domingo, 9 de agosto de 2009

Progressistas e Conservadores

Um dos mais preocupantes sinais de esquizofrenia colectiva consiste em usar palavras cujo significado já se perdeu, ou em usá-las com um significado novo e ilógico, porque nada tem a ver com a sua etimologia.

O "progressista" e o "conservador" surgem assim, a partir do século XIX (e a moda não passa de moda), como dois dos mais irritantes adjectivos de uso comum. Irritantes porque, de tanto e mau uso, tornaram-se em palavras ocas. Todos as usam, e ninguém se dá conta da tontice.

Estes adjectivos nasceram na política, e da política. O "conservador" era, e ainda é, associado com a chamada "direita" política, e o "progressista" com a chamada "esquerda". Escusado será dizer que "direita" e "esquerda" são, também eles, termos muito irritantes, cuja frequência de uso é directamente proporcional à vacuidade do discurso onde surgem inseridas.

Tudo isto é muito pateta. Porque, na verdade, não é nada recomendável alguém ser conservador. E não é mais recomendável alguém ser progressista.

É o mesmo tipo de tontice daquele maluco que é pelo olho direito, ou daquele residente do hospital psiquiátrico que diz que prefere o rim esquerdo.

Como dizia o Chesterton, e como é bem sabido, a ocupação do progressistas consiste em fazer asneiras e a dos conservadores consiste em evitar que elas sejam corrigidas.

Eu acrescentaria que a paranóia do progressista está em preferir o novo porque é novo (mesmo que seja algo muito mau) e a paranóia do conservador está em preferir o velho porque é velho (mesmo que seja algo muito mau).

Evidentemente, não existem progressistas, como não existem conservadores. Quando muito, existirão nalguma ala psiquiátrica, afectados por alguma patologia rara. Mas, cá fora, simplesmente não existem.

Porque até o progressista mais radical e mais fanático é o primeiro a reconhecer a rotina conservadora do seu banho frequente (já nem digo diário, mas apenas frequente): é quase certo que o progressista não consegue inovar no que toca às partes do corpo que tem que lavar todos os dias: nessa matéria, e em muitas outras, não há progresso possível: um braço é sempre um braço e tem que ser limpo, um pé é sempre um pé, e claramente tem que ser limpo. E assim por diante, numa conservadora monotonia, mas que conserva o progressista num estado socialmente apresentável.

Já o conservador mais radical e mais fanático não tem como fugir ao facto de que, com a devida rotina, há que progredir da roupa suja para a roupa lavada. Sentirá, certamente, uma raiva contra a mudança que lhe vem do seu obstinado conservadorismo, mas conservador que se preze não é socialmente apresentável se não trocar de vez em quando a sua roupa suja por roupa lavada.

Alguém distraído pensaria agora que é a higiene que une o progressista ao conservador, mas é preciso ir mais além. O exemplo que dei mostra, claramente, que a higiene pode ser uma ponte entre progressistas e conservadores, mas a coisa é mais profunda. É agora o momento certo para se fazer uma revelação bombástica...

É que... na verdade... o ideal seria mudar do mau para bom, ou seja, ser progressista para melhor, e o ideal seria também, e ao mesmo tempo, manter o bom, ou seja, ser conservador face ao melhor.

Por isso, a pessoa equilibrada é progressista para melhor e conservadora face ao melhor. E então, a pessoa equilibrada, dotada do mais elementar bom senso, não se atreve a proferir esse disparate que é o de se intitular progressista ou conservador.

Os mais que simpáticos visitantes deste blogue, esse raro mas valioso grupo de apoiantes, já devem estar neste momento a pensar porque razão ainda não meti nenhum ingrediente religioso, visto que neste blogue quase só se fala de religião. Mas já vem aí, o ingrediente religioso...

É que, se é certo que há pessoas que vêem tudo do ponto de vista religioso (eu sofro dessa obsessão), há também pessoas que vêem tudo do ponto de vista político. Sabendo de antemão que há muita gente que diz que há assuntos para os quais a religião não é chamada, atrevo-me a dizer, de outro ponto de vista, que há assuntos para os quais a política não é chamada (escândalo!). É verdade. É que há mesmo assuntos desses...

Por exemplo, quando os "media", ou a opinião pública (tantas vezes andam de mãos dadas), falam sobre religião, costumam dizer "este bispo é conservador", ou então "aquele padre é progressista", ou ainda "venceu a ala conservadora do Vaticano", ou então "a Igreja precisa de um Papa mais progressista". Tal esquizofrenia é doentia e intoxicante. Porque acharão que uma Igreja deve ser analisada com ferramentas clássicas (mas não por isso inquestionáveis) da política?

Todo este texto vai então, descaradamente, desembocar nesta afirmação peremptória: não há católicos progressistas. Nem há católicos conservadores. Há católicos. Ponto final. E depois há católicos com problemas de identidade (ah, se os há!).

É que, mais uma vez, os epítetos de "progressista" e de "conservador" mostram-se incapazes de ajudar-nos a compreender realidades complexas. Porque, claramente, não servem para classificar pessoas. Logo, não servem como adjectivos aglutinadores de pessoas parecidas, se nem sequer acertam na classificação de uma só pessoa que seja.

Por exemplo: os teólogos chamados de "progressistas" nos anos 60 andavam todos entusiasmados com a ideia de abolir o dogma. Pregaram até à exaustão a liberdade de consciência do leigo, a sua autonomia e o seu inegável direito até a decidir a própria doutrina católica, ou a doutrina católica que cada um queria para si. Foram idolatrados e adorados, estes teólogos. Depois, ficaram sem audiência. Os leigos foram-se embora. Os seminários por eles orientados ficaram vazios. Dos alunos por eles ensinados, poucos seguiram vocações. Foi o deserto.

A certa altura, a Igreja entendeu pôr fim a essa patetice do "teólogo progressista", cujo problema não era ser teólogo, mas sim achar-se, e ser visto como, progressista, visto que, como vimos, não há pessoas progressistas nem conservadoras. Que não haja a mais pequena dúvida de que a Igreja tem a mesma tenacidade em querer acabar com os "teólogos conservadores", ou seja, gente a querer manter as coisas na mesma só por serem antigas. Se assim não fosse, espécimes raras como as de teólogos a defender a escravatura ou a defender os autos-de-fé ainda andariam por aí a ensinar cursos de Teologia.

(Note-se que, mais uma vez, o teólogo "conservador" em fim de carreira, que defendia obstinadamente coisas indefensáveis, fazia parte da mesma estirpe que, em tempos, apresentara essas coisas indefensáveis como "progresso")

Mas o que é irónico constatar, hoje em dia, é que o "teólogo progressista" dos anos 60, ainda cheio de ímpeto durante os anos 70 e 80, hoje em dia é um dinossauro fossilizado. Uma Igreja nova, rejuvenescida, que sabe desmontar os disparates do chamado "espírito do Concílio" (totalmente contrário ao que realmente se passou e decidiu no Concílio), realmente sobreviveu às paranóias de alguns (a certa altura, muitos) teólogos "progressistas". E, hoje em dia, o "progressista" passou a ser visto por muitos como um "conservador", como alguém que se opõe tenazmente às orientações realmente progressistas (no sentido de ir do pior para o melhor) de Roma. Visto que tal estirpe de teólogo optou, no seu tempo de juventude, por criar uma teologia individual e própria, essa teologia individual e própria envelheceu e definhou, como todas as coisas que não são eternas nem verdadeiras. E, ao se deparar com a futilidade das suas guerras de juventude, o agora velho teólogo, se se mantiver obstinado e não quiser seguir o rumo do verdadeiro progresso, irá naturalmente tentar "conservar" o velho só porque é seu, só porque representa os seus tempos de juventude. Ele não se dá conta, na verdade, de que caiu na fatalidade do conservador, do conservador que ele tanto repudiava em novo: é que ele, na verdade, tombou na pedra de tropeço de todos os conservadores: está a conservar o velho por ser velho.

Termino com um desafio aos que trombeteiam diariamente as palavras "progressista" e "conservador": façam um esforço sério por nos explicar porque é que querem mudar (e porque é que consideram o antes como mau e o depois como bom), e porque é que querem conservar (porque é que consideram bom o que querem conservar).

Já basta de querer lançar o novo só por ser novo, e de querer manter o velho só por ser velho...

2 comentários:

Pedro Fontela disse...

Bernardo,

Pronto, pronto... eu admito :) eu sou o que vê a coisa sempre pelo ângulo político (tenho essa "panca"). Mas tens toda a razão esses rótulos não traduzem nada no mundo real! São divisões arbitrárias para explorar os incautos.

Religiosamente não me meto no assunto por razões óbvias mas volto a fazer um comentário (eu sei que por vezes posso ser repetitivo): A Igreja se está preocupada com católicos com crises de identidade tem bom remédio, aplique um critério de verificação e quem estiver de fora está de fora - eu sei que este comentário tem um intuito de mostrar um interesse por parte da instituição em manter grandes numeros de forma publica mas em minha defesa eu avisei que vejo tudo de forma política! :)

um abraço,
Pedro

nota: cuidado com o spam nos comentários...

Espectadores disse...

Pedro,

Olá!
Finalmente, respondo ao teu comentário soterrado numa pilha de "spam" que só hoje apaguei!
Tive que activar um mecanismo de segurança, um pouco chato, mas que permite evitar o "spam".

Vamos lá ver se agora a caixa de comentários se mantém limpa.

Penso que o maior problema para uma visão correcta do que se passa está em que o não católico, muitas vezes, não compreende a missão da Igreja Católica.

A sua missão é espalhar a Boa Nova de Cristo.

Há, certamente, pessoas de dentro da Igreja a politizá-la, ou pelo menos a procurar pactos com o poder político, achando que isso ajudará a Igreja.

Essa é uma estratégia de envolvimento ilícito do católico com a política. Mas está longe de ser rara.

Uma estratégia lícita consiste em exigir dos políticos católicos que sejam católicos antes de serem políticos.

Esta exigência é muito sensata, dado que 99% dos políticos católicos são políticos antes de serem católicos (número puramente opinativo da minha parte).

Em relação à tua sugestão, não me parece que a Igreja possa expulsar pessoas assim sem mais nem menos. Há, certamente, pessoas que, sem se darem conta, fazem coisas que as colocam imediatamente de fora (a excomunhão "latae sententiae").

Um católico que aborta ou colabora num aborto, por exemplo.

Um católico que maltrata fisicamente um sacerdote, por exemplo.

Mas, canonicamente, fora estes casos extremos, a excomunhão, ou seja, a declaração de que pessoa A ou B está fora da Igreja, exige um processo canónico, em tribunal canónico.

Logo, a tua sugestão é impraticável, e parece-me que poderia facilmente dar origem a injustiças.

Como em tudo, se uma pessoa católica se comporta como não católica, ou profere ideias não católicas, e fá-lo por ignorância, que culpa tem?

A ignorância é uma forte condição desculpabilizadora.

Seria uma enorme injustiça, e uma inutilidade, fazer averiguações canónicas desse tipo em grande escala.

A Igreja é uma instituição com portas abertas, mas no sentido de que entrem pessoas, e não de que saiam. Deve continuar a ser.

E também acho que os não católicos, muitas vezes, exageram ao achar que a Igreja ganha muito em ter números inflaccionados de católicos.

De que serve à Igreja gabar-se do número de baptizados se há estatísticas arrasadoras em termos na frequência dominical, do número de baptismos, do número de divórcios, do número de casamentos, etc, etc...

Dentro da Igreja, já muita gente entendeu que usar esses números ocos não é boa nem sólida estratégia. Basta leres alguns textos da Conferência Episcopal acerca do estado da Igreja em Portugal para veres que ninguém procura esconder a dura realidade dos factos.

Já no que toca à forma de dar a volta a essa triste realidade, o caminho é só um, mas isso já é difícil de entender para alguns com responsabilidades: o caminho passa por regressar a um ensino católico autêntico, quer nas famílias, quer nas catequeses, quer nos seminários.

O "maio de 68" da Igreja deixou feridas profundas, que ainda estão a sarar. Mas vão sarar!

Um abraço,

Bernardo