quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Pink Floyd - Sorrow



Um clássico de sempre: Sorrow, dos Pink Floyd. Um tema composto por David Gilmour para o álbum A Momentary Lapse of Reason (1987), aqui tocado na digressão dos Pink Floyd após o álbum The Division Bell (1994). Numa altura em que o estilo "rock" é tão mal-tratado em subprodutos de plástico e de má qualidade, é sempre bom revisitar os músicos sérios e profissionais que ajudaram a criar as estruturas de muita da música contemporânea que outros tentam imitar.

Porventura isso irritará algum fã não cristão dos Pink Floyd, mas eu, como cristão, não consigo deixar de fazer uma leitura cristã da letra deste tema. Gilmour, que nunca se achou grande poeta, dando sempre a Roger Waters a primazia no que respeitava a letras, esmerou-se neste Sorrow:

The sweet smell of a great sorrow lies over the land
Plumes of smoke rise and merge into the leaden sky:
A man lies and dreams of green fields and rivers,
But awakes to a morning with no reason for waking

He's haunted by the memory of a lost paradise
In his youth or a dream, he can't be precise
He's chained forever to a world that's departed
It's not enough, it's not enough

His blood has frozen and curdled with fright
His knees have trembled and given way in the night
His hand has weakened at the moment of truth
His step has faltered

One world, one soul
Time pass, river roll

And he talks to the river of lost love and dedication
And silent replies that swirl invitation
Flow dark and troubled to an oily sea
A grim intimation of what is to be

There's an unceasing wind that blows through this night
And there's dust in my eyes, that blinds my sight
And silence that speaks so much louder than words,
Of promises broken


Que tem isto de cristão?

A música Sorrow pode ser interpretada como uma metáfora para as trevas do pecado, para o Homem em situação de Queda, após o Pecado Original. A primeira estrofe, que principia com uma quase citação de John Steinbeck ("The decay spreads over the State, and the sweet smell is a great sorrow on the land.", da obra "The Grapes of Wrath", em português, "As Vinhas da Ira"), reflecte o desânimo do Homem perante a obra da Morte, que entrou no Mundo por causa do pecado de Adão e Eva. O Homem, mergulhado num mundo da cor do chumbo, recorda-se dos rios e dos campos verdes de um paraíso perdido (não sabe se da sua infância, ou da infância da Humanidade, se de um sonho) enquanto contempla uma realidade desoladora: a realidade do seu presente de ser caído. A recordação do paraíso perdido, e a sensação de queda, de incompletude, a sede do infinito, a sede de Deus, são todos sentimentos humanos universais, multi-culturais, e não é por acaso que muitos artistas, mesmo não provenientes da tradição judaico-cristã, os evocam.

Não me atrevo a supor intenções cristãs em David Gilmour. O que se passa é que, dado que o cristianismo é a coisa mais humana que existe, no sentido de Cristo nos mostrar o que ser humano tem de melhor, e no sentido de o cristianismo nos contar a história verdadeira sobre a Humanidade, então sempre que um artista sério, com a sua obra honesta, toca no âmago do ser humano e da existência humana, ele não pode evitar o produzir algo de verdadeiramente cristão, mesmo que involuntariamente.

PS: É quase escusado dizer, mas o minucioso "tricotado" que Gilmour faz com a sua Fender Stratocaster nas várias versões do "solo" de Sorrow é algo que ficará para sempre nos anais da música. Gilmour é um poderoso comunicador, e se a letra de Sorrow não está nada má, a sua música diz coisas infindáveis e indescritíveis por palavras.

11 comentários:

Nuno disse...

Que belíssimo post! Não há dúvida de que se pode fazer uma leitura teológica acerca seja do que for. E que dizer do mítico concerto em Veneza, pelos idos de 89?

Sem dúvida possuem um pedestal próprio, como um Beethoven, ou um Bach.

Abraço

NCB disse...

Muito interessante o post!

hehe sempre gostei mais do David Guilmour nos Pink Floyd, tanto que o Roger Waters nem entra no Pulse (concerto do filme que puseste) e é um concerto fantástico.

De facto, há muitas músicas de Rock com letras óptimas sobre os desejos mais profundos que há no ser humano. E é bom ver que parece sempre impossíveis de concretizar, são sempre desejos de infinito. E o infinito só se preenche com Infinito.

Um Santo Natal (que ainda estamos na Oitava!)

Xiquinho disse...

Olá Bernardo!

Já me fartei de rir com este post: esta de pôr o Gilmour, incréu confesso, ao serviço da causa da cristandade, é coisa que não lembra, digo eu, nem ao diabo...

Mas tiro-lhe o chapéu: nunca imaginei que fosse dotado de tão bom gosto musical!

Abraço e votos de bom ano!!!

Espectadores disse...

Caro Nuno,

Obrigado pelo comentário!

«E que dizer do mítico concerto em Veneza, pelos idos de 89?»

Felizmente, há o Youtube!

http://www.youtube.com/watch?v=mVOHGHUiFhc

Se eu fosse um bocadinho mais velho, teria tido a idade suficiente para gostar atempadamente dos Pink Floyd. Nunca vi um concerto deles ao vivo. Na última vez que estiveram em Portugal com o concerto que depois deu origem ao "Pulse", eu era um adolescente parvo e ainda não gostava (conhecia) dos Pink Floyd.

Um bom ano!

Espectadores disse...

Caro Nuno CB,

Obrigado pelo comentário!

«hehe sempre gostei mais do David Guilmour nos Pink Floyd, tanto que o Roger Waters nem entra no Pulse (concerto do filme que puseste) e é um concerto fantástico.»

Também eu.
Mas o Roger Waters fez coisas extraordinárias nos Pink Floyd. Sem ele, o "The Dark Side of the Moon" não teria existido, ou não seria o mesmo. E o "The Wall" é ainda uma das mais geniais criações do "rock" progressivo. Estou a recordar-me da música "The Trial", que apresenta um género quase operático, com o "Pink" a ser confrontado, no Tribunal da sua mente avariada, com todos os fantasmas da sua vida. A música é fascinante, e a letra é hilariante. Trata-se de Roger Waters no seu melhor.

Mas confesso: não gosto de um álbum tipicamente Waters como "The Final Cut", e gosto de todos os álbuns tipicamente Gilmour, como o "A Momentary Lapse of Reason", já na era pós-Waters.

«De facto, há muitas músicas de Rock com letras óptimas sobre os desejos mais profundos que há no ser humano.»

Tem, julgo eu, a ver com a honestidade do artista. Apesar de ser muito mais difícil, eu penso que é também possível encontrar coisas bastante sofisticadas e profundas em alguma da música de um Kurt Cobain, ou dos Metallica.

Sempre tive gostos musicais bastante heterogéneos e sempre aprendi a gostar de muitos géneros musicais.

Acho que, mais do que o formato da música, é a honestidade do artista e a forma como ele se entrega ao processo criativo, que marcam a diferença.

«Um Santo Natal (que ainda estamos na Oitava!)»

Já vou tarde no Santo Natal, mas os votos de um bom ano!

Espectadores disse...

Caríssimo Xiquinho,


«Já me fartei de rir com este post»

Um servo ao seu dispor! ;)

«esta de pôr o Gilmour, incréu confesso, ao serviço da causa da cristandade, é coisa que não lembra, digo eu, nem ao diabo...»

De propósito para contestatários como o Xiquinho, eu meti lá este "disclaimer":

«Não me atrevo a supor intenções cristãs em David Gilmour.»

Por isso, a questão que levanta é uma falsa questão. Sabendo que Gilmour não é, propriamente, um apologeta cristão, tive o cuidado de deixar claro que a interpretação cristã era minha, e não do autor.

«Mas tiro-lhe o chapéu: nunca imaginei que fosse dotado de tão bom gosto musical!»

Isso é porque a imagem que tem de mim corresponde a um "cromo", a um preconceito, a um estereótipo!

Fico feliz por ter ajudado a demolir um pouco esse estereótipo que tem de mim! ;)

Apenas uma parte (apesar de importante) daquilo que eu sou é que é vertida para o blogue Espectadores. Isso pode permitir que certos leitores façam de mim uma imagem estereotipada.

Um abraço e excelente 2011!

Espectadores disse...

Já agora, ó Xiquinho, tem algum problema com o resto da música que tenho colocado aqui no blogue? Fiquei um bocado pasmado com esta sua frase: "nunca imaginei que fosse dotado de tão bom gosto musical", quando eu faço muitos "posts" sobre música.

Eu sei que gostos não se discutem, mas fiquei curioso, dado que a música que tenho colocado no blogue é facilmente "gostável".

Xiquinho disse...

Olá Bernardo,

Um servo ao seu dispor! ;)

Nada disso... eu não me ri nesse sentido que está para aí a insinuar. Ri-me, sim, foi das voltinhas e contra-voltinhas que o Bernardo deu para chegar à conclusão que o Gilmour produziu algo verdadeiramente cristão... mesmo que involuntariamente :)
(Ontem, ri-me muito, muito, mas foi depois de ler as declarações do bispo espanhol sobre a UNESCO...)

Já agora, ó Xiquinho, tem algum problema com o resto da música que tenho colocado aqui no blogue?

Absolutamente nenhum, posso até garantir-lhe que 90% da música que oiço actualmente é clássica ou PF e afins e às vezes um bocadinho de Amy Winehouse ou Leonard Cohen.

Quanto ao resto, do que se produziu nos últimos 20 anos, pelo menos, não tenho sequer paciência. Daí ter-lhe gabado o bom gosto, que por acaso, também é o meu.

Tenho muita pena de nunca ter visto DG ao vivo, apesar de já ter visto várias vezes RW. Se nunca viu PF ao vivo sugiro-lhe que não perca o The Wall Live que vai passar por Lisboa em Março. Em Dezembro estive em LA para ver o concerto (pode ver uma amostrazinha aqui: http://www.flickr.com/photos/xiquinho/sets/72157625575692362/ ) e gostei tão pouco que no fim de Março vou em peregrinação a Barcelona para ver outra vez :)

Quem sabe até, se não nos podíamos encontrar por lá :)

Renovado abraço

PS, curiosidade: sabia que o Dark Side está no top 10 das preferências papais?

Anónimo disse...

Mas..... surpresa , voce "aposta" um post nos pink, não sabia. Eles não são muito de ir a missas. Mas gostei.

Espectadores disse...

Xiquinho,

Vou estar atento ao The Wall Live! Não sabia que o espectáculo vinha a Lisboa.

«PS, curiosidade: sabia que o Dark Side está no top 10 das preferências papais?»

Esta deu-me trabalho a tirar a limpo.
Você baralha-me.
Não se trata de um "top 10 de preferências papais", mas sim de um "top 10" feito pela linha editorial do jornal Osservatore Romano.

É frequente que muitos observadores fora do contexto façam a confusão de interpretarem o Osservatore Romano como quem lê textos directos do Papa, mas não é esse o caso.

O jornal do Vaticano tem uma larga liberdade editorial, que aliás tem causado não poucos dissabores ao próprio Papa.

Na minha opinião, o Vian não está a ser um bom editor do Osservatore Romano. Mas nenhum vaticanista confunde o Osservatore Romano com o Papa.

Bento XVI é um homem de Mozart e de Bach. Poderia ser um admirador de Gilmour, porque não?
Mas é bem sabido que o Papa não aprecia música "rock". Evidentemente, por questões de gosto pessoal, sem isso implicar qualquer tipo de sanção moral à música "rock".

Repito: a lista "top 10" que você refere é da autoria dos editores do Osservatore Romano. Não é um "top 10" papal.

Abraço!

Unknown disse...

Cara, sempre quando ouvia está música sorrow, comentava com minha esposa - "ela me lembra espaço, cosmo, mistério infinito... essas coisas que a busca humana nos afere. Aliás, esta canção é a minha predileta de todo curso "floydiano". Agora com esta sua MARAVILHOSA explanação, me fez refletir ainda mais a cerca de minha história, de meu ser divino. Nesta real sintonia lhe digo, continue a Amar o Cristo!