quinta-feira, 24 de abril de 2008

O processo contra Galileu

A motivação para escrever um trabalho sobre o processo do Santo Ofício contra Galileu nasceu do artigo Mais hipocrisias do Ricardo Silvestre (Portal Ateu) a propósito da recente decisão da Santa Sé em homenagear Galileu erigindo um busto seu.

O Ricardo criticava essa decisão, e eu comecei por comentar que não via razão de ser para tais críticas, uma vez que o caso Galileu, sendo certamente uma página triste na história da Igreja, não devia ser interpretado como um exemplo de uma presumida incompatibilidade "institucional" entre Fé e Ciência, mas sim como um acontecimento historicamente complexo e carregado de motivações pessoais e erros humanos.

Após a troca de alguns comentários, o Ricardo convidou-me para redigir um texto de resposta. Aproveitei a simpatia do convite para fazer um estudo mais detalhado sobre este tema. Rapidamente me dei conta de que era um tema verdadeiramente complexo e difícil.

Como sincero crente católico, encarei este desafio do Ricardo como uma oportunidade para dedicar algum tempo ao estudo frontal do caso Galileu. Parti para esse estudo convencido de que, no pesar das responsabilidades, caberia a Galileu alguma culpa no desenrolar dos acontecimentos. Terminado este breve estudo, concluo que é complicado atribuir a Galileu qualquer culpa objectiva, mesmo considerando a sua legítima predisposição para debates apaixonados sobre temas polémicos, como era então o da interpretação das Sagradas Escrituras à luz das recentes descobertas científicas.

Seguindo o mote evangélico tão usado pelo Papa João Paulo II, "não tenhais medo", e na linha da afirmação fundamental que encontramos no evangelista São João, "a verdade vos libertará", encaro de frente todos os erros cometidos pelos responsáveis da Igreja da qual faço parte, seguro de que tais erros, manchando o currículo de alguns responsáveis católicos, deixam intacta a sacra doutrina que me orgulho de professar.

"No Evangelho que acabamos de escutar, Jesus diz a seus Apóstolos que acreditem nele, porque Ele é «o caminho, a verdade e a vida» (Jo 14,6). Cristo é o caminho que conduz ao Pai, a verdade que dá sentido à existência humana, e a fonte dessa vida que é alegria eterna com todos os Santos no Reino dos céus. Acolhamos estas palavras do Senhor. Renovemos a nossa fé nele e ponhamos nossa esperança em suas promessas."
- Papa Bento XVI, Homilia da Missa no Yankee Stadium, Nova Iorque, 20 de Abril de 2008.

A verdade trazida por Cristo liberta. Liberta a moral do ser humano, fazendo-o viver uma vida plena e com sentido, e liberta o intelecto do ser humano, fazendo-o aceder, dentro das suas capacidades, ao âmago das verdades científicas, filosóficas e teológicas. Um aprofundar do conhecimento nestas várias áreas do saber revelará, ao estudioso persistente e humilde, a existência de uma unidade explicativa fundamental que dá sentido a tudo. Os cristãos chamam a essa unidade explicativa o "logos", que serve à vez como termo grego para "Palavra" (ou "Verbo") e para "Razão".

Um católico não deve ter medo de reconhecer nem os seus erros pessoais nem os erros dos seus irmãos na fé, uma vez que não existe católico (nem ser humano) que não cometa erros. É base fundamental do cristianismo o exame de consciência, o reconhecimento dos erros, a esperança do misericordioso perdão divino, dessa palavra de salvação que simultaneamente nos liberta e nos abre o intelecto. Que nos abre o caminho para a plena realização humana.

Em suma, terminada esta introdução pessoal, eis as ideias-chave que queria apresentar sobre o tema...

1. A maioria dos ateus partilha de uma opinião errada sobre o caso Galileu: segundo essa opinião, o processo contra Galileu representaria um choque inevitável entre uma concepção atrasada do mundo porque religiosa, e uma concepção avançada do mundo porque científica; a religião vista como o domínio das "trevas", de um poder eclesiástico dominador e autoritário, que oprimia os cientistas.

2. Quase nenhuma das pessoas que partilha desta opinião alguma vez folheou os arquivos do processo; logo, tal opinião é, nada mais, nada menos do que, propaganda; alguma desta propaganda já tem mais de um século de idade.

3. Os arquivos do processo contra Galileu não estão completos: falta documentação; por exemplo, Napoleão mandou trazer os arquivos de Roma para Versalhes, e só várias décadas mais tarde é que eles foram recuperados; no entretanto, valiosos documentos, indispensáveis para reconstituir os acontecimentos, foram destruídos ou perdidos.

4. Os arquivos do processo contêm muito material em segunda mão: cópias de cartas, cópias de documentos oficiais, etc; logo, há que ter muito cuidado com a sua análise; nem sempre o que lá se lê deve ser tomado à letra.

5. Durante a vida de Copérnico, as suas ideias e obras não foram censuradas; a colocação da obra "De Revolutionibus" de Copérnico no Índex dos livros proibidos só ocorre no tempo do processo contra Galileu.

6. Galileu foi sempre um homem de fé; provavelmente, amou mais a Igreja e as verdades da Fé do que os seus adversários, mesmo os eclesiásticos.

7. O Cardeal Bellarmino, figura importante durante a primeira fase do processo (1615-1616), afirmou que estava disposto a rever a interpretação de certas passagens das Escrituras, caso surgissem provas definitivas do modelo heliocêntrico (provas que Galileu ainda não tinha), e que nessa situação, seria preciso agir com cautela, procurando corrigir os erros interpretativos do passado.

8. O caso Galileu não se compreende sem estudar primeiro dois importantes acontecimentos, o Concílio de Trento (1545-1563) e a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Só se entende o contexto das atitudes tomadas pelo Santo Ofício e pelo Papa tomando em consideração o surgimento da Reforma protestante e o movimento católico de reacção da Contra-Reforma, vincado no Concílio de Trento. A Guerra dos Trinta Anos ajuda a compreender o complexo tecido político de alianças e guerras menores que marcavam o pano de fundo da Europa do tempo de Galileu.

9. O processo contra Galileu está repleto de erros e fragilidades: as provas contra Galileu não são conclusivas e, no entanto, ele recebe em 1633 uma dura e injusta pena de prisão domiciliária até ao fim da sua vida.

10. O móbil do processo está fortemente ligado às variadas inimizades que Galileu foi coleccionando ao longo da vida; os seus inimigos não o conseguiram prejudicar em 1616 porque Galileu tinha amigos poderosos, e por isso, nessa primeira fase, ele não foi condenado; em 1632-33, os amigos importantes de Galileu tinham quase todos morrido, ou tinham sido arredados dos centros de poder e de decisão devido à sua incompatibilização com as posições defendidas pelo Papa relativamente à Guerra dos Trinta Anos e à guerra sucessória em Mântua (1627-1630).
Galileu, em 1632-33, ficou à mercê das denúncias e das difamações que se montaram contra ele ao longo dos anos, e não havia ninguém com influência eclesiástica para o proteger de um processo comandado pelo Santo Ofício.

11. Para além dos erros processuais, um dos grandes equívocos da Igreja foi o de não reconhecer logo após a morte de Galileu que tinham sido cometidos erros graves; um "arrastar" nos séculos que se seguiram de uma atitude proteccionista em não reconhecer estes erros explica a enorme duração histórica desta polémica.

12. Para mais, o caso Galileu foi tomado e aproveitado ao longo dos séculos seguintes, e ainda o é hoje em dia, por pessoas vincadamente anticlericais e anticatólicas, como poderosa arma de propaganda. Foi assim que se propagou a ideia de que o caso Galileu mostraria que a Fé cristã seria incompatível com a Ciência. Este tipo de propaganda ainda é, nos nossos dias, eficazmente veiculada aos alunos do Ensino Secundário, que não recebem a necessária preparação histórica, científica e filosófica para se poder lidar com as complexidades deste caso.

CONCLUSÃO:

a) a tradição cristã (p. ex., em São Tomás de Aquino ou Santo Agostinho) consolidou a necessidade de ajustar as interpretações das Escrituras às verdades científicas; para o cristão, não há incompatibilidade entre verdades de Fé e verdades da Ciência, porque o verdadeiro não pode contradizer o verdadeiro;

b) o processo contra Galileu foi um grave erro disciplinar; como o Papa Urbano VIII não se pronunciou "ex cathedra", porque o julgamento foi sobre matéria disciplinar e não doutrinária, não se aplica a infalibilidade papal; de modo análogo, a colocação de obras em defesa do heliocentrismo no Índex de livros proibidos não possui o carácter positivo de uma afirmação sobre doutrina de fé e moral cristãs, pelo que também não se enquadra no contexto da infalibilidade papal, e tratam-se assim de decisões que podem ser reformadas ou revogadas.

A Santa Sé reconheceu os erros e a injustiça do processo contra Galileu (Papa João Paulo II - 1992).
Este reconhecimento, há muito necessário, não invalida a infalibilidade do Papa em matéria de doutrina e moral.

O Papa Bento XVI segue a mesma leitura de João Paulo II: rejeitou, por exemplo, a opinião do ateu Feyerabend, que considerava que o julgamento de Galileu fora justo. Esta rejeição das ideias de Feyerabend foi entendida em sentido oposto pelos equivocados signatários da recente petição na Universidade de Roma, La Sapienza, contra a vinda do Papa àquela instituição.

O processo contra Galileu, bem como alguns acontecimentos contemporâneos ligados ao tema, estão expostos cronologicamente num texto que fica permanentemente disponível na lista de artigos que consta da margem direita deste blogue.

Bernardo Motta

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