca mais haveria tédio na Assembleia da República...

Bernardo

Mas também foi péssima...

... com o triste episódio da "fuga" de Durão Barroso para a "Europa" (como dizem tristemente alguns jornalistas, como se Portugal não pertencesse à Europa)...

Mais triste do que o caos político em que este país já se encontrava antes de tudo isto, é a probabilidade cada vez maior de termos, como futuro primeiro ministro, Pedro Santana Lopes. Bem sei que, depois dos E.U.A., já está a ficar na moda apostar numa liderança baseada na incapacidade e na inaptidão, mas com os males dos outros podemos nós bem!

Pensem lá bem... Pedro Santana Lopes? Alguém tem a noção do que isso é?

Só me resta mesmo é rezar... Pelo futebol, pelos vistos, já não tanto... Mas pelo país...

Bernardo

A semana passada foi óptima...

... com os golos de Postiga, Rui Costa, e sobretudo do grande Ricardo!!

VIVA PORTUGAL!!

quinta-feira, 24 de junho de 2004

Pobre apóstolo João...

Pois é... Nos dias que correm, nem mesmo os apóstolos que morreram há 2.000 anos estão a salvo do disparate...

Tenho estado envolvido nalguns comentários no blogue Afixe em torno da questão da pretensa "Maria Madalena" que agora, vários séculos depois, toda a gente consegue ver com tanta clareza no quadro da última ceia de Leonardo da Vinci.


Fresco pintado na parede do refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão



É um notável caso de milagre ocular! Durante séculos NINGUÉM viu à direita de Cristo outro senão o apóstolo S. João. Pois agora, em pleno século XXI, a deterioração que está a carcomer o mural de Leonardo, pelos vistos, parece estar a ajudar à nitidez! Nunca como agora tantas pessoas conseguem, de facto, ver no lugar de João, a figura feminina de Maria Madalena! É impressionante!

Claro que, nas ondas da paranóia "brownesca" e no rescaldo da pseudo-novidade do romance-lixo de Dan Brown "O Código Da Vinci", tudo agora parece "encaixar" como um puzzle.

Contudo, a estes novos "teóricos da tela" deve parecer "conspiratória" a opinião unânime dos peritos de arte dos últimos séculos, que insistem que S. João sempre foi pintado com traços efeminados, e que isso sempre foi prática comum entre os pintores. A eles, adeptos vorazes das teses "brownescas", pouco interessa saber as razões para esta característica de S. João. Razões essas que, escapando-lhes completamente, permitiriam compreender a verdade dos factos.

Ora sucede que S. João, como apóstolo, é o pólo oposto de S. Pedro.
S. Pedro é a "pedra":

"tu es Petrus et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam " - Mateus 16, 18.

S. Pedro é força impetuosa, impulsiva, e extrovertida. É sobretudo uma força firme (veja-se o simbolismo da "pedra"), mas "exterior".
Por outro lado, S. João é o apostolo discreto, que na sua quietude melhor guarda os "segredos" de Cristo. É o fiel depositário da doutrina. É também firme, mas "interior". Recordemos que, conforme os textos evangélicos, era ele o apóstolo que Jesus mais amava. Isto explica a supremacia do lado interior face ao lado exterior.

S. João está "acima" de S. Pedro, porque está mais próximo do Mestre. Na escolha dos seus apóstolos, Jesus começou pela "pedra firme" que é Pedro, sobre a qual começou a construir a sua Igreja. E terminou na escolha do apóstolo João, que era quem Ele mais amava, e quem Lhe era mais próximo.

Tradicionalmente falando, é a dicotomia entre o "exoterismo" de Pedro e o "esoterismo" de João. Entre o carácter impulsivo e expansivo da "força exterior" e a quietude e discrição da "força interior". Por isso, é S. Pedro representado como um homem forte e destemido, e S. João como um homem físicamente mais débil, porque a sua força não está no "exterior" mas sim no "interior".

S. Pedro tem que ser exteriormente "forte" em virtude do seu papel.
S. João tem que ser interiormente "forte" em virtude do seu papel.

O uso, no meio artístico renascentista, de traços menos viris para S. João apenas demonstra claramente um conhecimento por parte dos pintores da dicotomia entre estes dois apóstolos.

Colocar uma Maria Madalena à mesa da Última Ceia nem seria errado, porque é razoável supor que Maria Madalena acompanhava o Mestre para todo o lado. Mas há dois erros graves e crassos:

1. Colocá-la ao lado de Cristo, e no Seu lado direito, quando é certo e sabido que à direita se senta a pessoa mais importante a seguir a quem preside, e essa pessoa só podia ser o apóstolo João, que era aquele que Jesus mais amava;

2. E pior, fazer desaparecer S. João da mesa! Onde foi ele parar, caros adeptos de Dan Brown?

Para os novo-"teóricos" do "sagrado feminino", colocar Maria Madalena ao lado de Jesus seria uma forma evidente de realçar a importância dela como mulher-chave no plano salvífico de Cristo. Mas esquecem-se que é irrazoável, com tal substituição, fazer desaparecer o apóstolo mais amado!

Além de tudo isto, colocar Maria Madalena (que é todavia Santa e de direito), num papel chave na Redenção é menosprezar quem tem, de facto e plenamente, o direito a esse papel: Maria, Mãe de Deus e Co-Redentora.

Bernardo

sábado, 19 de junho de 2004

A angeologia em S. Tomás de Aquino

Há poucos temas mais incompreendidos em teologia do que os temas angeológicos.
Quantas pessoas ainda hoje sabem o que é um anjo?

A pergunta fará rir muita gente, sobretudo os não crentes, mas o que é mesmo grave é que a pergunta faça rir um crente.

Nos tempos que correm, as entidades angélicas são vistas como alegorias ou como fantasia e folclore religioso por muitas pessoas que se dizem católicas. Alguns não crentes, sempre que ouvem falar em anjos, apressam-se a emitir umas sonoras gargalhadas, aproveitando para discorrer sobre a eterna questão da "superstição", num esforço desesperado para transmutar a religião num emaranhado de patranhas feitas por e para ignorantes.

Ora bastava, como sempre, recorrer a quem sabe destas coisas. Sim, voltamos de novo a S. Tomás de Aquino, e à sua sempre útil Summa Theologica. A secção da obra que lida com a angeologia é muito extensa, pelo que me restringirei a uma pequena parte desta secção, mais concretamente à quaestio disputata sobre a substância dos anjos.

A questio disputata, já agora, consiste no método dialético usado por S. Tomás para expor as suas teses. Existe primeiro uma questão que é lançada à discussão, neste caso a questão é a "Utrum angelus sit omnino incorporeus", ou seja, "se um anjo é incorpóreo como um todo". Aquino conclui que o é.

Seguindo a clássica estrutura da quaestio disputata, S. Tomás apresenta, após a quaestio, algumas objecções, ou seja, argumentos contra a incorporeidade dos anjos como um todo. Posteriormente, vem a "sed contra", ou seja, um argumento a favor da verdade da quaestio, e por isso contra as objecções levantadas. S. Tomás conclui com a sua posição acerca do assunto, tendo considerado tanto as objecções como os argumentos abonatórios, e finaliza com respostas directas às objecções.

Em latim:
Utrum angelus sit omnino incorporeus

Tradução em inglês:
Whether an angel is altogether incorporeal

Vejamos de perto a conclusão desta quaestio, visto que é uma boa ocasião para ver como a teologia católica concebe a substância dos anjos.

"Respondeo dicendum quod necesse est ponere aliquas creaturas incorporeas. Id enim quod praecipue in rebus creatis Deus intendit, est bonum quod consistit in assimilatione ad Deum. Perfecta autem assimilatio effectus ad causam attenditur, quando effectus imitatur causam secundum illud per quod causa producit effectum; sicut calidum facit calidum. Deus autem creaturam producit per intellectum et voluntatem, ut supra ostensum est. Unde ad perfectionem universi requiritur quod sint aliquae creaturae intellectuales. Intelligere autem non potest esse actus corporis, nec alicuius virtutis corporeae: quia omne corpus determinatur ad hic et nunc. Unde necesse est ponere, ad hoc quod universum sit perfectum, quod sit aliqua incorporea creatura.
Antiqui autem, ignorantes vim intelligendi, et non distinguentes inter sensum et intellectum, nihil esse existimaverunt in mundo, nisi quod sensu et imaginatione apprehendi potest. Et quia sub imaginatione non cadit nisi corpus, existimaverunt quod nullum ens esset nisi corpus, ut Philosophus dicit in IV Physic. Et ex his processit sadducaeorum error, dicentium non esse spiritum. Sed hoc ipsum quod intellectus est altior sensu, rationabiliter ostendit esse aliquas res incorporeas, a solo intellectu comprehensibiles."
- Summae Theologiae, Angelici Doctoris Sancti Thomae Aquinatis, Prima Pars, Quaestio L, Articulus 1, «Utrum angelus sit omnino incorporeus»

Sintetizando, S. Tomás diz que têm que existir algumas criaturas que sejam incorpóreas ("quod necesse est ponere aliquas creaturas incorporeas"), pelo facto de que o desejo principal de Deus para as suas criaturas é o bem, e que esse bem consiste na assimilação das criaturas ao Criador ("est bonum quod consistit in assimilatione ad Deum"). Ora a perfeita assimilação ocorre quando o efeito mimetiza a causa que o produziu, pelo que se Deus criou as criaturas pelo seu Intelecto e Vontade, as criaturas mais perfeitas são aquelas que possuirem de forma mais pura uma essência intelectual. A perfeição do Universo requer a existência de criaturas intelectuais ("Unde ad perfectionem universi requiritur quod sint aliquae creaturae intellectuales"). Usando o argumento de que a inteligência não pode vir da acção de um corpo ou de uma faculdade corpórea, porque cada corpo está limitado ao tempo e ao espaço, a perfeição do Universo também requer a existência de criaturas incorpóreas ("Unde necesse est ponere, ad hoc quod universum sit perfectum, quod sit aliqua incorporea creatura").

S. Tomás termina dizendo que alguns pensadores antigos se enganaram ao afirmar que nada existia senão aquilo que podia ser conhecido pelos sentidos e pela imaginação. Ou seja, S. Tomás diz que os empiristas estavam enganados. Termina o seu raciocínio com esta brilhante conclusão:

"Sed hoc ipsum quod intellectus est altior sensu, rationabiliter ostendit esse aliquas res incorporeas, a solo intellectu comprehensibiles."

Ou seja, pelo facto de que o intelecto está acima dos sentidos, é razoável afirmar que há coisas incorpóreas, portanto não apreensíveis empiricamente, e que apenas são apreensíveis pelo intelecto.

Por isso, o domínio angélico é o domínio das "coisas" do intelecto, que são, no fundo, criaturas também, mas incorpóreas. Por outras palavras, o domínio angélico é o domínio "subtil" que separa as criaturas corpóreas do Criador. Acima do estado de corporeidade terá que existir necessariamente um ou mais estados intermédios, onde existam criaturas hierarquica e progressivamente mais "intelectuais" e incorpóreas, que, de certa forma, façam a ponte entre o Homem, que reina sobre as criaturas corpóreas, e o Deus Criador transcendente.

O Homem faz, então, a fronteira entre o corpóreo e o intelectual. O Homem é a única criatura que, sendo ainda corpórea, já possui um intelecto.

Aposto que se muitos soubessem que o domínio angélico era, de certa forma, equiparável ao "mundo das ideias", não seriam tão precipitados nas críticas e na chacota fácil ao fascinante domínio da angeologia.

Bernardo

sexta-feira, 18 de junho de 2004

Karl Popper e a problemática da irrefutabilidade

Antes de mais, as minhas desculpas por tão longo silêncio, mas não tem sido fácil arranjar algum tempo para escrever, o que me faz pena, porque vejo que muitos visitantes passam por cá, para sairem logo imediatamente ao verificarem que o artigo é o mesmo das últimas duas semanas.

Prometo fazer um esforço para não abandonar o posto!

Em virtude de uma polémica cativante em torno de S. Tomás de Aquino e Aristóteles, que tem tomado forma no site "Diário de uns Ateus", trago hoje de novo um tema filosófico. É de grande importância e utilidade este tema, porque contém conceitos-chave essenciais para que o diálogo entre crentes e não crentes não seja um diálogo de surdos.

O Ricardo Pinho e o João Vasco têm frequentemente insistido no facto de que S. Tomás, com a sua Summa Theologica, não conseguiu provar a existência de Deus. A questão é, a meu ver, demasiado complexa para que se salte para conclusões tão precipitadas antes de uma correcta análise do problema. Para mais, temo que seja um problema de uma complexidade teórica bem para lá das nossas (minhas, do Ricardo e do João Vasco) capacidades intelectuais. Mas vamos tentar...

Antes de mergulhar no texto da Summa para melhor entendermos os argumentos de S. Tomás e a essência dos mesmos, o que terá que suceder noutro artigo, vamos fazer uma breve mas fundamental passagem por Karl Raimund Popper (1902-1994), e pela sua obra-prima "Conjecturas e Refutações", que teve recentemente honras de nova e cuidada edição por parte da Almedina.

A dada altura, no capítulo "Acerca do Estatuto da Ciência e da Metafísica", diz Popper:

"Para evitar, desde o início, o perigo de nos perdernmos em generalidades, talvez seja bom explicar desde já, com o auxílio de cinco exemplos, o que significa para mim teoria filosófica."

Interrompo um pouco para sintetizar, dizendo que Popper refere estes cinco exemplos:

1. O determinismo de Kant: "O futuro do mundo empírico (ou do mundo fenoménico) é inteiramente pré-determinado pelo seu estado actual, até ao mais ínfimo detalhe";

2. O idealismo de Berkeley ou Schopenhauer: "O mundo empírico é a minha ideia";

3. O irracionalismo: "nós temos experiências irracionais ou supra-racionais em que nos experienciamos a nós mesmos como coisas-em-si; e obtemos, dessa forma, algum tipo de conhecimento das coisas-em-si";

4. O voluntarismo: "nas nossas próprias volições, conhecemo-nos a nós mesmos como vontades. A coisa-em-si é a vontade";

5. O niilismo: "no nosso tédio, conhecemo-nos a nós mesmos como nadas. A coisa-em-si é Não-Ser".

Regressemos então ao texto de Popper:

"Escolhi os meus exemplos de um modo que me permite dizer relativamente a cada uma destas cinco teorias, e após cuidadosa ponderação, que estou convencido da sua falsidade. Ou, para pôr a questão em termos mais precisos: eu sou, primeiro que tudo, um indeterminista, em segundo lugar um realista, em terceiro um racionalista. No que toca aos meus quarto e quinto exemplos, admito de bom grado - tal como Kant e outros críticos racionalistas - que nós não podemos possuir nada que se pareça com um conhecimento pleno do mundo real, na sua infinita diversidade e beleza. Nem a Física nem nenhuma outra ciência nos pode auxiliar nesse objectivo. Estou, contudo, seguro de que a fórmula voluntarista "O mundo é vontade" tão-pouco nos pode ajudar. E quando aos nossos niilistas e existencialistas que se entediam (e entediam talvez os outros), só posso ter pena deles. (...)

Ainda que eu considere que cada uma destas cinco teorias é falsa, estou, não obstante, convencido de que são, todas elas, irrefutáveis.
Escutando esta afirmação, podeis bem interrogar-vos como é que é possível que eu considere uma teoria simultaneamente falsa e irrefutável - eu, que afirmo ser um racionalista. Pois, como pode um racionalista dizer que uma teoria é falsa e irrefutável? Não é ele obrigado, como racionalista, a refutar uma teoria antes de a classificar como falsa? E inversamente, não é ele obrigado a admitir que, se uma teoria é irrefutável, é porque é verdadeira? Com estas perguntas, cheguei finalmente ao nosso problema.
A última pergunta pode ser respondida de uma forma bastante simples. Houve pensadores que acreditaram que a verdade de uma teoria podia ser inferida da sua irrefutabilidade. Este é, no entanto, um erro óbvio, atendendo a que pode haver duas teorias incompatíveis igualmente irrefutáveis - por exemplo, o determinismo e o seu oposto, o indeterminismo. (...)
Inferir a verdade de uma teoria da sua irrefutabilidade será, por conseguinte, inadmissível."


Interrompamos um pouco... Depreendemos, e concordo plenamente com Popper, que S. Tomás de Aquino, trabalhando no domínio da teologia e da metafísica (esta última ao estilo de Aristóteles, bem entendido), trabalha sobre teorias que, aos olhos da ciência moderna, são irrefutáveis. Por isso, falando de um modo estritamente científico, não podemos, e Popper está correctíssimo, inferir a veracidade científica das teses do Aquinate do carácter irrefutável das mesmas.

Mas em que sentido, ou sentidos, entende Popper que uma teoria seja irrefutável? Em dois:

1. Irrefutável em sentido lógico: ou seja, "irrefutável por meios puramente lógicos", que no fundo é o mesmo que dizer que a teoria é coerente e que sobrevive ao teste da integridade lógica. Mas como diz Popper, "é bastante óbvio que a verdade de uma teoria não pode ser, de modo algum, inferida da sua coerência".

2. Irrefutável em sentido empírico: ou seja, "não refutável empiricamente" ou "compatível com qualquer possível enunciado empírico" ou "compatível com toda a experiência possível".

A Summa Theologica é irrefutável em sentido lógico, a meu ver. Se os meus amigos ateus não concordarem, poderemos ir por esse caminho. Mas, considerando eu a Summa irrefutável em sentido lógico, continuo com pouca coisa, uma vez que a coerência das teses do Aquinate não permite concluir que estas são verdadeiras.

E em relação à irrefutabilidade empírica? Aqui o caso muda de figura. Popper diz que a grande dificuldade com a irrefutabilidade empírica é que não é humanamente possível proceder à refutação, em virtude da vastidão do Espaço e do Tempo. Na óptica de Popper, refutar empirica e científicamente a existência de Deus implicaria esquadrinhar todos os pontos do espaço e do tempo e, não O encontrando, inferir a Sua inexistência.

Por isso, as conclusões teológicas e metafísicas do Aquinate, expostas na Summa, são empiricamente irrefutáveis. Para mim, esta era a mais óbvia de todas, porque Deus não é um ente empírico, e como tal, não vale a pena procurar por Ele no tempo e no espaço, porque não há tempo nem espaço que O pudessem conter.

Continuamos num impasse! As doutrinas ensinadas por S. Tomás, a par com todas as restantes doutrinas filosóficas e metafísicas, permanecem cientificamente irrefutáveis, sem forma de as podermos testar para ajuizarmos se são falsas ou verdadeiras!
Que fazer então com elas?
Popper dá uma pista valiosa:

"Há cerca de vinte e cinco anos, propus-me distinguir teorias empíricas ou científicas de teorias não-empíricas ou não-científicas, definindo precisamente as empíricas como refutáveis e as não-empíricas como irrefutáveis. (...) Se aceitarmos este «critério de refutabilidade», veremos de imediato que as teorias filosóficas, ou as teorias metafísicas, serão irrefutáveis por definição. (...)

Se as teorias filosóficas são todas irrefutáveis, como poderemos nós distinguir entre as verdadeiras e as falsas? (...)

Ora, se nós encararmos uma teoria como uma proposta de solução para um conjunto de problemas, ela prestar-se-á de imediato a uma discussão crítica - mesmo que seja não-empírica e irrefutável. E isso na medida em que podemos fazer perguntas como «Será que resolve o problema? Resolve-o melhor do que outras teorias? Não se limitará, talvez, a alterar o problema? A solução é simples? É fecunda? Será que contradiz outras teorias filosóficas, necessárias para resolver outros problemas?

Questões deste género demonstram que é bem possível discutir criticamente até mesmo teorias irrefutáveis."
- Karl Popper, "Conjecturas e Refutações", Livraria Almedina, Abril de 2003, pp. 264-274.

Como estou de acordo com Popper!
Este breve trecho da obra "Conjecturas e Refutações" é verdadeiramente surpreendente. Mostra-nos que, face à análise crítica de obras teológicas e metafísicas como a Summa Theologica, a abordagem correcta, mesmo do ponto de vista de um cientista que quer manter íntegras e coerentes as suas convicções como um todo, não é nunca a de inferir a falsidade da teoria metafísica, nem tão pouco a de se precipitar numa insensata inferência da veracidade científica da teoria metafísica. Popper demonstrou particularmente bem que tal é impossível.

Conclusão:
1. É impossível provar cientificamente que, por exemplo, Deus existe;
2. Correlativamente, é impossível provar cientificamente que Deus não existe.

Fica o caminho aberto para muito e profundo trabalho crítico. Como disse Popper, apenas porque uma teoria é irrefutável não quer dizer que se desista de a analisar, criticar, considerar, corrigir, e assim por diante. Este trabalho, contudo, terá que ser feito a um nível meta-científico, porque já não podemos dispor das ferramentas científicas de teste. Terá que ser feito recorrendo, por exemplo, às doutrinas tradicionais conforme expostas por René Guénon, que se regem por ferramentas totalmente diferentes como a que este designou por "intuição intelectual" (que opera a um nível supra-racional), e recorrendo aos abundantes exemplos e lições que se podem retirar do simbolismo tradicional.

Bernardo