segunda-feira, 25 de março de 2013

Comentários do Ludwig ao meu argumento para demonstrar a existência de Deus


Como sempre, agradeço-lhe a amabilidade e as suas críticas, que me permitem quase sempre melhorar os meus textos. Vou comentar, como é costume, o texto do Ludwig por troços.
"O Bernardo Motta rescreveu há uns meses o argumento teológico de Tomás de Aquino, defendendo que «a existência de Deus pode ser conhecida com certeza racional a partir da observação das coisas existentes». No entanto, contrariando a sua própria alegação, em vez de fundamentar essa alegada certeza em observações o Bernardo baseia-se apenas em especulações às quais abusivamente designa de axiomas."
O argumento tem um ponto de partida muito claro, logo explícito no ponto 1 e no ponto 2: constatar que há mudança e que há permanência. E constatamos isso através da observação das coisas existentes.
O argumento tem um ponto de chegada muito claro, explícito no ponto 20: a necessária existência de uma coisa eterna, auto-existente, imutável, imaterial, simples, una, causa primeira e sumamente perfeita, que é algo que corresponde ao conceito teísta de Deus (não necessariamente o Deus do teísmo judaico-cristão). 

Como todo e qualquer argumento, ele depende de pressupostos, de teses que não serão demonstradas, mas serão tomadas como sendo verdadeiras. No caso deste argumento as teses são bastante razoáveis, e não deverão causar problemas a um ateu que se debruçe sobre elas e que as considere a sério. Ao escolher a palavra "axioma" para me referir a estas teses tomei uma opção perfeitamente enquadrada no espírico aristotélico-tomista no qual o argumento se desenvolveu. Mas admito que para uma pessoa habituada a tomar "axioma" em estrito sentido lógico ou matemático, a palavra possa gerar equívocos. Por isso, hoje mesmo, substituí a palavra "axioma" por "premissa", sem que isso altere em nada o argumento, como é evidente.

Ludwig: o que tens que te dar conta é das consequências desastrosas que advêm da rejeição de qualquer uma das premissas que eu tomo como verdadeiras. E tens que considerar a possibilidade de que a conclusão racional do argumento, a existência de Deus, seja tão repulsiva para ti que todo o teu sistema emotivo está alerta para evitar a conclusão do argumento, mesmo que isso implique defender uma coisa absurda.

Ora isso não é bom. Preferir a irracionalidade porque não se quer que Deus exista é um mau serviço à razão, um mau uso do intelecto, e uma falta da respeito para com a realidade.

"Este problema pode ser ilustrado com um contra-argumento muito mais sucinto do que o do Bernardo. 
O universo é o conjunto de tudo o que existe. 
O universo surgiu há cerca de 13800 milhões de anos. 
Logo, não pode existir um deus eterno.   
A primeira premissa pode ser considerada um axioma porque apenas estipula como uso o termo “universo” no contexto deste argumento. Mesmo quem prefira dar-lhe um significado diferente pode aceitar que, neste argumento, é isso que quero dizer. Mas a segunda premissa não pode ser um axioma porque não se pode determinar só com o que sabemos da nossa liguagem se tudo o que existe só existe há cerca de 13800 milhões de anos. É por isso que este argumento não basta para demonstrar que esse deus é um personagem fictício."
O teu contra-argumento ilustra perfeitamente o que seria um exemplo de argumentação falaciosa. Tens toda a razão no que escreves aqui: não se pode determinar se uma dada coisa existe ou não só com base na nossa linguagem e em definições. E gosto do teu poder de síntese, qualidade que me falta. Mas felizmente, não foi isso que eu fiz. O teu tiro saiu ao lado. Eu escrevi um argumento que demonstra que Deus existe usando apenas a observação da realidade, e partindo de premissas (também elas fundamentadas na observação, junto com o uso da razão) que deverias aceitar, por serem muito razoáveis.

Nota bem: já mudei a palavra "axioma" para "premissa". Esquece, por favor, a palavra "axioma", apesar de ela ser usada em Filosofia há milénios. O teu exemplo mostra bem que tu interpretaste "axioma" como "definição", ao estilo dos axiomas matemáticos e lógicos, e infelizmente, esse equívoco fez com que centrasses os teus esforços neste problema de terminologia, e assim não te pudeste dedicar ao meu argumento.
"Essa conclusão é correcta e pode ser justificada, mas não inventando axiomas. É apontar evidências concretas como a diversidade dos mitos, a capacidade humana para inventar deuses, o jeito que a religião dá independentemente de ser verdade ou não e assim por diante. Não resolvemos estes assuntos com argumentos axiomáticos como se se tratasse de um mero exercício de dedução formal." 
Ora está então esclarecido. Eu não inventei "axiomas". Eu, em total honestidade, apresentei quais são as premissas filosóficas que eu considero verdadeiras, antes de escrever o argumento. Elas não pertencem ao argumento propriamente dito. Constituem o "background" contra o qual eu construo o meu argumento. E todos nós temos algum tipo de "background". Por exemplo, tudo o que tu escreves estará enformado pelo "background" do teu fisicalismo, a tua convicção de que toda a realidade é física.

E eu fui bem claro acerca do que tu, e outros ateus como tu, poderiam e deveriam fazer para evitar a tão indesejada existência de Deus: "Uma saída fácil para qualquer ateu ou agnóstico passa por, simplesmente, rejeitar qualquer uma (basta uma) dessas premissas, porque o argumento não funciona sem elas (todas). De notar também que este argumento está escrito em linguagem comum, sem o rigor e o formalismo da lógica.". (Nota que ainda tive o cuidado de explicar que não estava a usar o formalismo da lógica, o que poderia ter-te dado acesso à interpretação clara da palavra "axioma"). O que terias que fazer, para demolir o argumento, era escolher uma de duas vias: a) procurar uma falácia durante a demonstração, entre os passos 1 a 20, ou então b) procurar demolir uma só das premissas, e bastaria uma.

De certa maneira, preferiste atacar as premissas, ou melhor dizer, atacar apenas uma delas, porque as restantes apenas atacaste "en passant" sem apresentar nenhuma objecção concreta:
"O Bernardo comete este erro ao propor “axiomas” como «Os meus sentidos são relativamente fiáveis»«a teoria correcta acerca do tempo é a de [...] que o passado já não existe e que o futuro ainda não existe» ou «há essências nas coisas». Estas afirmações não são axiomas mas sim hipóteses que carecem de evidências antes de serem aceites como provisoriamente verdadeiras. Especialmente saliente é a hipótese do nada do qual «nada vem. Ou seja, sendo o "nada" um termo usado para designar a não existência de coisas, então rigorosamente coisa alguma pode surgir do que não existe.» Que o Bernardo use “nada” para designar “a não existência de coisas” é perfeitamente aceitável, mas isso não implica que “a não existência de coisas” respeite a regra determinística do “rigorosamente coisa alguma pode surgir do que não existe”. Isso já é uma afirmação especulativa acerca da realidade, e a evidência que temos até sugere o contrário. Não parece haver qualquer impedimento a que coisas que não existem passem a existir. Aparentemente, fazem-no de forma aleatória, espontânea e abundante (2). Mesmo que o Bernardo insista em definir o seu termo “nada” como designando algo do qual “rigorosamente coisa alguma pode surgir”, resta a questão de esse “nada”, definido dessa forma, aparentemente não corresponder a qualquer aspecto da realidade." 
De entre seis premissas, preferiste apontar as baterias à premissa 5. Na verdade, foste económico na gestão dos teus recursos, porque bastaria refutar uma só das premissas para o argumento não funcionar. Todavia, não refutaste a premissa 5. E como não pegaste no argumento propriamente dito, o teu texto não contém a eficácia que lhe desejavas, mas todavia teve o mérito de me ter permitido melhorar o meu próprio texto, e por isso estou sinceramente agradecido.
Há três coisas pouco claras e pouco lógicas na tua tentativa de refutar a premissa 5:
  1. Dizes que é "especulativo" afirmar que do nada, nada vem; ora isso é curioso, porque negar essa premissa evidente e elementar implica acreditar na possibilidade de uma coisa poder surgir absolutamente do nada, por razão nenhuma, e sem isso implicar qualquer coisa pré-existente; postular isso, ou seja, negar a premissa 5, não só é uma atitude eminentemente anti-científica como é totalmente irracional; se realmente uma coisa pudesse surgir do nada, então porque é que isso não aconteceria a toda a hora? Um autocarro a aparecer do nada no Marquês de Pombal. Um cofre cheio de moedas a aparecer do nada na minha sala. Um rinoceronte a aparecer do nada no aquário principal do Oceanário;
  2. Isto leva-nos à segunda coisa pouco clara e lógica na tua tentativa de refutar a premissa 5: é que tu acreditas mesmo que há coisas que surgem do nada, e quando tentas dar um exemplo, a coisa não corre bem: é que não existe nenhum processo de materialização de partículas virtuais que parta do nada e que termine nelas; todos os casos que conhecemos partem de algo; e não é apenas porque não conhecemos ainda um caso em que algo venha do nada; é porque isso é absurdo; o nada é uma etiqueta verbal que atribuímos à inexistência de entidades; se não há entidades, nada pode vir dessa não-existência de entidades;
  3. Consideras ser uma "questão" que esse "nada" aparentemente não corresponda a nenhum aspecto da realidade, mas para mim isso não é nenhuma questão: eu defini precisamente o nada como a ausência de coisas existentes; e fiz isso por uma razão simples: é que hoje em dia há alguns físicos que são analfabetos em questões de filosofia, e pretendem que o Universo poderá ter surgido do nada, e portanto, é boa ideia regressar aos básicos da racionalidade filosófica, e explicar que do nada, nada pode vir; adicionalmente, afirmar que do nada, nada vem, é idêntico a defender o princípio da causalidade, o de que não há efeitos sem causa. E se pensas agora em ir buscar, a correr, um exemplo de algum processo físico indeterminístico, um processo cujo indeterminismo epistémico quisesses transformar em indeterminismo ontológico (para efeitos ilustrativos, dou-te isso de borla), então recorda-te de que seria uma falácia deduzir de "processo A ocorre de forma indeterminística" a tese de que "processo A ocorre sem causa".
Visto que a premissa 5 permanece racional e inabalável, e que já expliquei que a premissa 5 não é apenas conhecimento temporário e passível de revisão, mas uma necessidade inevitável, e dado que não criticaste as restantes premissas, o meu argumento continua de pé. E quais são essas restantes premissas?
Seria bom recordar que tomo apenas como verdadeiro o seguinte: que não há contradição na realidade; que há uma realidade objectiva e que é independente dos meus pensamentos (a realidade não é um sonho meu);  que os meus sentidos são minimamente fiáveis para eu poder confiar na informação que eles me dão (necessária esta para admitir que há mudança e permanência); que o passado já não existe e o futuro ainda não existe; que do nada, nada vem; e que há distinções reais entre as coisas, ou seja, que elas possuem essências que as distinguem. Estas são as tais premissas tão escandalosas para ti, Ludwig. Já viste bem a situação em que te metes por medo de Deus?
"O argumento principal do Bernardo depende da realidade se conformar a estas expectativas: Deus existe porque só esse ser eterno é que pode ter causado tudo o resto. Mas mesmo se aceitássemos essa premissa, não há via racional para se chegar daí ao deus do Bernardo."
Nota que o meu argumento não considera uma premissa que "Deus existe porque só esse ser eterno é que pode ter causado tudo o resto". Isto é sinal de que não entendeste o argumento, ou talvez mesmo de que não o leste com cuidado. Uma cuidadosa leitura mostra que eu não usei essa frase como premissa. E uma leitura ainda mais atenta mostra que, longe de eu afirmar que só uma coisa eterna é que poderia ter causado tudo o resto, eu chego mesmo (tal como São Tomás na sua Terceira Via) a admitir a eventual existência de várias coisas eternas, como se pode ler no ponto 12 do meu argumento: "Pode existir uma coisa eterna apenas, ou podem existir várias coisas eternas, mas tem que existir pelo menos uma coisa eterna". 
"Ao longo do argumento, o Bernardo vai acrescentando gratuitamente atributos até chegar a uma «coisa eterna, auto-existente, imutável, imaterial, simples, una, causa primeira e sumamente perfeita»."
Quando a palavra "gratuitamente" é usada para disfarçar a inexistência de críticas ou de refutações à forma racional como eu deduzo os atributos divinos do que está para trás, então está tudo dito. Mas o melhor, Ludwig, deixaste para o final:
"Em alguns casos até se contradiz, na ânsia de adjectivar. Por exemplo, se é imutável então não pode ter causado nada."
Porquê?
Podes aduzir uma só razão para isso? Pelo menos nesta crítica, não poderias ter dado uma razão?

Se tivesses lido com atenção o meu argumento, já saberias a esta hora que a causa primeira não está sujeita ao tempo, pelo que ela não "decide" criar. A Criação, neste quadro filosófico aristotélico-tomista, não é uma "decisão" de Deus. Não é algo que altere Deus. Uma decisão de Deus iria implicar a existência de um instante de tempo "antes de Deus criar"e outro instante de tempo "depois de Deus criar". Mas isso nem faz sentido teológico nem faz sentido científico. Porque os teólogos sempre disseram (usando umas vezes argumentos filosóficos e outras argumentos teológicos) que Deus é eterno, logo em Deus não há tempo. O tempo só faz sentido em coisas que mudam. No Universo há mudança, logo no Universo há tempo. Se não há mudança em Deus (ponto 16, que não refutaste), não há tempo em Deus, logo não há decisões tomadas por Deus. A vontade de Deus está presente em todo o instante temporal da história do Universo porque essa causa primeira sustém permanentemente tudo em existência. E cientificamente, é altamente plausível que o tempo tenha surgido com o Universo, o que faria todo o sentido para a filosofia aristotélico-tomista que eu defendo, e que considera que, quer o tempo quer o espaço, dependem da existência de matéria. Se a causa primeira tem que ser imaterial, como deduzo no argumento, então não é espacial nem temporal. 
"Pior ainda, depois afirma que isto é «o conceito teísta de Deus». Nem nada que se pareça. O deus teísta é uma pessoa que pensa e sente, que tem desejos e planos, que ama, que se preocupa connosco, que ouve preces, faz milagres, perdoa e encarnou no seu próprio filho. A premissa de que é preciso uma causa eterna para haver universo, mesmo que a aceitássemos, não contribui nada para demonstrar uma coisa destas." 
Como espero que agora possas ver melhor, tens uma ideia antropomórfica de Deus, e essa não é a ideia que os grandes teólogos da cristandade (Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, etc.) têm de Deus.  Se calhar, há muitas pessoas ignorantes que têm essa ideia antropomórfica de Deus, mas porque é que tu irias colocar as ideias dessas pessoas no meu argumento, quando elas não estão lá? Não posso ser acusado de não o ter já dito várias vezes: tens uma ideia "espantalho" acerca do Deus do cristianismo, e por isso, não espanta que cometas tantos erros nas tuas críticas.
Evidentemente, Deus é inteligente, mas os pensamentos de Deus não estão encadeados no tempo como os pensamentos humanos. Trata-se de uma inteligência "instantânea": por ser Deus a causa primeira de tudo o que existe, ele conhece tudo "agora", num eterno presente. A vontade de Deus também existe nesse "agora", pelo facto de que Deus mantém tudo em existência "agora", o que também é sinal claro de que ele ama, ele quer que tudo exista "agora". Deus perdoa "agora" todo o ser humano que quiser orientar a sua vida e a sua vontade no sentido de aceitar a causa primeira como sumamente perfeita, boa, como o fundamento de tudo o que existe.
Evidentemente, este argumento não vai até ao Deus cristão, mas fica lá muito perto. Há outros argumentos, sobretudo históricos, para mostrar a divindade de Cristo, partindo sobretudo da credibilidade dos relatos da Sua Ressurreição milagrosa. Mas este argumento não pretende ir tão longe. A mera leitura do que eu escrevi poderia ter evitado estas tuas críticas ao lado, porque eu fui bem claro ao afirmar que este argumento nem sequer demonstrava todos os atributos de um Deus teísta, muito menos do Deus do cristianismo: "Este argumento não pretende justificar todos os atributos divinos defendidos pelos teístas, mas apenas alguns deles. Por exemplo, este argumento ainda não procura defender atributos divinos como o da omnisciência, omnipotência, omnipresença, infinitude, etc. ".

E é assim que tu terminas uma fraquinha tentativa de refutação do argumento que eu tão esforçadamente expus à consideração de todo o ateu de boa vontade e amigo da verdade:
"O que argumentos como este reforçam é precisamente a tese contrária. É um caso análogo aos da astrologia, bruxaria, telepatia e afins. Tal como o deus do Bernardo, se estas coisas fossem reais já teríamos evidências sólidas em seu favor. Como a Lua ou o granito, cuja existência pode ser facilmente demonstrada sem axiomatizações obscuras e demagógicas. Mas quando se alega demonstrar que algo existe com «certeza racional a partir da observação das coisas existentes» e, em vez dessa observação, se assenta tudo em “axiomas” sem fundamento, a única certeza racional é a de que o argumento é treta."
Apesar de tudo, e já sabendo que a tua vontade não permitiria que surgissem os frutos da razão, esperava que tivesses interagido muito mais com o argumento, apontado problemas às premissas, erros dedutivos. Se concluis, dizendo que as minhas premissas não têm fundamento, teria sido positivo que tivesses dado razões para tal opinião. E defender essa coisa mágica de que certas coisas podem surgir do nada é um mau serviço à razão. Se ser ateu tivesse algo a ver com a razão, então terias também prestado um mau serviço ao ateísmo.

Todavia, resta-me o agradecimento. Pelo tempo que dispensaste, apesar de me ter parecido insuficiente para poderes entrar no "miolo" do argumento. E pelo contributo, talvez indesejado, que acabas sempre por dar às minhas reflexões. 

Um abraço!

segunda-feira, 18 de março de 2013

Ordenação de mulheres?

É uma pergunta feita demasiadas vezes, e nem sempre bem respondida. Afinal de contas, porque é que a Igreja Católica não confere a mulheres a ordenação presbiterial ou a ordenação episcopal? As respostas mais ouvidas estão erradas e são meras caricaturas: a Igreja Católica seria misógina, quereria manter todo o poder em mãos masculinas, consideraria a mulher como um ser inferior ao homem, um ser indigno de poder receber tais ordenações. Estas respostas não fazem sentido, mas correspondem ao preconceito que está alojado nas cabeças de muitas pessoas.

Sistematicamente, os "media" questionam acerca de um novo Pontífice: será este o Papa que irá abrir o sacerdócio às mulheres? E não poucos católicos, mal informados e sob influência de fazedores de opinião com preponderância mediática, acabam por fazer a mesma questão. Ora a resposta à questão é bastante simples e definitiva: não. A Igreja Católica nunca irá conferir a mulheres nem a ordenação presbiterial nem a ordenação episcopal. Há várias razões para tal, mas nem sempre as temos presentes quando precisamos de explicar a alguém a posição da Igreja Católica nesta matéria.

Eis então as principais razões...

  1. A razão mais simples é a da autoridade papal: o Papa João Paulo II, na sua Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis sobre a ordenação sacerdotal reservada somente aos homens, datada de 22 de Maio de 1994, deixou bem claro que a resposta é negativa e a questão está encerrada:
    "Embora a doutrina sobre a ordenação sacerdotal que deve reservar-se somente aos homens, se mantenha na Tradição constante e universal da Igreja e seja firmemente ensinada pelo Magistério nos documentos mais recentes, todavia actualmente em diversos lugares continua-se a retê-la como discutível, ou atribui-se um valor meramente disciplinar à decisão da Igreja de não admitir as mulheres à ordenação sacerdotal.Portanto, para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja, em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos (cfr Lc 22,32), declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja."
    • Qual o carácter autoritário desta Carta Apostólica do Papa João Paulo II?
    • A Congregação para a Doutrina da Fé respondeu a esta questão, assinando o Prefeito Joseph Cardeal Ratzinger e aprovando a resposta o Papa João Paulo II a a 28 de Outubro de 1995:
    • "Dúvida: Se a doutrina, segundo a qual a Igreja não tem faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, proposta como definitiva na Carta Apostólica «Ordinatio sacerdotalis», deve ser considerada pertencente ao depósito da fé.
      Resposta: Afirmativa.
      Esta doutrina exige um assentimento definitivo, já que, fundada na Palavra de Deus escrita e constantemente conservada e aplicada na Tradição da Igreja desde o início, é proposta infalivelmente pelo magistério ordinário e universal (cf. Conc. Vaticano II, Const. dogm. Lumen gentium, 25, 2). Portanto, nas presentes circunstâncias, o Sumo Pontífice, no exercício de seu ministério próprio de confirmar os irmãos (cf. Lc. 22, 32), propôs a mesma doutrina, com uma declaração formal, afirmando explicitamente o que deve ser mantido sempre, em todas as partes e por todos os fiéis, enquanto pertencente ao depósito da fé."
    • Ver ainda as reflexões da Congregação para a Doutrina da Fé a respeito desta resposta.
  2. A Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis faz referência a um documento magisterial anterior, a Declaração Inter Insigniores sobre a questão da admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial, um documento da Congregação para a Doutrina da Fé, assinado pelo Prefeito Franjo Cardeal Šeper, e aprovado e promulgado a 15 de Outubro de 1976 pelo Papa Paulo VI; este documento respondia às discussões sobre este tema que surgiram ao longo dos anos setenta na sequência da mudança de posição da Igreja Anglicana, que passou a permitir a ordenação sacerdotal feminina; a Declaração Inter Insigniores é bastante mais detalhada do que a Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis, e é dela que retiramos as seguintes razões, não exaustivas, para negar às mulheres a ordenação ao sacerdócio ministerial:
    1. O facto da Tradição
      1. A Igreja Católica nunca admitiu a ordenação de mulheres;
      2. Quando nos primeiros séculos de cristianismo certas seitas gnósticas procuraram ordenar mulheres, os Padres da Igreja opuseram-se veementemente (Ireneu, Tertuliano, Firmiliano de Cesareia, Cipriano, Orígenes, Epifânio);
      3. A Igreja Ortodoxa, que todavia permite a ordenação de homens casados ao sacerdócio presbiterial, nunca admitiu mulheres ao sacerdócio;
    2. A atitude de Cristo:
      1. "Jesus Cristo não chamou mulher alguma para fazer parte do grupo dos Doze. Se Ele agia desse modo, não era para se conformar com os usos da época, porque a atitude de Jesus em relação às mulheres contrasta singularmente com aquela que existia no seu meio ambiente e assinala uma ruptura voluntária e corajosa";
      2. Jesus era acompanhado por várias mulheres que faziam parte do grupo de Seus seguidores, mas não admitiu nenhuma ao grupo dos Doze;
      3. Declaração Inter Insigniores lista vários exemplos que mostram que a atitude de Jesus não se deixou determinar pela cultura da época e pela forma como esta via a mulher;
      4. Maria, mãe de Cristo, foi preservada de todo o pecado, e exceptuando o próprio Jesus Cristo, é o único ser humano a quem a Igreja Católica reconhece tal isenção de pecado: e mesmo assim, Maria não fazia parte dos Doze;
      5. Pelo referido, não é possível afirmar que a exclusão das mulheres do sacerdócio por parte de Jesus Cristo se deva a uma ideia negativa acerca da mulher;
    3. A prática dos Apóstolos
      1. Após a Ascenção de Cristo, estando o grupo dos Apóstolos reduzido a onze pela traição e suicídio de Judas Iscariotes, e tendo a possibilidade de escolher Maria para o lugar de Judas, pelo contrário escolheram um homem, Matias;
      2. Quando os judeus seguidores de Cristo se confrontaram com o dilema de abandonar certas práticas e tradições judaicas, e várias foram abandonadas, poderiam ter adoptado a ordenação sacerdotal de mulheres, mas não o fizeram, certamente porque viram nessa atitude uma obediência à vontade de Cristo; afinal de contas, os gregos convertidos ao cristianismo não foram considerados como estando obrigados a certos preceitos, como a circuncisão: se a cultura grega aceitava sacerdotizas, e se isso fosse uma questão menor, porque razão não teriam surgido sacerdotizas cristãs nas primeiras comunidades?
      3. São Paulo nas suas cartas, e os Actos dos Apóstolos, referem várias mulheres importantes no cristianismo dos primeiros tempos, como Lídia, Priscila ou Febe, e nenhuma delas foi ordenada;
      4. A única explicação para a prática dos Apóstolos está na obediência à vontade de Cristo; 
    4. Valor permanente da atitude de Jesus e dos Apóstolos:
      1. A ordenação sacerdotal é um sacramento: enquanto que a Igreja Católica sempre teve o poder de modificar o que entendesse acerca da forma de administrar os sacramentos, ela nunca teve o poder de modificar a substância dos sacramentos;
      2. "(...) a Igreja não tem poder algum sobre a substância dos Sacramentos, quer dizer, sobre tudo aquilo que Cristo Senhor, conforme o testemunho das fontes da Revelação, quis que fosse mantido no sinal sacramental", refere o Papa Pio XII na Constituição Apostólica Sacramentum Ordinis, citando o primeiro cânone da sétima sessão do Concílio de Trento;
      3. "(...) na Igreja sempre existiu este poder, quanto à administração dos Sacramentos: que, mantendo inalterada a substância destes, ela possa prescrever e modificar tudo aquilo que julgar conveniente, ou para a utilidade daqueles que os recebem, ou para o respeito devido aos mesmos Sacramentos, conforme variarem as circunstâncias, os tempos e os lugares", citação do segundo capítulo da vigésima primeira sessão do Concílio de Trento;
    5. O sacerdócio ministerial à luz do Mistério de Cristo:
      1. "O ensino constante da Igreja (...) proclama que o Bispo ou o Presbítero, no exercício do seu ministério, não age em seu nome próprio, «in persona propria»: ele representa Cristo, o qual age através dele: «o sacerdote faz realmente as vezes de Cristo» (...) . Tal valor de representação atinge a sua expressão mais alta e uma forma muito particular na celebração da Eucaristia, que é a fonte e o centro da unidade da Igreja, convívio sacrifical no qual o Povo de Deus é associado ao sacrifício de Cristo: o sacerdote, que é o único que tem o poder de o realizar, age então não somente em virtude da eficácia que Cristo lhe confere, mas «in persona Christi», fazendo o papel de Cristo, até ao ponto de ser a sua própria imagem, quando pronuncia as palavras da consagração";
      2. "O sacerdócio cristão, portanto, é de natureza sacramental: o sacerdote é um sinal cuja eficácia sobrenatural lhe advém da Ordenação recebida; mas um sinal que deve ser perceptível e que os fiéis devem poder reconhecer sem dificuldade. A economia sacramental, efectivamente, está baseada em sinais naturais, em símbolos inscritos na psicologia humana: «os sinais sacramentais, diz Santo Tomás de Aquino, representam aquilo que eles significam por uma semelhança natural». Esta mesma lei da semelhança natural tem valor tanto para as pessoas como para as coisas: quando se torna necessário traduzir na prática sacramentalmente o papel de Cristo na Eucaristia, não existiria uma tal «semelhança natural», que deve existir entre Cristo e o seu ministro, se a função de Cristo não fosse desempenhada por um homem: caso contrário, dificilmente se veria no mesmo ministro a imagem de Cristo. Com efeito, o próprio Cristo foi e continua a ser um homem";
      3. "Deste modo, uma vez que o sacerdote representa também a Igreja, não haverá a possibilidade de pensar que esta representação poderia ser assegurada por uma mulher, conforme o simbolismo já exposto? É verdade que o sacerdote representa a Igreja, que é o Corpo de Cristo. No entanto, se ele o faz, é precisamente porque em primeiro lugar representa o próprio Cristo, que é Cabeça e o Pastor da Igreja, na formula usada pelo II Concílio do Vaticano, que explica ulteriormente e completa a expressão «in persona Christi». É nesta qualidade que o sacerdote preside à assembleia cristã e celebra o sacrifício eucarístico «que a Igreja inteira oferece e no qual ela mesma se oferece toda inteira a si própria»";
    6. O sacerdócio ministerial no Mistério da Igreja:
      1. "Assim, tem de ser bem acentuado quanto a Igreja é uma sociedade diferente das outras sociedades, original pela sua natureza e pelas suas estruturas. A função pastoral na mesma Igreja, anda normalmente ligada ao sacramento da Ordem: esta função não é um simples acto de governar, comparável à maneira de exercitar a autoridade que se verifica nos Estados. É algo que não é outorgado apenas por uma escolha espontânea dos homens: ainda mesmo quando o conferir tal função comporta uma designação por via de eleição, é a imposição das mãos e a oração dos sucessores dos Apóstolos que garantem a escolha da parte de Deus; é o Espírito Santo, dado pela Ordenação, que faz com que alguém participe do poder de reger do Supremo Pastor, Cristo (cfr. Act. 20, 28). A função pastoral é serviço e amor: « se tu me amas, apascenta as minhas ovelhas » (cfr. Jo. 21, 15-17).
      2. "Por esta razão, não se vê como seja possível o propôr o acesso das mulheres ao sacerdócio, em virtude da igualdade dos direitos da pessoa humana, igualdade que conserva todo o seu valor também para os cristãos. Para tal fim, faz-se uso por vezes daquele texto citado em precedência da Epístola aos Gálatas (3, 28), segundo o qual, em Cristo, já não haveria distinção entre o homem e a mulher. Essa passagem, porém, não se refere de maneira alguma aos ministérios; nela, afirma-se simplesmente a vocação universal para a filiação divina, que é a mesma para todos."
      3. "Além disso e sobretudo, seria desconhecer completamente a natureza do sacerdócio ministerial o considerá-lo como um direito: o Baptismo não confere título algum pessoal para o ministério público na Igreja. O sacerdócio não é conferido para honra ou para simples vantagem daquele que o recebe; mas sim, para ser um serviço a Deus e à Igreja; ele constitui o objecto de uma vocação específica, totalmente gratuita: « Não fostes vós que me escolhestes a mim; fui eu que vos escolhi a vós e vos constituí... » (Jo. 15, 16; cfr. Hebr. 5, 4)."
      4. "As mulheres que formulam a sua petição em ordem ao sacerdócio ministerial são com certeza inspiradas pelo desejo de servir a Cristo e à Igreja. E não é de estranhar que num momento em que as mulheres tomam consciência das discriminações de que foram objecto, elas cheguem a desejar o próprio sacerdócio ministerial. Mas é preciso não esquecer nunca que o sacerdócio não faz parte dos direitos da pessoa; é sim algo que depende da economia do mistério de Cristo e da Igreja. O múnus sacerdotal não pode tornar-se a meta de uma promoção social; nenhum progresso puramente humano da sociedade ou da pessoa poderá, por si mesmo, dar o direito de acesso ao sacerdócio: este é qualquer coisa de uma ordem diversa."