sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Dúvidas de fé

Ainda está para nascer, se é que alguma vez nascerá, o crente sensato que nunca teve dúvidas de fé. Que nunca duvidou da existência de Deus.

Existem, e existirão sempre, pessoas que não pensam sobre estas questões metafísicas. Crentes que são crentes sem pensar. Ateus que são ateus sem pensar. Agnósticos que são agnósticos sem pensar.

Contudo, o próprio processo humano de pensar obriga à dúvida, à confrontação de ideias opostas, de respostas contraditórias para as questões essenciais da vida.

Toda a comunicação social está em êxtase com as revelações das dúvidas de fé de Madre Teresa de Calcutá. Grande choque! Tudo é hiperbolizado, como se fosse impossível que tal pessoa tivesse dúvidas de fé.

Mas quem não as tem? Só os tontos.

A atitude de fé é indissociável da confiança interpessoal. Se não confiamos em ninguém, não podemos ter fé. A fé amadurece, e aprofunda-se, partindo da semente que é a confiança, e usando da inteligência e da razão para a aprofundar.

Se repararmos, é exactamente, a mesma atitude (só o âmbito do conhecimento é diferente) que o cientista deve adoptar. Nenhum cientista tem tempo nesta vida para estudar tudo, para verificar individualmente os resultados de todos os seus colegas cientistas em todas as áreas do saber empírico moderno. Por isso, qualquer cientista tem que, dentro da razoabilidade, aceitar os resultados dos trabalhos de outros cientistas. Poderá, aqui e acolá, sobretudo se se tratar de um trabalho na sua área, querer reproduzir esse trabalho para averiguar acerca da sua justeza. Mas um especialista em biologia, por exemplo, não teria tempo suficiente na sua vida para estudar, em paralelo, tudo o que há de publicações científicas sobre meteorologia, geologia, matemática, física, química, história, geografia, entre outras.

A inteligência humana adquire conhecimento através de um processo sempre igual, e que, se seguido de forma diligente, dá normalmente bons resultados:

a) uma atitude de fé: numa pessoa, numa obra ou trabalho, numa organização

b) uma atitude de investigação e trabalho intelectual individual

As dúvidas de fé são tão legítimas, na mente do crente pensante, como as dúvidas do cientista. Não há progresso científico sem a ajuda preciosa da dúvida. E não haveria Igreja Católica como a conhecemos hoje, com a estabilidade doutrinal que esta apresenta, sem vinte séculos de dúvidas e debates intelectuais acerca de todos os mais ínfimos e infindáveis detalhes doutrinais.

domingo, 26 de agosto de 2007

Materialismo em estado puro

Parte I - Prelúdio

O Ludwig escreveu hoje uma sátira no seu blogue, sob a pena do alter-ego "Dom Mário Neto", que representa a ideia que o Ludwig faz de uma realidade que ele ainda não conhece nem compreende: a da Teologia (e do teólogo). "Dom Mário Neto" é aquilo que o Ludwig imagina ser um teólogo, e usa esse alter-ego para satirizar as crenças religiosas em geral, com especial incidência, por razões óbvias (culturais) no cristianismo.

A discussão começara ontem, quando o Ludwig satirizou um trecho do Primeiro Livro de Samuel. Os detalhes podem ser lidos aqui.

O início da discussão não é interessante por si mesmo (uma disputa acerca da tradução de um termo hebraico), mas sim pelas realidades que faz ressaltar. Devo confessar que até há um quarto de hora atrás, eu não tinha ainda compreendido a objecção do Ludwig: achava que ele queria simplesmente teimar num determinado suposto absurdo conceptual que ele teria encontrado num dos livros do Antigo Testamento. Compreensão lenta a minha, porque na realidade, o problema do Luwdig estava na eterna questão da relação entre os bens materiais e a religião. Juro que só agora é que entendi que este sempre foi o cerne da questão levantada pelo Ludwig no seu texto de Sábado.

Com este comentário do Ludwig, apresentado de seguida, fica-se com a ideia de que o capítulo em questão constitui, para ele, uma prova de algo de muito grave em termos da atitude religiosa de um crente:

«Este relato continua a revelar algo de profundamente ridículo e perturbante com estas crenças religiosas.»

Não pode ser coisa pouca!
Na mesma caixa de comentários, Ludwig escreveu:

«Mesmo com a sua explicação, cuja ideia já conhecia, a minha opinião mantém-se. Ninguém oferece os pecados. Hoje em dia oferece-se dinheiro e jóias, e antigamente era comida, dinheiro e jóias. Ou seja, coisas de valor e não as coisas más de que nos queremos livrar.
E isso é quase universal na religião humana porque todos temos uma grande costela de comerciante.»


Vemos então que, afinal, a questão sempre foi a do ouro, e não tinha propriamente a ver com problemas de tradução. Para Ludwig, o "desastre" revelado no capítulo 6 do Primeiro Livro de Samuel era o facto de que seres humanos (racionais), neste caso os Filisteus, ofereceram ouro a um deus para expiação de pecados.

Este pode bem ser definido como um dos grandes "pecados mortais" do ateísmo esclarecido. Aos olhos destes iluminados, estamos perante algo não menor do que suicídio racionalista. A morte do bom senso. O enterro da Razão.

Parte II - Uma aparente condenação do materialismo

Numa primeira abordagem, Ludwig escolhe um caminho já bem trilhado e pisado por muitos antes dele, nos últimos séculos. A crítica à relação da Igreja com os bens materiais (vou cingir-me ao cristianismo, mas sei que o Ludwig aponta para algo em sentido lato, algo que vise todas as principais religiões). Para o Ludwig, e penso não estar a fazer um juízo errado, toda a Igreja, tendo que existir (idealmente, não existiria no mundo perfeito imaginado por Ludwig, composto por pessoas inteligentes e racionais), deveria ser composta por "Sãos Franciscos", por pessoas totalmente mendicantes, que nunca tocassem em bens materiais. Só dessa forma, na cosmovisão ludwiguiana, a Igreja seria coerente com aquilo que professa.

Trocado por miúdos, esta é a catequese iluminista, defendida por Ludwig, e que hoje em dia se tornou num facto consumado para uma crescente parte dos nossos concidadãos, num verdadeiro mito moderno:

A. Deus não existe (axioma).

1. Os crentes são pessoas pouco cultivadas: uma pessoa com conhecimentos não precisa de Deus para nada.

2. Os crentes de antigamente procuravam consolo na religião porque tinham medo da morte, mas também porque não conseguiam explicar certos fenómenos, hoje explicados pela Ciência; a Ciência deveria ter tornado a Religião num fenómeno caduco e condenado a desaparecer.

3. Os crentes de hoje ainda procuram consolo na religião porque têm medo da morte, mas também porque precisam ainda de uma explicação fácil para as injustiças: a religião é, e sempre foi, uma atitude subjectiva porque totalmente sentimental.

4. As Igrejas são dirigidas por comerciantes, que trocam bens materiais por consolo psicológico.

Sem o axioma, tudo isto cai, certamente, por terra. É na firme certeza filosófica (pela sua natureza, não pode ser uma certeza científica) de que Deus não existe que eles radicam a sua visão de que a religião é um gigantesco engano (para alguns, o maior engano de todos). Há então os que enganam (o clero) e os que são enganados (o povo). A religião, vista como algo que Marx apelidou de "ópio do povo".

A luta da Ciência contra a Religião, levada a cabo por estes bravos lutadores pós-Iluminismo, é então a eterna luta da Luz racionalista contra as Trevas da religião.

Em suma, o ateu esclarecido tem a resposta na ponta da língua:

a) O que quer um papa ou um bispo?
OURO e PODER

b) O que quer o crente?
CONSOLO

Supor que existam altos dirigentes da Igreja que vivem uma vida de fé sincera e devota é algo de aberrante: um alto dirigente da Igreja só lá está pelo poder e pelo ouro.

Supor que existam padres com pouco poder e crentes pobres já é algo de compreensível: são pessoas ignorantes exploradas pelo "sistema" religioso.

Para uma pessoa como o Ludwig, um mártir (que dá a sua vida por Cristo) representa uma tragédia humana enorme, não pelo sacrifício pessoal mas pelo absurdo da causa. O mártir deverá ser, para Ludwig, o supremo da loucura: uma pessoa dar a sua vida (para eles, a única) para encher a barriga e os cofres da padralhada.

Esta visão, está claro, é preconceituosa e baseia-se na ignorância. E é errada. O que é terrível, sobretudo quando tal visão é defendida por espíritos inteligentes, que deveriam ter alguma capacidade para escapar às condicionantes sociais que nos impõem esses preconceitos diariamente...

Parte III - A profissão (inconsciente) do mais arreigado materialismo

A atitude do Ludwig, disse atrás, parece à primeira vista (e parecer-lhe-á a ele mesmo) uma crítica do materialismo da Igreja. Ou seja, uma posição que teria tudo para ser anti-materialista. O Ludwig não aceita que as oferendas a Deus (por intermédio da Igreja) possam ter um significado sofisticado ou metafísico, ou possam ser gestos razoáveis ou aceitáveis. Para o Ludwig, tais significados metafísicos são normalmente "cozinhados" pelo blinólogo Dom Mário Neto de serviço. Porque não há, para o Ludwig, nenhum mistério numa oferenda destas: é apenas um crente a ir na argolada da Igreja.

Para o Ludwig, quando uma pessoa crente como eu coloca uma moeda no cestinho do ofertório, durante a Missa, está a ser burlado: a trocar consolo por dinheiro. Do lado de lá do altar, está o supremo comerciante: o padreco, esse gatuno do trabalho dos outros.

Esta visão, tão típica (será das mais típicas) do Iluminismo, do Modernismo, e ainda viva nesta época pós-modernista, longe de ser anti-materialista, é, na realidade, uma visão no extremo máximo do materialismo.

Sem modelos nem referências transcendentais, o ateu radica a sua existência no hic et nunc, no "aqui e agora" utilitarista, na fruição da experiência existencial tal qual ela é, sem grandes interrogações ou suposições metafísicas.

Por isso, a vida do ateu é explicada de forma simples: "Trabalho para obter dinheiro; uso o dinheiro para obter comida; como para me manter vivo; morro. Ponto final.".

Neste sentido, os bens materiais são preciosos para o ateu: são o combustível que mantém em movimento toda a máquina existencial ateísta: o corpo humano, esse robô sofisticado que um dia, segundo eles, a Ciência não só emulará, mas melhorará infinitamente. O ateu luta arduamente para evitar a morte. Ficar vivo só porque sim, só para aproveitar a vida, os bens materiais desta vida, é isso que o ateu quer.

Haverá então maior pecado ateísta, maior violação ética ao código comportamental do ateu, do que desperdiçar bens materiais? Do que perder a vida? Do que não procurar a satisfação sensorial? Do que perder a oportunidade de fruir destes bens numa sofreguidão individualista e epicurista?

Violar o carpe diem, este é o maior pecado do Homem aos olhos do ateu...

Isto é puro materialismo.
Como diz o Ludwig, o ser humano tem sempre algo de comerciante. O ateu radica a existência humana nos bens materiais, é deles que tudo parte, é para eles que tudo regressa. Os bens materiais explicam tudo. "Money makes the world go round!".

No fundo, na base da crítica que o Ludwig faz à existência de uma relação entre os bens materiais e a Igreja, está, paradoxalmente, um amor enorme (não confessado) aos bens materiais, essa bóia de salvação existencial, essa realidade tangível (para eles, o intangível é inútil, mais, é irreal) que dá aos ateus a sua sensação de segurança ontológica.

Parte IV - A religião e os bens materiais

Para o crente, que não sofre destes dilemas existenciais insolúveis, a coisa é relativamente simples:

1. Deus criou tudo. Rigorosamente tudo, incluindo os bens materiais.
2. A vida não pertence ao Homem, mas sim a Deus: é um dom de Deus para o Homem.
3. Os bens materiais não pertencem ao Homem: são colocados por Deus à disposição do Homem.
4. Os homens entregam o fruto do seu trabalho (em géneros ou dinheiro) em oferenda a Deus, colocando-o nas mãos daqueles que vivem exclusivamente para o serviço a Deus (o clero).
5. O clero fica responsável (depositário) de bens que não lhe pertencem, e que se destinam ao serviço divino.

Quando vemos um determinado prelado a viver uma vida de luxo desnecessário, podemos indignar-nos com razão: aquele homem está a esbanjar algo que não lhe pertence, não está a aplicar os bens que lhe foram confiados para servir a Deus.

Mas, e esta é a tragédia da incompreensão do Ludwig, há um abismo enorme entre esta atitude de cupidez humana, infelizmente demasiado frequente devido à nossa fraca natureza, e a atitude do prelado responsável, que gere bem os bens que lhe são confiados, e que os usa nas variadas vertentes do serviço a Deus, que passa pela ajuda aos que não têm, pelo trabalho de evangelização, pela defesa do património cultural do cristianismo, pela defesa da Igreja face aos seus agressores externos.

Quando eu entrego a minha dádiva no cesto, durante o Ofertório, tenho a perfeita consciência de que essa deve ser a menor parte da minha dádiva à sociedade, à Igreja, e a Deus enquanto cristão. Tenho muito mais que posso dar, e devo procurar oferecer, sobretudo, bens imateriais. Mas também tenho a consciência de que estou a depositar algo de material e que tem valor, à guarda de pessoas nas quais confio. Em muitos casos, porque o sacerdote costuma dizê-lo, até posso saber o destino dessa dádiva.

Se determinadas pessoas falham nessa minha confiança, se usam mal esses bens, serão elas a responder perante o Criador, e não eu. Acima de tudo, não é o acto de oferecer que está errado. Não é quem oferece que está errado. Oferecer está certíssimo. É a forma natural e racional de proceder.

Assim, como vemos, para o crente, os bens materiais devem fluir na sociedade, não só para a subsistência material da mesma, mas também para a maior glória de Deus. É nesse sentido que todo o crente razoável sabe que o trabalho de Deus nesta Terra também requer bens materiais. Em maior ou menor quantidade, consoante o destino dos mesmos. Esse destino tem é que ser justo e proporcional, mas isso é uma questão secundária e não central ao acto de dar.

A Igreja não é gnóstica: não há nada de maligno na Criação, nem nos bens, nem sequer no ouro, na prata, ou nas pedras preciosas. O que a Igreja ensina é algo de elementar e simples: quanto mais valioso é o bem, maior a responsabilidade do seu proprietário (ou do seu guardião) em dar-lhe bom uso.

Os bens servem o Homem. Mas isto tem muitas dimensões, para além da biológica, orgânica, psicológica ou social. Para o crente, o serviço dos bens ao Homem terá que passar, indiscutivelmente, por aproximá-lo de Deus. Logo, o destino mais elevado de um bem material é o de ser empregue para a glória de Deus, para fazer a ponte entre o Homem e Deus.

Na verdade, o bom crente dá um valor relativo aos bens materiais. Um valor não nulo, um valor positivo, mas incomparavelmente menor que o valor que um ateu lhes dá. Porque o crente sabe que a sua vida é finita. Que um dia acaba. E que nada de material, nem sequer o nosso corpo, se leva desta vida para a outra. Para o ateu, tudo o que há é para ser gozado nesta vida, que para eles é a única.

Assim, o ateísmo é, na verdade, um puro materialismo. Por definição.

Sobre a cupidez dos padres, muitos e santos homens escreveram afincadamente. Por exemplo, o nosso Santo António de Lisboa dedicou-lhes muitas e duras palavras (ver, entre muitos outros, o sermão do 5º Domingo depois da Páscoa, I, 663, sobre os vícios dos sacerdotes). O sacerdote que dá mau uso aos bens ao seu cuidado, e que não se arrependa a tempo, está perdido. Pobres de tais sacerdotes, indignos servidores de Deus, traidores na causa mais nobre. O mais triste é que tais pessoas estão reféns de um bloqueio intelectual que os faz servir o senhor errado. Servem o metal em vez de servir a Deus. Mas isso não faz do metal algo de mau, nem obriga a um divórcio entre os bens materiais e o serviço a Deus.

Este conceito que procurei explicar, o da utilidade e justeza do uso dos bens materiais no serviço a Deus, é incompreensível à "luz" (que raio de luz, esta, que escurece as mentes!) da distorcida cosmovisão do "ateísmo esclarecido", nascido da defesa dos novos dogmas decretados pela soi disant "Razão" contra Deus no século XVIII.

sábado, 25 de agosto de 2007

Verde miséria

O desregulamento intelectual das sociedades modernas traz ao de cima, como um dos seus mais preocupantes sintomas, a multiplicação dos paradoxos morais.
Recentemente, um bando de indigentes "ecoterroristas", que usam uma fachada de pseudo-ecologia para entrar em acções agressivas, subversivas e anárquicas, destruiu parte de uma plantação de milho transgénico.
Chamar este acto analfabeto de "activismo ecológico", não passa, certamente, de um "verde" eufemismo...

O assunto foi noticiado ad nauseam pela Imprensa, ao ponto de se tornar irrelevante discutir os detalhes. Sobretudo, é precoce discutir o facto de a polícia pouco ou nada ter feito, e de os nossos "ecoterroristas" não terem sido sancionados ou obrigados a pagar os estragos físicos e psicológicos, porque o problema encontra-se mais a montante.

Quer se queira, quer não, tornou-se socialmente aceitável usar da violência em nome de certas causas "politicamente correctas" como a ecologia, a protecção dos animais, ou mesmo essa vaga e intelectualmente confrangedora luta contra o "G-8".

Os nossos políticos, independentemente do seu quadrante (sendo certamente mais presentes na extrema esquerda a tendência para a apologia e mesmo patrocínio deste tipo de violência), começam a pouco e pouco a aceitar certos actos de violência como parte da liberdade de expressão.

Queimar viaturas passa a ter uma causa justa: a opressão económica do G-8 sobre o Mundo!
Conspurcar e vandalizar praças de toiros passa a ter uma causa justa: defender o pobre toiro da violência humana.
Destruir colheitas passa a ter uma causa justa: lutar contra os alimentos geneticamente modificados (independentemente do gene que é modificado, até porque tal gente não sabe bem o que é isso de genética).

Contudo, os mesmos activistas, apostando numa versão invertida e perversa de "causa justa", distorcem o real significado do que é uma luta por uma causa justa.

A ética mais justa e universal considera que é justo lutar (usar da violência) em auto-defesa, ou em defesa daqueles que temos à nossa responsabilidade.

Acima de todos os direitos está o direito à vida. Quando certos activistas anti-aborto atacam os matadouros onde se pratica o aborto "legal", os mesmos defensores da violência contra o milho transgénico ou da violência contra as praças de touros, indignam-se perante actos que, segundo eles, atentam contra direitos da mulher. Chegam a chamar de fanáticos aqueles que atentam contra tais "clínicas".

Estranha distorção de conceitos...
É certamente ilegítimo matar um "médico" abortista, mesmo que durante a prática do seu vil acto, se existir uma alternativa não cruenta. Contudo, é eticamente discutível se será assim tão errado tentar impedir um aborto provocando estragos materiais, sem atentar contra a vida de ninguém.

Destruir material médico, ou partir vidros de uma clínica, como estratégia para evitar a morte de um feto humano parece-me algo que dificilmente poderá ser visto como não ético, a não ser numa nova forma "moderna" de ética que dá mais valor ético aos vidros e aos aparelhos médicos do que ao ser humano.

Mas a essência desta minha interrogação está aqui: que raio de perversão intelectual viverá na mente daqueles activistas (e respectivos protectores políticos) que usam da violência para defender o milho natural e os toiros, mas que não se sentem minimamente apiedados pela vida humana fetal ou embrionária?

Aos olhos de certos políticos da esquerda radical (mas a doença também se alastra para a direita), faz parte da moderna "kulturkampf" valorizar mais a vida animal ou vegetal do que a humana... A verdade é que a corrente utilitarista, que hoje em dia campeia no estudo da Ética, com prejuízo para a clássica ética deontológica, tem cumprido a sua função de dissolução da hierarquia de valores.

O ser humano moderno, viciado numa falsa intelectualidade, perdido na árdua batalha quotidiana para conseguir hierarquizar minimamente os seus valores éticos, está agora a ser convencido pela ética utilitarista moderna a abdicar totalmente desses mesmos valores, que são vistos pelos "novos pensantes" como algo semelhante a fósseis de uma antiga religiosidade caduca, que urge extinguir em nome do dogma do "Progresso".

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Raptar o "papa de Hitler"?



O jornalista Dan Kurzman, correspondente do The Washington Post, foi, em 1970, o primeiro a entrevistar o SS Karl Wolff (1900-1984), que naquele ano tinha sido libertado da sua pena de prisão, tendo regressado à sua casa em Darmstadt.

Kurzman acaba de ver publicada (em Maio último) a sua mais recente obra A Special Mission: Hitler's Secret Plot to Seize the Vatican and Kidnap Pope Pius the XII, um refrescante livro que conta com bastantes detalhes o plano delineado por Hitler em Setembro de 1943 para raptar o Papa Pio XII, assassinando no processo toda a Curia romana.

O General Karl Wolff, ajudante de Heinrich Himmler, uma das figuras de proa das SS, recebeu de Hitler a incumbência de executar esta terrível missão. Wolff, de forma oportunista, procurou protelar durante vários meses estas ordens de Hitler, acabando por contar mais tarde todo o plano ao Papa Pio XII, de forma a aparecer aos olhos do Papa, e consequentemente dos vencedores Aliados, como amigo da Santa Sé.

Wolff, suspeitando que a Alemanha iria perder a guerra, jogou a carta certa num jogo arriscado: pelo seu papel pacífico relativamente à Santa Sé, e sobretudo pelo facto de ter entregue as forças armadas sem protesto aos Aliados na Primavera de 1945, escapou ao cadafalso, tendo recebido uma curta pena de prisão em Nuremberga.

Desobedecendo a Hitler, numa série de actos que se qualificariam de alta traição ao Terceiro Reich, Karl Wolff evitou o que seria a repetição histórica de mais um atentado contra a integridade física de um pontífice, algo que já tinha sucedido no passado, bastando recordar os actos de líderes como Napoleão e Filipe IV de França.

O mais curioso neste recente livro de Kurzman, que se lê como um policial de espionagem (contudo, bem documentado e referenciado), é a forma como esta documentação trazida à luz do dia ridiculariza de forma trágica a tese de um John Cornwell, de que Pio XII seria "o Papa de Hitler".

Há dois momentos históricos, infelizmente pouco conhecidos, que resumem o absurdo da tese do "papa de Hitler":

a) o plano de Hitler para assassinar toda a Curia e raptar (ou matar) Pio XII, revelado magistralmente nesta obra de Kurzman; porquê todo este ódio de Hitler por aquele que, segundo Cornwell, seria "o seu Papa"? Responder a esta questão implica mergulhar na verdade histórica, o que nem sempre é fácil nem desejável para certos fazedores de opinião;

b) a conspiração de altas figuras da Oposição alemã a Hitler para depor ou assassinar o ditador, que terminou em fatídico falhanço no Outono de 1939, conspiração na qual o Papa Pio XII, jogando um jogo tremendamente arriscado, fez não só de patrocinador mas também de "pombo-correio", numa cadeia de comunicação complexa, que percorria linearmente todas estas figuras:
- os líderes da Oposição alemã a Hitler (Beck, Canaris, Halder, etc.)
- o "emissário" da Oposição no Vaticano, o Dr. Joseph Muller
- o padre jesuíta Robert Leiber (homem da confiança pessoal de Pio XII)
- o Papa Pio XII
- o embaixador do Reino Unido na Santa Sé, D'Arcy Osborne
- o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, Lord Halifax

A cadeia de comunicação seguia, depois, o caminho inverso, de regresso à Oposição na Alemanha. Note-se que nenhuma peça de informação acerca desta conspiração atravessava a cadeia de comunicação da Oposição em direcção ao Foreign Office, ou na direcção inversa, sem passar pelas próprias mãos de Pio XII!

Mais detalhes sobre este segundo ponto surgem explanados na obra densa e académica de Harold C. Deutsch, The Conspiracy Against Hitler in the Twilight War (1968, University of Minnesota Press). Deutsch explica bem como o Santo Padre, temendo os enormes riscos de tal operação, quis reservar estas tarefas secretas para si mesmo e para menos de meia dúzia de confidentes. Anos mais tarde, após a Guerra, o padre Leiber viria a dizer que o Papa Pio XII "fora longe demais"!

Encontrar o pontífice Pio XII na cadeia de uma conspiração para depor o ditador Hitler é algo de tão exótico e surpreendente que nos faz ver com outros olhos as teses propagandísticas daqueles autores recentes que querem convencer o mundo de que Pio XII, o maior inimigo de Hitler, era, de facto, uma espécie de "Papa de Hitler"...

As conclusões finais acerca de toda esta polémica só serão sanadas (aos olhos dos especialistas, visto que na opinião pública, o mal já está feito e é quase irremediável) quando finalmente toda a documentação da Santa Sé relativa a este período estiver catalogada e acessível aos investigadores, algo que ainda poderá demorar mais alguns anos.