terça-feira, 28 de junho de 2005

O católico e as suas obrigações

O Lutz dedicou este post à discussão que tem corrido nestes dias sobre a questão do Diabo à luz da doutrina católica.
Desde já, agradeço-lhe o post, que demonstra a sua tenacidade em reflectir sobre este assunto, e em tentar tirar do tema todas as ilacções possíveis.
Contudo, sinto-me profundamente injustiçado, e sinto que a minha posição foi totalmente incompreendida.
No texto do Lutz, saem enaltecidos os católicos que toleram tudo dentro da sua religião, que num esforço por tolerar o outro, também concordam com o erro do outro. Ora isso não é tolerância. Isso é incoerência.
Uma das maiores facetas da caridade é corrigir o próximo. Nada me parece mais importante do que corrigir o próximo e deixar-me corrigir por ele. Nos dias que correm, as pessoas andam demasiado preocupadas com os seus egos.
Para elas, as minhas palavras eram uma intimação: "Se crês no Diabo, fica! Se não crês, sai!".
Mas alguma vez era essa a minha intenção, Lutz?
Alguma vez?
O que eu disse, e que continuo (teimosamente, se calhar) a dizer é simples e claro como a água: ser católico implica professar a doutrina católica.
A doutrina católica tem uma forma particular e característica de ver o Mundo. É através dessa forma peculiar de ver o mundo que o católico se define como tal, em pensamentos e em actos.
Será que os meus críticos reagiriam do mesmo modo se eu afirmasse ser necessário crer em Jesus Cristo como Deus para ser católico?
Vamos fazer uma suposição: o meu post era sobre Jesus Cristo ser Deus, Filho de Deus feito homem. Estaria eu a ser "intolerante" se eu afirmasse que um católico tem que crer que Jesus é Deus?
Pois qual é a diferença?
Haverá diferença de natureza nas duas situações?
Creio que não há.
Há apenas uma diferença de importância: é notoriamente mais importante para o ser católico crer em Jesus como Deus do que professar a existência do Diabo. Contudo, esta diferença de importância não estabelece uma separação de naturezas: ou seja, o católico, apesar de dever saber dar prioridades nas suas convicções, não pode traçar arbitrariamente a fronteira do que é a crença católica e do que são opiniões pessoais.
Para evitar essa arbitrariedade, existem inúmeros documentos que ajudam o crente a saber, exactamente, o que é a doutrina que ele professa. Um desses documentos é o Catecismo.
O que sucedeu nos posts do Lutz, e por outras bandas, foi que certos católicos decidiram fazer ridícula a minha posição. Quando o que eu apenas lhes afirmei foi o que está no Catecismo da Igreja Católica. O meu post era uma chamada à reflexão para católicos (e também para não-católicos). Não era um julgamento inquisitorial!
No Pai Nosso, dizemos: "Mas livrai-nos do Mal". O que é esse Mal?
Era esse o cerne do meu post, e era a essa reflexão que eu estava a convidar quem estivesse interessado.
Não sou juíz de ninguém, porque primeiro tenho que ajuízar sobre mim próprio.
Mas não faz sentido ser-se católico, e usar o Catecismo à la carte.
Não é uma questão de obediência. É uma questão de coerência.

terça-feira, 21 de junho de 2005

O Diabo à luz da doutrina judaica e cristã

A pedido do Pedro Fontela, eis alguns esclarecimentos rápidos e muito sucintos sobre esta questão. Como são vários os termos empregues para representar o Diabo, convém ter alguma precaução, porque cada termo possui um contexto e um significado diferentes.

Comecemos por Satanás, ou Satã.
Vem do hebreu "shatan", que significa simplesmente "adversário".
Era neste sentido que a palavra era usada vulgarmente pelos hebreus, no sentido de um adversário ou de um inimigo (pessoa individual ou colectividade).
Elaine Pagels, na sua obra The Origins of Satan, defende a tese de que o Diabo era, originalmente, apenas o inimigo.
É totalmente verdadeiro o que o Pedro Fontela afirma, a saber, que a demonologia judaica e a demonologia cristã são muito diferentes.
Uma das características mais notórias é que a demonologia do Antigo Testamento fica àquem, no que toca à complexidade e ao detalhe, de outras demonologias do Médio Oriente, como a dos Assírios, a dos Acadianos, ou a do Avestá (Iranianos).
Embora o Antigo Testamento seja rico em detalhes angeológicos (arcanjos, serafins, querubins, anjos), é pobre no que toca à demonologia.
Mas tal não significa que ela não exista. O Mal está presente na história da serpente, no Génesis. Está em Job, em Reis, no livro de Zacarias. O Levítico adverte contra bruxarias. Isaías fala em demónios (cap. 34, vs. 14). O livro de Tobias (se bem que não faça parte da Bíblica hebraica, mas sim da Cristã) fala no demónio Asmodeus. E há muito mais casos...
Por tudo isto, não me parece correcta a leitura excessivamente académica de Elaine Pagels, que simplifica uma questão complexa. É correcto que os Judeus usavam a palavra "satã" para designar os seus adversários. Mas isso não chega para afirmar que eles não possuiam uma genuína demonologia nem professavam a crença numa criatura personificadora do Mal.

Outro esclarecimento impõe-se no que toca ao termo Lúcifer, que quer apenas dizer "Portador da Luz". Lúficer é a palavra latina para o hebreu "helel", ou o grego "heosphoros". Representa quase sempre a "estrela da manhã", ou seja o planeta Vénus, que se vê logo na aurora (Job 11:17, Salmo 109:3). Lucífer é um termo teologicamente inadequado para representar o Diabo enquanto criatura caída, uma vez que a tradição sempre considerou que o termo apenas se aplicaria ao Diabo na sua condição luminosa antes da Queda (o próprio nome o indica).
Como curiosidade, o termo "Lúcifer" é também aplicado a outras personagens, como por exempo ao Rei da Babilónia (Isaías 14:12), ao Sumo Sacerdote Simão, filho de Onias (Eclesiastes 50:6), e mesmo ao próprio Jesus Cristo (Pedro II 1:19; Apocalipse 22:16). E isto porque a palavra quer mesmo dizer "o portador da Luz", e neste sentido serviu para ser usada em vários contextos.
Por esta razão, o termo correcto, na doutrina católica, para a personificação do Mal é Satã, Satanás, ou simplesmente Diabo.
Etimologicamente, a palavra "diabo" vem do latim "diabolus", que por sua vez vem do grego "diabolos", e representa o líder das hostes demoníacas.

No Novo Testamento, são mais evidentes as referências ao Diabo, como o trecho de Mateus que referi no post anterior. O Apocalipse faz também várias referências ao Diabo, e de uma grande riqueza teológica.
A doutrina católica fixou de forma bastante literal a existência do Diabo e dos demónios:

"Diabolus enim et alii dæmones a Deo quidem natura creati sunt boni, sed ipsi per se facti sunt mali." - Concílio Latrão IV

("o Diabo e os outros demónios foram criados por Deus bons na sua natureza mas eles próprios se fizeram maus.")

Tenho a perfeita noção de que aflorei apenas a ponta do icebergue. Se o Pedro quiser, poderemos ir mais ao detalhe nalguma questão.

Referências:
Catholic Encyclopedia - Devil
Catholic Encyclopedia - Lucifer
Catholic Encyclopedia - Demonology

O Diabo no Novo Testamento

"Naquele tempo, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, a fim de ser tentado pelo Diabo. Jejuou quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome.
O tentador aproximou-se e disse-lhe:
«Se és Filho de Deus, diz a estas pedras que se transformem em pães».
Jesus respondeu-lhe: «Está escrito: ‘Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus’».
Então o Diabo conduziu-O à cidade santa, levou-O ao pináculo do templo e disse-Lhe:
«Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo, pois está escrito: ‘Deus mandará aos seus Anjos que te recebam nas suas mãos,para que não tropeces em alguma pedra’».
Respondeu-lhe Jesus: «Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’».
De novo o Diabo O levou consigo a um monte muito alto, mostrou-Lhe todos os reinos do mundo e a sua glória e disse-Lhe:
«Tudo isto Te darei, se, prostrado, me adorares».
Respondeu-lhe Jesus: «Vai-te, Satanás, porque está escrito: ‘Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele prestarás culto’».
Então o Diabo deixou-O, e aproximaram-se os Anjos e serviram-n'O."


- Mateus 4, 1-11.

Ainda o Diabo...

Eu já sabia que este tema iria gerar alguma incompreensão.
O meu amigo Lutz, conterrâneo de outras andanças, criticou o meu texto anterior sobre o Diabo, perguntando-me se os católicos que recusam o Diabo e a validade dos exorcismos ainda são católicos.
Ora bem, a questão parece-me assaz simples. O catolicismo é o que é porque está doutrinalmente definido. Os textos conciliares, as encíclicas apostólicas, as cartas pontifícias, o Catecismo da Igreja Católica, são tudo fontes fidedignas para saber o que é isto de ser católico.
Se a Igreja Católica fosse o IKEA, qualquer católico poderia entrar na loja, escolher as partes que gostava, e sair de lá de dentro com a "sua" doutrina.
Sucede que a Igreja Católica não é o IKEA.
Podemos ler, no Catecismo da Igreja Católica (por comodidade, não traduzi do inglês):

II. THE FALL OF THE ANGELS

391 Behind the disobedient choice of our first parents lurks a seductive voice, opposed to God, which makes them fall into death out of envy.266 Scripture and the Church's Tradition see in this being a fallen angel, called "Satan" or the "devil".267 The Church teaches that Satan was at first a good angel, made by God: "The devil and the other demons were indeed created naturally good by God, but they became evil by their own doing."268

392 Scripture speaks of a sin of these angels.269 This "fall" consists in the free choice of these created spirits, who radically and irrevocably rejected God and his reign. We find a reflection of that rebellion in the tempter's words to our first parents: "You will be like God."270 The devil "has sinned from the beginning"; he is "a liar and the father of lies".271

393 It is the irrevocable character of their choice, and not a defect in the infinite divine mercy, that makes the angels' sin unforgivable. "There is no repentance for the angels after their fall, just as there is no repentance for men after death."272

394 Scripture witnesses to the disastrous influence of the one Jesus calls "a murderer from the beginning", who would even try to divert Jesus from the mission received from his Father.273 "The reason the Son of God appeared was to destroy the works of the devil."274 In its consequences the gravest of these works was the mendacious seduction that led man to disobey God.

395 The power of Satan is, nonetheless, not infinite. He is only a creature, powerful from the fact that he is pure spirit, but still a creature. He cannot prevent the building up of God's reign. Although Satan may act in the world out of hatred for God and his kingdom in Christ Jesus, and although his action may cause grave injuries - of a spiritual nature and, indirectly, even of a physical nature - to each man and to society, the action is permitted by divine providence which with strength and gentleness guides human and cosmic history. It is a great mystery that providence should permit diabolical activity, but "we know that in everything God works for good with those who love him."275


Dirijo uma pergunta ao meu amigo Lutz, que eu lhe peço que responda com base no seu bom senso: faz sentido um católico não seguir o Catecismo?
Se o Catecismo compila a estrutura e o conteúdo doutrinários da Igreja Católica, e se os crentes escolhem como lhes apetece o que lhes convém (ou melhor, o que convém às mentes distorcidas pelos preconceitos da sociedade moderna, que é materialista até ao âmago), para que serve o Catecismo?

Eu espantar-me-ia se, numa sondagem à boca das Igrejas, mais de metade dos inquiridos tivesse a coragem para assumir que acredita no miraculoso! Muitos crentes fugiriam do assunto, ficariam corados! E se a pergunta fosse "Acredita na existência do Diabo?", as respostas seriam ainda mais escandalosas e ainda mais contraditórias face ao que ensina o Catecismo.

Qual é a minha ideia?
Propor obediência cega ao Catecismo?

Nada disso! Proponho, humildemente, aos meus irmãos católicos:

a) uma leitura atenta do Catecismo, e uma profunda revisão de consciência e do que implica ser católico e professar o catolicismo;

b) um estudo aprofundado sobre estes temas; porque aquilo que é compreeendido é mais facilmente professado.

Não defendo a existência do Diabo para obedecer à Igreja!
Defendo-a porque a doutrina, para mim, só faz sentido assim. Defendo-a, porque acho que corresponde ao real.
Para terminar, Lutz, acho que este teu trecho pode ser muito falacioso:

"Tenho muitos amigos católicos que discordam consigo. Pelo que percebi, nega-lhes o direito de se considerar católicos."

O que tu me dizes é que eu, por respeito para com os teus amigos (também tenho amigos que pensam o mesmo), deveria tentar acomodar (sabe-se lá como) estas opiniões divergentes e contraditórias com o magistério da Igreja?
O que deve fazer a doutrina católica perante os católicos que afirmam que o Diabo não existe? Deve a doutrina riscar essa parte?
E os crentes que não acreditam que Jesus Cristo está presente na Eucaristia? Se calhar, por respeito, a Igreja também deveria riscar essa parte?
E os crentes que não acreditam em milagres? Deverá a Igreja também riscar os milagres do mapa?
O que é que restaria do catolicismo? O que é que o diferenciaria, por exemplo, do protestantismo?
Parece-me que o teu argumento, caro Lutz, é emocional e não racional. Em nome de uma uma suposta (e falsa) "tolerância", ou por respeito para com as opiniões dos crentes, a Igreja Católica deve começar a cortar partes do Catecismo?

E quem terá mais credibilidade?

A) A Igreja com o seu magistério duas vezes milenar
B) O crente que não lê o Catecismo, não lê a Bíblia, não lê os textos oficiais, não sabe nada da História da Igreja

No fundo, e com todo o respeito, Lutz, o crente católico que me descreves, e que nega a existência do Diabo e a validade dos exorcismos, tem apenas "uma opinião" sobre a matéria, e nada mais. E uma opinião não fundamentada, se me permites.

terça-feira, 7 de junho de 2005

O Diabo

(publicado em simultâneo no Afixe)



Nos dias que correm, não poucas dificuldades se apresentam ao crente que vive já num mundo laicizado, racionalista e materialista.
Uma dessas grandes dificuldades apresenta-se com a existência (ou influência) do Mal como entidade distinta. Por outras palavras, a existência do que se chama vulgarmente de "Diabo". Ou se quisermos ser mais generalistas, a existência de entidades malignas ou demoníacas.
Uma das tácticas (porventura usadas inconscientemente) dos adversários militantes de qualquer religião consiste na infantilização e no desprezo de quem crê na existência do Diabo.
Dizem muitos que a crença no Diabo não se coaduna com a mente do "homem moderno", nem é compatível com a Ciência moderna. De forma totalmente desonesta, muitos tentam extravasar a Ciência moderna para fora dos seus limites, que são estritamente empíricos, querendo aplicá-la a tudo.
E, curiosamente, criou-se esta estranha ideia, que se entranha dia após dia: o Diabo era uma superstição dos nossos avós, uma coisa de gente atrasada, inculta, cientificamente analfabeta. Algo que "as Luzes" já teriam, supostamente, refutado.
No caso específico da Igreja Católica (contexto que me é particularmente caro), é curioso notar a campanha que se faz, nos dias que correm, contra o exorcismo e contra a crença nas entidades demoníacas.
Hoje em dia, não poucos católicos teriam coragem para, abertamente, professar a crença no Diabo. No entanto, deveriam saber que a sua liturgia, a liturgia católica, possui ainda rituais de exorcismo, que, ao invés de serem meros caprichos antiquados de gente perversa, fazem parte do corpo da doutrina da própria Igreja Católica.
Bastaria lermos, por exemplo, a Suma Teológica de S. Tomás de Aquino, na Primeira Parte, onde se discutem os seres demoníacos.

Será que os católicos dos dias de hoje estão tão iluminados pelo positivismo científico que se envergonham das palavras do aquinate, um dos maiores doutores da Igreja, cuja obra teológica é hoje ainda um dos pilares do seu magistério?

Espero que não me interpretem mal!
(grande lata, é evidente que me vão interpretar mal!)

Não estou a fazer qualquer tipo de propaganda doutrinária. Penso que esta matéria interessa a crentes e a descrentes.
Os primeiros deveriam saber que não faz sentido ser católico e recusar a crença no Diabo, porque isso só advém de uma incompreensão grave da doutrina que professam.
Os segundos deveriam sabê-lo, quanto mais não fosse para conhecerem melhor o que é isto de ser católico e com que linhas se cose a doutrina de um católico.

Ah, já estou a ver este post a dar estalada e gritos, de certeza!
Basta ter bom senso: no dia em que o ritual do exorcismo desaparecer da prática da Igreja Católica, ter-se-á dado uma enorme machadada na estrutura basilar da concepção católica do mundo criado por Deus. Ter-se-á distorcido, para além dos limites do razoável, o próprio conceito do Mal.
Não julgo que as entidades demoníacas tenham abandonado o nosso Mundo! Acho que nunca estiveram tão presentes. O problema é que, nos dias que correm, poucos são aqueles que sequer as concebem como reais!

Termino com uma máxima famosa:

«La plus grande ruse du Diable est de faire croire qu'il n'existe pas» - Charles Baudelaire (1821-1867)