quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

O Deus de Dawkins

(este texto foi aumentado após publicação)

Alister McGrath, ex-ateu, cientista, filósofo, e teólogo anglicano, defronta o cientista ateu Richard Dawkins:

http://video.google.com/videoplay?docid=6474278760369344626

Dawkins, cuja carreira começou brilhantemente como divulgador científico de grande argúcia e sentido pedagógico, tem insistido, nas últimas duas décadas, na vertente de ateísta prosélito, advogando que a explicação científica neo-darwinista impõe forçosamente o ateísmo como conclusão para todas as mentes racionais.

O vídeo é longo, o debate é muito interessante, e é certo que nenhuma das partes convence a outra. Mas não deixa de ser um debate apaixonante e informativo.

Vemos ao vivo, por exemplo, como Dawkins tem dificuldade em pensar no registo filosófico, apesar de ser um brilhante pensador no registo científico. A sugestão, feita por Dawkins, de que o próprio lidaria melhor com um Deus localizado no espaço e no tempo, estando até disposto a discutir essa tese, é um bom exemplo dessa incapacidade para pensar de forma filosófica abstracta.

Deus não tem existência num espaço ou num lugar próprio. Deus é a fonte de toda a existência, e por isso, não pode ser "achado" em parte alguma ou num qualquer instante temporal.

Dawkins não parece ter grande facilidade em compreender este conceito: logo, reduz esse conceito de Deus a uma espécie de "Deus à Dawkins", contra o qual ele pretende lutar com todas as suas forças, tal qual D. Quixote contra moinhos ilusórios.

O "Deus à Dawkins" é uma ilusão. Alister McGrath demonstra-o de forma cabal na sua obra "Dawkins' God", editada em português pela primeira vez em Janeiro deste ano pela Alêtheia, sob o título de "O Deus de Dawkins".

No entanto, o notável homem de Ciência que é Dawkins decide empregar os seus melhores anos intelectuais numa estranha guerra intelectual contra um estranho conceito fixista de "Deus relojoeiro" que só existiu nas mentes de certos pensadores pertencentes à cultura britânica vitoriana, e que hoje foi recuperado e é aceite de forma acrítica como constituindo uma visão rigorosa do que é Deus pela imensa família de admiradores de Dawkins. Como explica Alister McGrath na sua obra, o "relojoeiro cego" de Dawkins baseia-se nas críticas que Darwin fez ao conceito do "Deus relojoeiro", mas este fenómeno acaba por ser especificamente britânico. Darwin reagia às ideias de William Paley (1743-1805), que via na complexidade da Natureza a obra de um "Deus relojoeiro". Muito antes de Darwin contestar Paley, já o Cardeal John Henry Newman (1801-1890), talvez o maior teólogo britânico do século XIX, contestava as ideias de Paley, que lhe pareciam implicar uma má teologia. E assim é de facto. Por isso, a ideia que Dawkins faz de Deus provém de uma concepção de Paley, concepção essa que foi rejeitada logo no século XIX pelo Cardeal Newman.

O "Deus à Dawkins" não é o Deus cristão, muito menos o Deus católico. Curiosamente, também não é fácil encaixar o "Deus à Dawkins" no Iavé judaico, no Alá do Islão, ou no Brahma hindu. Que raio de conceito pretende Dawkins combater, com a ajuda do seu séquito de seguidores?
Como D. Quixote, Richard Dawkins combate uma ideia imaginária de Deus, que vive presentemente na sua cabeça.

No vídeo acima referido, Dawkins consegue, a certa altura, encurralar McGrath na questão do Mal, que no entanto é uma questão demasiado complexa para ser abordada de forma segura num contexto destes. Dawkins pergunta a McGrath como é que ele explica, ao mesmo tempo, que Deus não é responsável pelas grandes catástrofes, como a do último grande tsunami asiático, e ao mesmo tempo, a teologia tende a ver a acção de Deus no milagre de salvar uma criança desta catástrofe, sem no entanto salvar todas. McGrath, conseguindo esgrimir alguns argumentos, debate-se de facto com um momento menos inspirado.

E, no entanto, era possível tecer uma argumentação neste sentido: o Mundo criado, Homem incluído, tem duas características interessantes para esta questão: imperfeição e liberdade. Se a imperfeição é indiscutível, mesmo para um ateu, a questão da liberdade merece ser vista com mais detalhe. Há, de certo modo, "liberdade" na natureza no sentido em que esta possui leis próprias que regem o seu funcionamento. A deriva das placas tectónicas explica os terramotos, que por sua vez explicam o tsunami. A construção humana junto à orla marítima, conjugada com a desgraça do tsunami, ajudam a entender o número elevado de mortos. Neste sentido, as leis da natureza constituem um conjunto de regras, dentro das quais o mundo natural segue livremente o seu curso, sem intervenção divina (apesar de Deus ser, obviamente, necessário para a existência do mundo e das leis que o regem). Assim, pode-se falar em "liberdade" na natureza, se bem que uma liberdade sem vontade. A liberdade humana, essa sim, possui vontade. Se as consequências "maléficas" das catástrofes naturais advêm de leis naturais num mundo onde o homem constrói habitações que nunca estão imunes ao risco, tais catástrofes não derivam de nenhuma vontade, nem da natureza nem de Deus. Deus criou um mundo como ele é, sujeito a leis próprias, e Deus não está permanentemente na regência de todos os fenómenos.

Já o Homem, quando procura e quer o Mal, é um agente livre dotado de vontade, seja para exercer esse mal usando ilicitamente a religião como método (o terrorista fanático-religioso) ou a ciência como método (sofisticadas armas nucleares, químicas e biológicas). Nesse sentido, McGrath poderia ter dito a Dawkins que Deus não impediu nem sabotou a viagem dos aviões contra as Torres Gémeas porque porventura tem um destino reservado para os terroristas bem diferente do que guarda para as suas vítimas. McGrath poderia ter dito só isto: Deus é justo mas a forma como ele exerce ou exercerá a Sua justiça é-nos desconhecida em grande medida.

No fundo, a desgraça do tsunami tem a ver com a liberdade e imperfeição inerentes à própria natureza criada por Deus, bem como com as opções livres do Homem que tem que optar por um local onde morar, sabendo à partida que nenhum local físico é perpetuamente seguro e à prova de catástrofes.

McGrath também poderia ter dito a Dawkins que as opções divinas de intervir ou não, para salvar este ou aquele, não nos mostram tudo o que Deus quer para nós. A justiça divina exerce-se neste e no outro mundo. Para quem apenas vê metade do "filme" como nós, é possível supor que a morte de inocentes numa catástrofe será compensada de outro modo qualquer por Deus. Por outro lado, a sobrevivência de uma ou outra pessoa de uma catástrofe natural pode obedecer a uma intenção específica de Deus para aquela pessoa: uma decisão divina de ainda não a chamar para junto de si, intervindo na natureza para evitar a sua morte.

O Deus cristão é um meio termo entre um ilusório "Deus relojoeiro" (que teria criado tudo e assistiria impávido a tudo sem intervir) e um ilusório "Deus tirano" (que roubaria à Criação a liberdade de acção). O Deus cristão intervém na natureza, sempre que assim o entende. É neste conceito que reside o sentido do "milagre", como acontecimento natural extraordinário cuja causa é sobrenatural.

Tudo isto é complicado, e nenhuma explicação racional que façamos é fechada. O que podemos é evitar as incoerências, como aquela de Dawkins dizer, mesmo no final do vídeo, que quer cortar a religião pela raiz porque ela é a "fonte de todo o mal", e porque ela pode ser usada para o mal. Que estranha incoerência: se a religião é a fonte de todo o mal, então não só ela pode ser usada para o mal como deverá sempre gerar o mal. Ao dizer que algo é a raiz absoluta do mal, torna-se necessário que tudo o que brote desse algo seja maléfico. É uma questão de lógica. E o mesmo Dawkins, que foi poupado tantas e tantas vezes neste debate por um manso e humilde McGrath, poderia ter sido fulminado com esta óbvia incongruência: a ciência também pode ser usada para o mal, e não é por isso que a vamos "cortar pela raiz"...

É que Dawkins pega no problema pelo lado oposto. A ambivalência da religião também serve para a ciência. Ambas podem ser bem empregues ou mal empregues, porque a opção moral está, afinal de contas, no Homem de ciência ou no Homem de fé. Se essa pessoa optar bem, usará bem a Ciência. Se optar bem, usará bem a Fé. Mas pode optar por usar qualquer uma delas para servir maus propósitos. Mais uma vez: a explicação para o mal encontra-se na imperfeição e na liberdade da Criação, Homem incluído. Deus não é a causa do mal. Note-se que o mal, no relato genesíaco, é introduzido pela opção livre do Príncipe dos Anjos, Satanás, que em supremo exercício da sua liberdade criatural, se revolta contra Deus. De novo, esta ideia: o mal nasce da liberdade da criatura finita e imperfeita, mas não é necessário nem desejado por Deus infinito e perfeito.

Dawkins constitui um triste exemplo de como o preconceito anti-religioso, aliado a uma espécie estranha de solipsismo, pode assombrar uma brilhante carreira intelectual e académica...

No entanto, o efeito propagandístico é potente: o cientista divulgador dá voz nova e forte a uma mentira já bem velha: a de que a Ciência destruiu o conceito de Deus. O comum dos mortais pode cair facilmente nesta esparrela, porque ele próprio confia no "Dawkins cientista" e não tem tempo para estudar estas questões com profundidade. Logo, não se dá conta de que o "Dawkins filósofo" é um logro...

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