sábado, 29 de dezembro de 2012

Demonstrar a existência de Deus...

Ainda é surpresa para muitas pessoas, mesmo para quem tem formação católica, que a Igreja Católica defende que a existência de Deus pode ser conhecida com certeza racional a partir da observação das coisas existentes. O Concílio Vaticano I declarou que «(…) Deus, a causa primeira (principium) e o fim de todas as coisas, pode, a partir das coisas criadas, ser conhecido com certeza pelo poder natural da razão humana (…)» (1).

São Tomás de Aquino (1225-1274) é uma referência incontornável no que diz respeito a demonstrações filosóficas da existência de Deus e dos Seus atributos. São Tomás trata do tema na Suma Teológica (2) e também na Suma contra os Gentios (3). Outros nomes importantes para este tema são, por exemplo, Santo Anselmo de Cantuária (1033-1109), Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) e Samuel Clarke (1675-1729). Mas a procura e a defesa de argumentos filosóficos para demonstrar a existência de Deus (Teologia Natural) é uma actividade intelectual bem longe de passar de moda, e um bom número de académicos nas áreas da Teologia e da Filosofia continuam dedicados a ela, tendo-se verificado nos últimos anos um aumento substancial do número de publicações académicas na área da Teologia Natural.

A Igreja Católica reservou um lugar especial para São Tomás de Aquino e para a sua obra, pelo que, na cultura católica, os argumentos tomistas sempre tiveram a primazia e a preferência, não obstante o trabalho de qualidade que se encontra em inúmeros outros pensadores cristãos que procuraram defender racionalmente a existência de Deus. O que é interessante nos argumentos de São Tomás é que o passar do tempo, e as sucessivas vagas de críticos dos seus argumentos, não trouxe a sua refutação. Os argumentos tomistas para demonstrar racionalmente a existência de Deus continuam tão válidos hoje como no momento em que foram escritos, com a particularidade de que os argumentos, sendo do tipo filosófico-ontológico, permanecem imunes às constantes descobertas científicas e mudanças de paradigma científico. Imunes no sentido em que a terminologia e os conceitos usados por São Tomás são independentes de qualquer teoria científica, e não no sentido em que o progresso científico fosse irrelevante para a compreensão destes argumentos tomistas: antes pelo contrário, é sempre muito importante uma sólida formação científica para melhor apreciar a força destes argumentos (ver o post scriptum). Dependem apenas de algumas teses filosóficas acerca da realidade, e da observação das coisas à nossa volta.

Talvez o maior obstáculo para a boa compreensão dos argumentos tomistas esteja na terminologia usada por São Tomás, uma terminologia de base aristotélica, cujo conhecimento é indispensável para entender os argumentos. Grande parte dos críticos destes argumentos falham, precisamente, por não compreenderem a terminologia ou por a interpretarem à luz do significado moderno dessa terminologia.

Há muito tempo que queria fazer a experiência de colocar por escrito um argumento para a existência de Deus, descaradamente baseado nos argumentos de São Tomás, mas escrito em linguagem mais acessível para o leitor moderno. Nunca é demais frisar que o melhor é sempre ir ao original, e procurar compreender São Tomás no seu contexto e dominar os seus termos e conceitos. Para isso, disponibilizei, no âmbito do meu Curso Ciência e Fé, um módulo inteiramente dedicado a São Tomás de Aquino e aos seus argumentos para demonstrar a existência de Deus.

De seguida, vou então atrever-me a estruturar um argumento que talvez possa ser aceite pelo ateu mais renitente, desde que este esteja disposto a ser levado pela razão, termine ela onde terminar...

Como todo e qualquer argumento, este também depende de premissas, ou seja, de teses que eu vou tomar como verdadeiras sem as ter demonstrado. Uma saída fácil para qualquer ateu ou agnóstico passa por, simplesmente, rejeitar qualquer uma (basta uma) dessas premissas, porque o argumento não funciona sem elas (todas). De notar também que este argumento está escrito em linguagem comum, sem o rigor e o formalismo da lógica.

Premissas
  1. Os princípios da identidade e da não-contradição aplicam-se à realidade natural: uma dada coisa existente na natureza não pode ser o que é, e simultaneamente algo diferente do que é, do mesmo ponto de vista.
  2. Existe uma realidade objectiva à minha volta, que é independente dos meus pensamentos, ou seja, a realidade externa a mim não é uma invenção da minha mente.
  3. Os meus sentidos são relativamente fiáveis, ou seja, não tendo que ser infalíveis, os meus sentidos reflectem de forma suficientemente adequada a realidade à minha volta, de tal forma que eu posso confiar neles ao ponto de achar que não estou permanentemente iludido por falsa informação sensorial. Não digo que eu não possa ser vítima de ilusões ópticas, ou enganado por um som parecido com outro, e assim por diante. Digo apenas que posso confiar que, por exemplo, quando converso com as pessoas que conheço, estou, na esmagadora maioria das vezes, mesmo a conversar com elas, e não estou iludido nisso, ou quando observo a estrada que passa à frente da minha porta de casa, tenho quase a certeza absoluta de que ela está lá e não é uma miragem.
  4. Que a teoria correcta acerca do tempo é a de tipo A (seguindo a nomenclatura de McTaggart), ou seja, que o passado já não existe e que o futuro ainda não existe. Isto implica negar a teoria oposta a ela, a teoria de tipo B, que defende que passado, presente e futuro existem sempre e perpetuamente. Nessa teoria de tipo B, as coisas não começam a existir, ou deixam de existir: elas existem sempre, algures numa coordenada temporal qualquer. Não quero aqui e agora defender os méritos e deméritos de cada teoria: tomo como verdadeira a teoria de tipo A, que aliás é a teoria que a esmagadora maioria das pessoas tomam como verdadeira, mesmo sem conhecerem esta nomenclatura.
  5. Que do nada, nada vem. Ou seja, sendo o "nada" um termo usado para designar a não existência de coisas, então rigorosamente coisa alguma pode surgir do que não existe. Dito de outra forma, se rigorosamente nada existisse, então nada poderia começar a existir. De notar que, mesmo para um ateu, esta premissa não tem que ser polémica: muitos ateus, quando pensam no fundamento  último de toda a realidade, e porque sabem que esse fundamento não pode ser o nada,  substituem uma coisa eterna e pessoal (o Deus dos teístas, que eles rejeitam) por uma coisa eterna e impessoal (a matéria, ou um ente impessoal como a divindade dos deístas - Espinosa, Einstein, etc.). Em suma, a explicação e causa última da realidade de tudo o que existe, não pode ser o nada. Tem que ser algo.
  6. Que há essências nas coisas, ou seja, que as distinções que vemos nas diferentes coisas à nossa volta reflectem essências distintas dessas coisas, que nos permitem agrupá-las em categorias reais, e não meramente subjectivas e convencionais. Dito de outro modo, que usamos nomes diferentes para coisas que nos parecem diferentes porque acreditamos que elas têm mesmo essências diferentes. Por exemplo, se aceitamos que há realmente uma essência na coisa que chamamos "ouro" que é distinta da essência da coisa a que chamamos "prata", isso quer dizer que consideramos o ouro essencial e realmente diferente da prata. Em termos técnicos, aceitar a realidade do essencialismo implica abandonar o nominalismo. Aceitar esta premissa implica também aceitar a realidade objectiva dos conceitos de perfeição e imperfeição. Uma coisa será tão mais perfeita quão melhor representar a categoria a que pertence, e será tão mais imperfeita quão pior representar a categoria a que pertence. Por exemplo, se tivermos uma liga metálica de Ouro misturado com vestígios de outros elementos, quanto mais perto da unidade for o rácio entre a massa de Ouro presente nessa liga metálica e a massa total dessa liga metálica, mais pura e perfeita será essa liga metálica. No limite, dizer que determinada liga metálica é uma amostra perfeita de Ouro implica dizer que cem por cento da massa dessa amostra é Ouro. Um outro exemplo: uma planta saudável é mais perfeita que uma planta doente. Esta premissa, para efeitos do argumento abaixo, apenas é fundamental para aferirmos a propriedade divina da perfeição. Se ela for rejeitada, apenas essa propriedade divina fica por demonstrar no argumento abaixo.

Argumento
  1. Quando observamos a realidade natural, constatamos que há mudança (contra Parménides, que dizia que toda a mudança era ilusória, e que tudo era permanência), ou seja, há coisas que mudam.
  2. Quando observamos a realidade natural, constatamos que há permanência (contra Heráclito, que dizia que tudo era mudança, e que nada permanecia), ou seja, que há coisas que permanecem, pelo menos ao longo de um determinado intervalo temporal.
  3. Pode haver mudança mesmo nas coisas que permanecem durante algum intervalo de tempo, e isso implica que certas coisas podem mudar sem deixarem de ser o que são; chamemos "substância" a todas as coisas que persistem durante algum tempo, sofrendo ou não mudanças sem deixarem de ser o que são, e chamemos "acidente" a todo o tipo de propriedade inerente a uma substância, uma propriedade que esta poderia ou não possuir sem deixar de ser o que é: por exemplo, a maçã é uma substância porque designa algo que permanece durante um determinado período de tempo, e é um acidente de certa maçã que ela esteja a certa altura numa dada posição, porque ela continuaria a ser a mesma maçã se estivesse noutro lugar. Outro exemplo de acidente: o peso de uma dada maçã pode variar ao longo do tempo, que ela continua a ser a mesma maçã.
  4. Toda a mudança implica que algo deixa de existir e que algo passa a existir. Sendo uma verdade evidente para substâncias, também é válida para acidentes: quando uma maçã muda de posição X para uma posição Y, o que deixa de existir é o acidente "posição X" associado à maçã e passa a existir o acidente "posição Y" associado à mesma maçã.
  5. Quando uma mudança consiste na transformação de uma substância noutra, essa mudança é substancial. Numa mudança substancial, a substância anterior desaparece para dar lugar à nova substância. Por exemplo, na electrólise da água, esta desaparece para dar lugar a duas novas substâncias: Hidrogénio e Oxigénio.
  6. Quando uma mudança consiste na transformação de um acidente noutro, essa mudança é acidental. Numa mudança acidental, a substância permanece, mas o acidente anterior desaparece para dar lugar ao novo acidente. Por exemplo, se movemos uma molécula de água de uma posição para outra, essa mudança é acidental.
  7. Para que possa ocorrer qualquer mudança de A para B, substancial ou acidental, três factos têm que estar presentes: 
    1. A, que vai desaparecer para dar lugar a B, não pode ser já B, senão não haveria qualquer mudança de A para B;
    2. A, que vai desaparecer para dar lugar a B, tem que ter a(s) característica(s) necessária(s) para poder mudar para B; ou seja, não é qualquer A que pode mudar para B, mas apenas mudará para B aquele A que tenha a capacidade, ou a potencialidade, para mudar para B; ou seja, em A tem que existir a capacidade (ou potencialidade) de A se transformar em B;
    3. Um C que provoca a mudança de A para B (uma causa para a mudança).
  8. Esse C não pode ser B porque, como vimos, a mudança de A para B implica que B ainda não existe antes da mudança, e só começa a existir depois da mudança. B nunca poderia ser a causa do surgimento de B, senão B teria que existir antes de fazer surgir B, o que é contraditório.
  9. Esse C também não pode ser A. Compreende-se este ponto refutando todas as hipóteses alternativas:
    1. Dado que B não pode ser A (senão não havia real mudança);
    2. Dado que B não pode surgir do nada (porque do nada, nada vem);
    3. Para explicar a mudança de A para B só resta:
      1. Supor que basta a capacidade (ou potencialidade) que existe em A para mudar para B; mas esta capacidade (ou potencialidade) que existe em A para mudar para B, sendo algo meramente potencial e inerente a A, ainda não é algo que exista actualmente, mas apenas potencialmente (virtualmente) em A, pelo que também esta mera potencialidade que A tem para ser B não é suficiente para fazer surgir B;
      2. Finalmente, admitir um C distinto de A e de B.
  10. Para que C possa provocar a mudança de A para B, é necessário que C já exista quando muda A para B.
  11. Se C começou a existir algures no passado, então um D já existiria antes de C, e fez surgir C a partir de algo existente. E se D começou a existir algures no passado, então um E já existia antes de D, e fez surgir D a partir de algo existente, e assim por diante.
  12. Mas a cadeia explicativa apresentada no ponto anterior não pode regredir perpetuamente para o passado, e tem que principiar em algo eterno, ou seja, em algo que sempre existiu. Porque se tudo o que existe fosse não eterno, então a certa altura do passado, nada existiria. E tomámos como premissa que do nada, nada vem. Pelo que se, a certa altura do passado, nada existiria, então porque do nada, nada vem, hoje nada existiria. Mas vemos que existem coisas, pelo que tem que haver alguma (pelo menos uma) coisa que sempre existiu. Pode existir uma coisa eterna apenas, ou podem existir várias coisas eternas, mas tem que existir pelo menos uma coisa eterna.
    1. Objecção: E se a cadeia explicativa apresentada no ponto anterior pudesse regredir perpetuamente para o passado?
      1. Para analisar esta possibilidade, é importante distinguir entre dois tipos de causalidade: ou uma coisa B causa outra coisa C de forma "instrumental", porque B não tem em si mesma o que é necessário para causar C, mas B recebe essa causalidade de outra coisa A (essa coisa A "usa" B como um "instrumento" para causar C); ou uma coisa B causa outra coisa C de forma "essencial", porque B tem em si mesma o que é necessário para causar C; 
      2. Poderíamos supor uma cadeia infinita de relações causa-efeito do tipo "essencial", na qual uma determinada coisa C poderia causar por si mesma outra coisa D, mesmo que a causa de C, uma outra coisa B, já não existisse, porque apesar de C ter surgido por causa de B, a coisa C é capaz, em si mesma ("essencialmente"), de causar D; por exemplo, num modelo cósmico cíclico, seria possível supor uma cadeia infinita de causas e efeitos físicos, uma cadeia sem princípio nem fim, sem nunca ser necessária uma "causa primeira" algures no passado;
      3. No entanto, já não é possível uma cadeia infinita de relações causa-efeito do tipo "instrumental", pois se uma coisa C causa "instrumentalmente" outra coisa D é por causa de B, que confere à coisa C a capacidade de causar outra coisa D, e assim por diante; mas desta vez, esta cadeia não pode regredir perpetuamente, ou seja, todos os elos da cadeia até poderiam ser instrumentais, excepto o primeiro, que teria que ser uma coisa capaz, em si mesma ("essencialmente"), de exercer poder causal no resto dos elos "instrumentais" da cadeia; por exemplo, para que uma molécula de água exista no presente é necessária a existência, no presente, de dois átomos de Hidrogénio e um átomo de Oxigénio que a constituam; por sua vez, a existência destes átomos no presente requer a existência de determinada quantidade de quarks e leptões que os constituam; no entanto, esta cadeia explicativa da existência presente de uma molécula de água tem que terminar numa "causa primeira" e não causada ("primeira" em sentido ontológico, como causa fundamental da existência da matéria, e não "primeira" em sentido temporal), caso contrário a molécula de água não existiria no presente; esta "causa primeira" está na origem da cadeia de causas materiais que garante a existência actual da molécula de água (e de qualquer outra coisa material, o raciocínio seria idêntico); sendo não causada, esta "causa primeira" seria eterna porque tudo o que começa a existir é, necessariamente, algo causado por algo já existente; para ver porque só há uma "causa primeira" ver o ponto 18;
      4. Assim, a história do Cosmos até poderia ser eterna, explicada por uma (ou várias) eterna cadeia de relações causa-efeito do tipo "essencial", o que dispensaria uma "causa primeira" de tipo temporal; mas para existir algo no presente (em vez de nada existir), as cadeias de relações causa-efeito do tipo "instrumental" têm que terminar numa "causa primeira" de tipo ontológico, causa essa que é não causada e é eterna;
    2. Objecção: E se uma cadeia de relações causa-efeito do tipo "instrumental" fosse circular; ela não seria infinita, dispensando assim uma "causa primeira" não instrumental?
      1. Mesmo admitindo esse hipotético cenário, note-se que todos os elos dessa cadeia circular, mesmo que fossem infinitos, seriam de tipo "instrumental", ou seja, não teriam em si mesmos o que é necessário para causar o elo seguinte na cadeia, e dependeriam de um elo anterior para exercer a sua causalidade; isto sucederia com todos os elos da cadeia, sem excepção (porque postulámos uma cadeia circular de tipo "instrumental");
      2. Logo, teria que existir uma causa distinta dessa cadeia, uma causa capaz de causar essa cadeia circular, e de a dotar da sua peculiar estrutura causal;
      3. Se essa causa distinta da cadeia, por sua vez, não tivesse em si mesma o necessário para causar a cadeia, e fosse apenas "instrumental" no causar da cadeia, então ela dependeria de uma outra causa, e assim por diante, mas pelas razões invocadas atrás, esta outra cadeia de tipo "instrumental" teria que terminar numa "causa primeira" de tipo ontológico, causa essa que não é causada e é eterna;
  13. Uma coisa eterna, ou tem a sua eternidade explicada (causada, justificada) por outra coisa eterna e mais fundamental, ou então essa coisa eterna tem em si mesma a explicação da sua eternidade. No primeiro caso, se uma coisa eterna tem a sua eternidade explicada por outra coisa eterna e mais fundamental, essa cadeia explicativa não pode regredir indefinidamente: tem que principiar numa coisa eterna que tem em si mesma a explicação da sua eternidade.
  14. Essa coisa eterna, que tem em si mesma a explicação da sua eternidade, é algo que: a) existe desde sempre; b) não recebeu a sua existência de nenhuma outra coisa; c) a sua inexistência é impossível. Por isso, essa coisa terá que ser a sua própria existência, ou melhor, terá que ser idêntica ao seu acto de existir, terá que ser auto-existente. Nela, essência e existência são idênticas. 
  15. Essa coisa eterna e auto-existente não muda, é imutável, porque mudar implicaria deixar de existir, substancial ou acidentalmente, e implicaria uma outra coisa qualquer pré-existente para provocar (causar) essa mudança. 
  16. Essa coisa eterna, auto-existente e imutável não pode ser o próprio Universo, ou qualquer substrato material ou energético, porque matéria e energia mudam continuamente, e portanto, não servem para fundamento último de toda a realidade. Para além disso, o Universo poderia ser diferente do que é (poderia ter mais ou menos massa-energia do que a que tem, poderia ser mais antigo ou mais recente do que é, etc.), e por isso, o Universo não tem em si mesmo a razão de ser como é, ou seja, não pode ser auto-existente.
  17. Se essa coisa eterna, auto-existente e imutável não pode ser matéria ou energia, então é imaterial. Se é imaterial, não tem partes ou componentes, e portanto é simples.
  18. Essa coisa eterna, auto-existente, imutável, imaterial e simples tem que ser una, ou seja, não pode haver mais do que uma. Isto deduz-se porque não haveria forma de distinguir duas ou mais coisas cuja essência fosse idêntica à sua existência. Dito de outra forma, para as distinguir, teríamos que o fazer por eventuais diferenças substanciais, ou por eventuais diferenças acidentais. Mas a substância de uma coisa auto-existente seria sempre idêntica à substância de uma outra hipotética coisa auto-existente. Haveria forma de as distinguir acidentalmente? Não, porque uma coisa simples não pode ter acidentes, porque só as coisas não simples (compostas) têm composição de substância com acidentes. Regredindo todas as cadeias explicativas de tudo o que existe até essa coisa una, ela é a causa primeira da existência de tudo o que existe.
  19. Essa coisa eterna, auto-existente, imutável, imaterial, simples, una e causa primeira é ainda sumamente perfeita. Se essa coisa fosse imperfeita, ou não fosse sumamente perfeita, isso quereria dizer que ela teria, em si mesma, a capacidade ou o potencial para ser melhorada ou aperfeiçoada. Ora, como vimos atrás, isso implicaria uma outra coisa pré-existente para provocar essa mudança no sentido do melhoramento ou aperfeiçoamento, e como já chegámos a existência de uma causa primeira, já não há qualquer possibilidade de melhoramento ou aperfeiçoamento dessa causa primeira porque já não há qualquer capacidade para essa causa primeira sofrer qualquer tipo de mudança (ela é, como vimos, imutável).
  20. Essa coisa eterna, auto-existente, imutável,  imaterialsimples,  una, causa primeira e sumamente perfeita é algo que corresponde ao conceito teísta de Deus

Esta é a segunda versão do argumento. Este argumento não pretende justificar todos os atributos divinos defendidos pelos teístas, mas apenas alguns deles. Por exemplo, este argumento ainda não procura defender atributos divinos como o da omnisciência, omnipotência, omnipresença, infinitude, etc. O meu objectivo é vir a enriquecer em breve este argumento com a defesa de mais atributos divinos. Muito agradeceria os comentários e críticas, de forma a que sejam encontradas falhas ou imperfeições no argumento, para este ser aperfeiçoado até onde for possível.


PS: Haveria muito a dizer acerca da conciliação entre estes argumentos e o actual conhecimento científico, sobretudo nas áreas da física e da cosmologia. Algumas das premissas usadas na base deste argumento têm importantes implicações científicas. Por exemplo, a premissa 4, que assume a teoria A do tempo, é incompatível com uma interpretação realista do espaço-tempo de Minkowski. A conveniência matemática deste modelo espácio-temporal no contexto da relatividade restrita de Einstein não tem que ser negada: basta que, em defesa de uma teoria A do tempo, não se interprete o espaço-tempo de Minkowski como algo real, mas apenas como algo matematicamente útil. Há também toda uma literatura académica (Kenny, e outros) que pretende demonstrar a incompatibilidade dos argumentos cosmológicos de São Tomás de Aquino (que eu segui na construção deste meu argumento) com a física moderna, seja ela newtoniana ou einsteiniana. Nem sempre é fácil encontrá-los, mas há excelentes artigos escritos por filósofos tomistas que mostram cabalmente que não existe qualquer incompatibilidade entre os argumentos tomistas e a física moderna. Veja-se, por exemplo, o artigo de David Oderberg (Universidade de Reading, Reino Unido), "Whatever is Changing is Being Changed by Something Else": A Reappraisal of Premise One of the First Way, ou os artigos de Edward Feser (Pasadena City College, EUA) no Volume 10 dos Proceedings of the Society for Medieval Logic and Metaphysics.

(1) Terceira Sessão, 24 de Abril de 1870, Capítulo 2, parágrafo 1.
(3) Suma contra os Gentios, Livro I (“Deus”), Capítulo 13 (“Argumentos para provar a existência de Deus”).

PPS: Este "post" foi modificado a 25 de Março de 2013, no sentido de substituir o termo "axioma" por "premissa", dado que o uso do termo "axioma" foi contestado pelo Ludwig Krippahl, e apesar de ele não ter razão nas suas críticas, eu não quero prejudicar a compreensão do argumento, e preferi usar o termo "premissa" para classificar as teses que tomo como verdadeiras, sem as demonstrar, e que dvem estar na base deste argumento para que ele funcione.