sábado, 16 de junho de 2012

Fatal e precário?


É com estes epítetos que Pedro Mexia se refere ao casamento, no seu artigo de opinião da revista Atual  (sic) de hoje (jornal Expresso). Mexia baseia-se num ensaio de Eduardo Lourenço, ensaio esse que eu não li e por isso não irei comentar. No entanto, o texto de Pedro Mexia merece uma série de críticas...
Diz Pedro Mexia que "não há nada de 'natural' no casamento, trata-se de ritualizar e institucionalizar uma troca e uma realidade biológica que, essa sim, é estritamente animal.". Em primeiro lugar, há uma patente contradição aqui: se, como diz Mexia, não há nada de natural no casamento, como é que se apoiaria numa realidade biológica (animal), e portanto, natural?
Evidentemente, o casamento, antes de ser um ritual, antes de ser uma instituição social, é uma realidade biológica, e portanto natural. Quando nos referimos à espécie humana sabemos que, sendo a nossa espécie uma das que se reproduzem de forma sexuada, ela só está totalmente representada pelos dois sexos, o masculino e o feminino. Antes de mais nada, há o facto biológico de que o ser humano é homem e mulher. O casamento representa, antes de mais nada, antes de qualquer ritual ou instituição, um facto biológico inegável.
Pedro Mexia diz que o casamento assenta numa realidade biológica que, segundo ele, "é estritamente animal". Ora se é verdade que no que diz respeito à sexualidade, o acto conjugal humano é análogo ao dos restantes animais, dado que o ser humano possui faculdades intelectuais e psicológicas (emotivas, afectivas) superiores e únicas quando comparadas com as dos restantes animais, torna-se evidente que o casamento entre seres humanos é um facto que transcende o aspecto puramente animal do acto conjugal. Incorpora-o, mas contém ainda a união entre um intelecto masculino e um intelecto feminino, entre uma psique feminina e uma masculina, a mesma união de realidades complementares que vemos no acto conjugal. E só desta forma, vemos o casamento humano, antes de qualquer ritual ou instituição, como uma realidade multi-camada (física, psicológica, intelectual) que, na união dos opostos complementares do masculino e do feminino, representa de forma completa o que é o ser humano.
Por tudo isto, e a um nível ainda pré-social, vemos que a ideia que Pedro Mexia tem do casamento humano é uma ideia errada e amputada.
Mas a parte mais espantosa é a que se segue: Pedro Mexia diz que o casamento indissolúvel "é uma formulação antiga, mas que entretanto deixou de ser efectiva como crença", dizendo ainda a temeridade de que "as pessoas, mesmo as crentes, mesmo as que casam 'pela Igreja', não acreditam em casamentos indissolúveis, e dedicam à 'indissolubilidade' uma indiferença vaga e calada".
Mas Pedro Mexia pretende mesmo que não existem no Mundo pessoas que acreditam no casamento indissolúvel? Bom, permita-me, Pedro, dizer-lhe que eu acredito. E tenho a leve impressão de que não estou sozinho.E tenho ainda a impressão de que haverá uma pessoa ou outra, mesmo não crente, que também acredita nesse conceito, que antes de ser religioso, antes de ser social, é um conceito antropológico. Antes da teologia (cristã ou outra) do casamento, está a antropologia da coisa, e não há como negar a verdade de que o conceito de indissolubilidade, antes de qualquer teorização teológica, está ligado à estabilidade familiar. Não só à estabilidade do homem e da mulher, casal, que vêem o seu cônjugue como a outra metade de uma coisa só, que se entregam um ao outro e se realizam na plenitude do que a sua essência humana, masculina e feminina, lhes diz. Mas também à estabilidade da família no sentido em que tal indissolubilidade proporciona o meio ideal, e mesmo natural, para a protecção e a educação dos filhos. E mesmo quando estes se emancipam, o matrimónio dos seus pais, quando perdura (e muitas vezes perdura) permanece como uma realidade agregadora, como a realidade sobre a qual as suas vidas estão construídas. Tudo isto é o casamento.
Depois, Pedro Mexia mostra desconhecer alguns aspectos elementares da teologia cristã acerca do matrimónio: Mexia alvitra que o cristão "precisa de uma instituição 'idealmente eterna'", mas porque razão equipara ele a indissolubilidade à eternidade? Nunca o cristianismo pretendeu que o casamento, sendo indissolúvel nesta vida como é, teria que ser eterno. Em primeiro lugar, como é sabido, o cristianismo nunca considerou imoral que uma viúva ou um viúvo se voltasse a casar, o que imediatamente destrói a ideia errada de Pedro Mexia acerca do casamento cristão ser uma institução "idealmente eterna". Mas o erro de Mexia vai mais fundo: é que o próprio Cristo deixou bem claro que nenhum casamento perdurará para a vida eterna:
"Na ressurreição, nem os homens terão mulheres nem as mulheres, maridos; mas serão como anjos no Céu.", São Mateus, 22, 30.
E, espantosamenete, Pedro Mexia sugere a enormidade de que o casamento, para os cristãos, seria como que um "mal menor". E, para isso, socorre-se de São Paulo. Ora, isso é de pasmar, sobretudo quando o casamento humano é a imagem que a teologia cristã, e também São Paulo, utiliza para explicar a união mística entre Cristo e a Sua Igreja:
"Por isso, o homem deixará o pai e a mãe, unir-se-á à sua mulher e serão os dois uma só carne. Grande é este mistério; mas eu interpreto-o em relação a Cristo e à Igreja.", Carta de São Paulo aos Efésios, 5, 31-32.
Será que tal união mística entre Cristo e a Igreja é explicada com base num "mal menor"? Seria absurdo que o cristianismo considerasse a união entre homem e mulher como "um mal menor", e isso significaria nada mais e nada menos do que a queda na heresia gnóstica, que a Igreja sempre rejeitou, porque considerava a Criação como maléfica, obra de um demiurgo maligno, considerando portanto que a sexualidade era imoral e repulsiva.
Quando São Paulo diz que "mais vale casar-se do que abrasar-se", ele está, obviamente, a dizer que mais vale tomar a opção pelo casamento, para aqueles que não são capazes de uma vida celibatária de consagração a Deus. Que tal opção, nesses casos, é melhor do que, não se casando, viverem uma vida de concupiscência. Nunca São Paulo pretende considerar o casamento como um mal menor, pela simples razão lógica de que São Paulo não considera o casamento como um mal. E se São Paulo louva as virtudes do ideal celibatário que ele mesmo escolheu, é em vista do que Cristo disse (São Mateus, 19, 12) acerca daqueles que, por amor a Deus, vivem o celibato, e não como uma crítica ao casamento.
Se o cristianismo tivesse imposto o celibato como ideal cristão, no sentido de regra moral para toda a humanidade, as consequências sociais dessa recomendação seriam ruinosas, as mesmas que teríamos sofrido se a heresia cátara (gnóstica) tivesse vingado na Europa medieval, com a sua condenação da reprodução como acto imoral: a extinção de populações inteiras por falta de descendência. O cristianismo não é gnóstico: é, aliás, o oposto disso.
O cristianismo vê o casamento como uma união mística, como uma realidade querida e desejada por Deus, e mais ainda, como uma espécie de imagem do próprio Deus:
"Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher.", Génesis, 1, 27.
Em justiça, devo dizer que concordo com o que Pedro Mexia escreve acerca do facto de que o cristianismo não entendeu nunca o casamento como algo fundado exclusivamente na paixão ou no amor. Sem dúvida que uma realidade tão importante como a do casamento não poderia estar estruturada sobre emoções ou paixões voláteis ou temporárias, e se o cristianismo assim o entendeu, isso só soma pontos à maturidade da sua visão antropológica e social.