quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

Luz



«Jacob saiu de Bersabé e tomou o caminho de Harran. Chegou a determinado sítio e resolveu ali passar a noite, porque o sol já se tinha posto. Serviu-se de uma das pedras do lugar como travesseiro e deitou-se. Teve um sonho: viu uma escada apoiada na terra, cuja extremidade tocava o céu; e ao longo desta escada subiam e desciam anjos de Deus (...). Despertando do sono, Jacob exclamou: «O Senhor está realmente neste lugar e eu não o sabia!» Atemorizado, acrescentou:
«Que terrível é este lugar! Aqui é a casa de Deus, aqui é a porta do céu.» No dia seguinte, de manhã, Jacob agarrou na pedra que lhe servira de travesseiro, e, depois de a erguer como um padrão, derramou óleo sobre ela. Chamou a este sítio Betel, quando, originariamente, a cidade se chamava Luz.»
, Livro do Génesis, 28, 10-19.


Luz.
Uma pequena palavra de três letras...
Ao ler o livro do Génesis, o leitor português imagina que o nome do local onde dormiu Jacob foi aportuguesado, ou seja, que no texto original iria encontrar a palavra hebraica para "luz". Ora bem, engana-se se assim pensa. No original, a palavra hebraica é mesmo "luz". Privilégio sublime da língua portuguesa (e "coincidência" para os tolos que se recusam a ver o óbvio carácter messiânico de Portugal)!
Em qualquer texto verdadeiramente revelado, nada existe por acaso. Os rabis ensinam que nem uma só letra da Torah pode ser mudada, sob pena de todo o texto colapsar em pó. O pensamento tradicional defende que os nomes das coisas, dos lugares, das pessoas, dos objectos, estão intimamente associados à sua essência.
No relato genesíaco, Adão, antes da Queda, vivia em comunhão com Deus, e partilhando da luz divina, conhecia as coisas criadas na sua essência. Deste modo, Adão deu os nomes aos animais e às plantas.
Os nomes por ele escolhidos não eram escolhas ocasionais, movidas por impulsos fantasiosos. O poder de Adão para nomear todas as criaturas vinha-lhe do poder que Deus lhe deu para conhecer as essências das coisas criadas. O homem caído, o homem do Pecado Original, já não tem essa faculdade que tinha o homem primordial.
Deste modo, o autor de um texto revelado, homem caído como todos nós, partilha de um conhecimento imediato, que lhe vem de Deus e não de si, não reflexivo mas intuitivo, por vezes inexprimível (a palavra "mistério", de origem grega, é sobretudo o inexprimível, e não o incompreensível como erradamente se costuma julgar), acerca de uma dada coisa ou criatura. O episódio do sonho de Jacob, um dos mais belos e profundos da literatura veterotestamentária, é disso prova viva.
"Betel", chamou Jacob àquele lugar. "Beth-El", a "Casa de Deus".
Como vemos, Jacob escolhe um nome adequado ao local. Porque nessa noite, Jacob esteve num lugar santo.
O termo hebraico que designa a presença real da divindade no meio de nós é "shekinah". A shekinah é a presença de Deus no mundo. A sarça ardente, avistada por Moisés, foi shekinah, assim como o Santo dos Santos do antigo Templo judaico, onde se dizia que, na mais profunda escuridão, Deus Se manifestava sobre a Arca da Aliança, por entre as asas douradas dos querubins.
Durante o seu sonho, Jacob vê uma escada, símbolo do "axis mundi", o Eixo do Mundo, por onde sobem e descem aquelas criaturas sobre-humanas e infra-divinas, os anjos. De acordo com o simbolismo tradicional, sempre que o Eixo do Mundo cruza o plano da Criação, pode-se afirmar que esse ponto desempenha a função de shekinah, sendo neste mundo como que a "porta do Céu". Reconhecendo o carácter único daquele local, Jacob verte o óleo sobre a pedra, entretanto tornada sacra pela presença de Deus ("beth-el").
Com base neste episódio, os antropólogos e os mitólogos banalizaram o termo "bétilo" para designar, em geral, uma "pedra santa". A Kaaba, em Meca, é um outro exemplo bem conhecido de um bétilo.
Mas onde quero eu chegar?
À palavra "luz", que segundo o Génesis era o nome antigo da uma misteriosa cidade perto da qual Jacob teve o sonho.
Ora sucede que "luz" é também, em hebraico, a palavra que designa o fruto da amêndoa, bem como a árvore, a amendoeira. Dizem as lendas hebraicas que, precisamente neste local chamado Luz, existia uma amendoeira cujas raízes ocultavam um subterrâneo. Este subterrâneo ocultava, por sua vez, uma passagem secreta que conduzia à cidade de Luz, que se dizia jazer sob a terra, num local inacessível.
Nada disto é muito surpreendente, uma vez que a amêndoa oculta o seu fruto dentro de uma casca dura, o que reforça a ideia de inviolabilidade já existente na lenda sobre a cidade de Luz.
Dizem também as mesmas lendas que, contra esta cidade de Luz, o Anjo da Morte nada podia. Vejamos de seguida porquê...
O misticismo judaico dá também o nome de "luz" à pequena parcela do indivíduo humano onde a alma, após a morte, se vai refugiar. Note-se que não se trata aqui de um lugar físico, mas sim de um "lugar psíquico" (recordemos que, em grego, "psyché" significa "alma"), se é que se pode usar uma expressão como "lugar" num domínio extra-espacial e subtil como é o da alma.
Vemos então que, para os judeus, o Anjo da Morte nada podia contra a "Cidade de Luz", porque era o refúgio da alma humana após a morte para o homem temente a Deus. A morte separava o corpo perecível da alma, mas esta, imperecível, refugiava-se nesta região chamada "luz", que representava assim, verdadeiramente, a "Porta do Céu".
O simbolismo é poderoso: a alma que vivifica o corpo humano durante a vida corpórea "anima-o" e permite a este desenvolver-se em todas as suas potencialidades. A alma é individual, mas tem a sua origem e destino na "luz" divina, essa centelha que jaz no mais profundo dos nossos seres. Muitos confundem alma com espírito, sem ver que aquela está entre este e a matéria corpórea. É a alma que nos define como indivíduos, porque se reveste de uma forma, ao invés do espírito, que é por natureza informal. A alma é indestrutível, porque após a morte, extintas todas as possibilidades da vida humana neste mundo, se recolhe de volta à luz de onde veio. Ali, cada alma aguarda o final dos tempos, a dissolução dos "séculos" em cinzas ("solvet saeclum in favilla", como ensina a liturgia católica do na missa de requiem), altura em que, revestida do corpo glorioso, se poderá voltar a manifestar em todas as suas potencialidades.
A Natureza fornece-nos poderosas metáforas, como aquela apontada por Guénon, relativamente à passagem da lagarta a crisálida, e desta a borboleta: duas passagens análogas à morte física e à ressurreição da carne.
É frequente constatar alguma polémica sempre que se fala sobre a cremação dos mortos. Perguntaram-me, em tempos, se o catolicismo permitia a cremação dos mortos. É um facto que a permite, e a razão para esta permissão está intimamente ligada a esta crença na imortalidade da alma, que está presente na cultura hebraica, como na grega, na islâmica, na cristã ou mesmo na remota hindu.
O fogo da cremação nada pode contra a "cidade de Luz", contra esse "lugar psíquico" para onde a alma se retira em estado de não-manifestação após a morte. Sendo um "lugar" fora do espaço, não está sujeito à destruição pelo fogo.
A cremação em nada invalida a "ressurreição da carne", quando a semente nascida de luz que é a nossa alma regressar à manifestação por via de um novo corpo, desta vez glorioso porque perene e incorruptível.
É este o mistério da vitória sobre a Morte que está presente neste episódio de Jacob e no seu complexo e enigmático simbolismo.
Jesus nasce em Belém por altura do solstício de Inverno, quando as trevas são vencidas pela luz com o retorno do crescimento dos dias em termos de horas solares. Hoje em dia, está na moda retirar originalidade ao Natal cristão. Ao invés de procurarem, nas vozes da tradição cristã, os ecos de tradições hoje desaparecidas, os ignorantes procuram demonstrar uma suposta artificialidade do cristianismo, apresentando-o como um sucedâneo, uma cópia, um plágio, de várias tradições pagãs, como por exemplo, o mitraísmo.
São ignorantes, porque desconhecem a essência dos paralelismos que encontram (se bem que, muitas vezes, pura e simplesmente inventem paralelismos inexistentes). Esses paralelismos, os reais, não reflectem plágios.
Há concordância em vários aspetos entre o cristianismo e as restantes tradições espirituais da Humanidade que o precederam no ciclo histórico. Isso apenas reforça o facto de que o cristianismo não nega as ideias verdadeiras, nem os reflexos luminosos preservados por outras tradições antigas.
Mas o simbolismo cristão possui uma vida própria, uma autonomia notável inerente à sua Revelação.
Jesus nasce em Belém ("Beth-lehem", a "Casa do Pão"), porque agora é o Pão da Vida que representa Deus no meio de nós. Na Nova Aliança representada na figura de Jesus Cristo, a pedra sagrada de Betel cede o lugar ao pão sagrado.
É a Eucaristia, presença real do divino Cristo, que se torna, para os cristãos, na nova shekinah, a presença de Deus no meio de nós. Depois de nos darmos conta do surpreendente paralelismo entre "Beth-El" e "Beth-lehem", entre a "pedra" e o "pão", como é possível não manifestar surpresa perante uma releitura deste conhecido trecho de São Lucas?

Cheio do Espírito Santo, Jesus retirou-Se do Jordão e foi levado pelo Espírito para o Deserto, onde esteve durante quarenta dias e foi tentado pelo diabo. Não comeu nada durante esses dias e quando eles terminaram, sentiu fome. Disse-Lhe o diabo:
«Se és Filho de Deus, diz a estas pedras que se transformem em pão». Jesus respondeu-lhe: «Está escrito: Nem só de pão vive o homem».

- São Lucas, 4, 1-4.

Jesus faz, de facto, a transformação das pedras em pão, a transformação de Betel em Belém, porque é o Seu Corpo que se torna presença de Deus no meio de nós ("Emmanuel", "Deus connosco"), suplantando de uma vez por todas a sacralidade dos bétilos da Velha Aliança, que era uma sacralidade menor, porque encontrava o seu suporte material nas substâncias inanimadas. Mas esta é uma transformação transcendente, que o Diabo tenta, como é sua marca, perverter num mero gesto de magia. "Nem só de pão vive o homem", diz Jesus, revelando que a verdadeira Vida é invisível, é aquela que é vivificada pelo "pão celestial", a Palavra de Deus, ao invés da vida humana e corpórea, que vive do pão terreno e que é meramente passageira.
Belém é, assim, a nova Betel, a nova Casa de Deus, e a nova Porta do Céu. É também por esta razão que se diz que os anjos acorreram a Belém, do mesmo modo paralelo a quando acorreram a Jacob durante o seu sonho. A shekinah é peregrina: Deus manifesta-Se onde bem entende.
Deus não tem morada fixa nesta Terra. Jesus, o Deus peregrino, nasce numa manjedoura.
E é visitado por pastores, que de todas as profissões humanas, é a que melhor representa o papel do nomadismo peregrino. A estrela de Belém apontou o caminho para o "axis mundi" aos Reis Magos (os representantes da Tradição que vêm honrar o Filho de Deus acabado de nascer), o local neste planeta onde, há dois mil anos, o Salvador se fez Homem, tornando-se presença de Deus na Criação.
Mas sobre os Reis Magos falarei daqui a uns dias, quando for mais apropriado...
Os meus estimados leitores materialistas e positivistas não darão grande valor a esta misturangada de termos, cegos como estão àquilo que é invisível aos olhos. Na minha linguagem deficitária e imperfeita, tentei transmitir um pouco do brilho luminoso e divino que vejo no Natal, uma tradição milenar que jaz na profundidade do ser humano e da sua rica experiência religiosa.
Será que apenas apontei aqui coincidências?
Jogos de palavras que por mero acaso suscitam paralelos ilusórios?
Ou tratar-se-ão dos reflexos de uma luz fugidia - refractada na imperfeição do meu entendimento limitado - uma luz que emana das entranhas da misteriosa cidade à qual os hebraicos chamavam Luz?
O pior cego é o que se recusa a ver, porque prefere as Trevas à Luz, escolhendo, sem o saber, a morte deste mundo à Vida do próximo.
Um óptimo Natal para todos!
Sim, porque a época do Natal só se conclui no Dia de Reis, não convém esquecer.

(simbolismo adaptado da obra de René Guénon, Le Roi du Monde, cap. VII - «Luz», ou le séjour d'immortalité, 1927)

quarta-feira, 31 de agosto de 2005

O Dhikr...

... é uma prática islâmica, mais concretamente sufi, de oração repetitiva e ritmada. O dhikr consiste na repetição sincronizada, feita por várias pessoas em simultâneo, do nome de Allah ou de uma das suas variantes.
Escutar a recitação de um dhikr é uma experiência única. Dos poucos que ouvi, gostei especialmente deste, que se chama Dhikr Kalwati (aqui dirigido pelo shaik Nazim, da tariqah Naqshbandi). Nesta gravação escutamos, durante muito tempo, a repetição da palavra allah em escalas descendentes.
O dhikr, mesmo sendo uma prática sufi (e portanto inserida na tradição islâmica) é perfeitamente análogo aos mantras hindus e a outras orações de tipo ritmado que se encontram em várias tradições espirituais pelo Mundo fora.
No cristianismo oriental, de tradição ortodoxa, encontramos algo de semelhante na prática do hesicasmo, a repetição ritmada do nome de Jesus. De forma mais ou menos ostinata, encontramos em quase todas as religiões conhecidas algum tipo de oração repetitiva. A prática da oração repetitiva é vista por muitos ateus e agnósticos como uma forma de inebriar massas de crentes ignorantes. Uma tal opinião é, ela mesmo, uma grosseira manifestação de ignorância. O que já é mais espantoso e grave é encontrar, nos dias que correm, crentes que minimizam a importância da oração (o que sucede muito no catolicismo moderno), ou que parecem não dar qualquer relevo a orações repetitivas ou ritmadas, sinal de que já lhes escapa o sentido profundo da importância do ritmo e do som na actividade espiritual.
Sigamos Guénon:

«(...) a [repetição da] palavra dhikr, que, no esoterismo islâmico se aplica a fórmulas ritmadas que correspondem exactamente aos mantras hindus, (...) tem por objectivo produzir uma harmonização de diversos elementos do ser, e de determinar as vibrações susceptíveis, pela sua repercussão através da série de estados, em hierarquia indefinida, de abrir uma comunicação com os estados superiores, o que aliás, de forma geral, é a razão essencial e primordial de todos os ritos» - René Guénon, La Langue des Oiseaux, artigo publicado em Le Voile d'Isis, Novembro de 1931.

sábado, 27 de agosto de 2005

Resposta às objecções do CA

O leitor CA, num comentário ao texto anterior, deixou uma série de objecções que sujeitarei agora a uma análise detalhada. Desde já, os meus agradecimentos pelo seu contributo construtivo para este complexo debate.

«Ponto I:
"o discípulo é o "aluno", que escuta a Palavra. O apóstolo é o "enviado", encarregado de espalhar a Palavra."

Seguindo o seu raciocínio deveria concluir que as mulheres hoje não são chamadas a espalhar a Palavra. Constato na prática que muitas mulheres espalham a Palavra (catequistas, missionárias, etc.). Assim parece-me que o raciocínio falha quando assume que, porque Jesus não escolheu apóstolas, a Igreja nunca o poderá fazer.»


Bela objecção, à qual deverei dar a mão à palmatória.
De facto, o meu raciocínio apresentava, neste aspecto, claras falhas. Não serve usar uma argumentação etimológica, uma vez que nem sequer é constante o uso, na própria Sagrada Escritura, do termo "apóstolo" para os doze. Por vezes, são chamados de "discípulos". E lembrei-me, entretanto, de outra objecção ao meu raciocínio: Maria de Magdala, a quem Jesus expulsara demónios, é a primeira testemunha da ressurreição, e como tal é ela a "enviada" junto dos restantes onze, quem lhes vai comunicar que o Mestre ressuscitou (cf. S. Lucas, 16, 9). Posto isto, a minha argumentação neste ponto cai por terra.

Contudo, e porque julgo estar certo na tese geral que estou a defender, tentarei contornar as dificuldades por mim criadas usando uma linguagem mais cuidadosa e argumentos bem mais fortes...
Há muita razão da parte do CA quando afirma que todos os cristãos são, de certo modo, "enviados", co-responsáveis pelo espalhar da Palavra.
No entanto, a meu ver, há uma nítida diferença: os onze (retirando Judas, que se enforca antes da morte de Cristo) sobrevivem à Paixão como o núcleo dos próximos do Messias e vêem-se desse modo revestidos de uma graça bem particular e especial. São "enviados" como serão todos os cristãos, mas a um nível qualitativamente diferente. Uma passagem profundamente significativa encontra-se no final de S. Lucas:

Depois, disse-lhes: «Estas foram as palavras que vos disse, quando estava convosco: Que era necessário que se cumprisse tudo quanto a Meu respeito está escrito em Moisés, nos Profetas e nos Salmos».
Abriu-lhes então o entendimento para compreenderem as Escrituras e disse-lhes: «Assim está escrito que o Messias havia de sofrer e ressuscitar de entre os mortos ao terceiro dia, que havia de ser pregado, em Seu nome, o arrependimento e a remissão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós sois as testemunhas destas coisas. E eu vou mandar sobre vós O que Meu Pai prometeu. Entretanto, permanecei na cidade até serdes revestidos com a força lá do Alto.
- S. Lucas 24, 44-49.

Há, claramente explícita, uma atribuição de dons interpretativos (diria mesmo, as chaves da hermenêutica sacra, que desde então estão na posse da Igreja) aos onze reunidos com o Jesus ressuscitado. Vejamos outro exemplo das Sagradas Escrituras, desta vez de S. João, exemplo este ainda mais claro de que há, nitidamente, uma diferença de estatura entre a profundidade espiritual da missão dos onze apóstolos e a dos restantes cristãos:

Na tarde desse dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas da casa onde os discípulos se achavam juntos, com medo dos judeus, veio Jesus pôr-Se no meio deles e disse-lhes: «A paz seja convosco». Dizendo isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. Alegraram-se os discípulos, vendo o Senhor. E Ele disse-lhes de novo: «A paz seja convosco» Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós». Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoares os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos». - S. João 20, 19-23.

São Marcos faz também coro neste ponto fulcral:

Apareceu, finalmente, aos próprios onze, quando estavam à mesa, e censurou-lhes a incredulidade e obstinação em não acreditarem naqueles que O tinham visto ressuscitado. Depois, disse-lhes: «Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda a criatura. Quem acreditar e for baptizado será salvo, mas quem não acreditar será condenado. Eis os milagres que acompanharão aqueles que acreditarem: Em Meu nome expulsarão os demónios, falarão línguas novas, apanharão serpentes com as mãos e, se ingerirem alguma bebida mortífera, não sofrerão nenhum mal; imporão as mãos sobre os enfermos e eles recuperarão a saúde». - S. Marcos 16, 14-18.

Num ponto que se afigura tão importante, S. Mateus não poderia falhar na concordância com os restantes evangelistas:

Os onze discípulos partiram para a Galileia, para o monte que Jesus lhes tinha designado. Quando O viram, adoraram-n'O; alguns, no entanto, duvidavam ainda. Aproximando-Se deles, Jesus disse-lhes: «Foi-Me dado todo o poder no céu e na terra: Ide, pois, ensinai todas as nações, baptizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo ensinando-as a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. E Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo». - S. Mateus 28, 16-20.

Torna-se claríssimo, pela concordância dos quatro evangelistas, que é ponto doutrinal assente que os onze receberam do Jesus ressuscitado uma graça especial. S. João é explícito: os onze receberam o Espírito Santo, com a missão de, iluminados por Ele, espalharem a Boa Nova e realizar milagres em nome de Jesus.
A Boa Nova iria espalhar-se de boca em boca, sendo que todos os cristãos seriam convidados a fazê-lo. Contudo, aquele núcleo de onze homens, escolhidos por Jesus, seria o centro espiritual de onde emanariam todas as graças de Cristo e do Pai. Esse legado, essa herança deixada por Cristo aos Homens, está viva através dos onze primeiros da Sua Igreja. É um verdadeiro dom espiritual e é a fonte que vivifica espiritualmente a Igreja Católica, que honra desde então a sucessão apostólica a partir de Pedro.

Resumindo: não estavam mulheres presentes no Pentecostes. Não havia uma só mulher de entre os onze que foram investidos desta graça e desta missão especial.
Será que Jesus não valorizava as mulheres?
Supô-lo seria uma tolice: é uma mulher, Maria Madalena, a primeira testemunha humana da Ressurreição, que é o epicentro do cristianismo.
As Sagradas Escrituras não permitem outra interpretação: é nítido verificar que o vértice, a nascente espiritual da Igreja era constituida por onze homens investidos pessoalmente por Deus.
Negá-lo seria atentar contra a própria validade das Sagradas Escrituras.
Algo bastante normal para um não-cristão, mas algo de monstruoso para um cristão.

Aliás, por essa linha de raciocínio, não poderia haver apóstolos de raça negra, por exemplo. Porquê distinguir pelo sexo e não pela raça?

Esta objecção, sinceramente, CA, não percebi.
Apóstolos de raça negra? Mas Jesus e os doze apóstolos eram judeus. E na Palestina, naquele tempo, os judeus eram brancos. Existia (e ainda existe) na Etiópia uma pequena comunidade de judeus negros, mas isso nada tem a ver com a presente discussão. Os judeus da Palestina eram de raça semita, de pele branca.
Mas uma claríssima prova de que a Igreja não discrimina pela raça é o facto de a ordenação sacerdotal ser conferida a homens de qualquer raça.

Ponto II:

"Deus escolheu o sexo masculino para incarnar, logo qualquer função representativa, onde o símbolo de Cristo seja fundamental (como o é nos sacramentos), deve ser desempenhada por um homem."

Mais uma vez dá imensa relevância ao sexo. Ora não vejo em Jesus essa relevância explícita.


Apresentei-lhe referências extremamente explícitas para este facto simplicíssimo: Jesus escolheu onze homens para constituir a Sua Igreja. Sendo o homem diferente da mulher, Jesus fez desta distinção fundamental uma distinção de papéis no plano salvífico. Quando falei, no meu texto, da Eucaristia e do seu símbolo, fui bem claro na importância da "substância" ser compatível. Penso que consegui tornar claro a importância de ser um homem a presidir à Eucaristia, momento central da vida cristã.

Vemos que os evangelhos dizem que Jesus escolheu apenas homens mas não vejo Jesus a fazer referência ao sexo como algo de importante. Assim, a distinção do sexo como algo essencial parece-me mais uma insistência humana.

Não sei como insiste em não o ver, CA.
Pois que é bem claro que Jesus usou o género como um dos Seus critérios de escolha do grupo dos doze. Ou supõe que o facto de termos doze apóstolos todos homens seja um puro acaso probabilístico?

Ponto III:

"Tanto no Antigo como no Novo Testamento, a função sacrificial é cumprida por homens."

Mais uma vez o sexo como distinção, indo agora buscar o Antigo Testamento, o que não acrescenta nada de novo.


Antes pelo contrário, CA, é um reforço muito forte. Significa que encontramos, tanto no Antigo como no Novo Testamento, a função sacrificial a ser desempenhada por homens.

Parece-me que os símbolos são feitos pelo homem, são essencialmente culturais. Se a sua objecção é apenas ao nível do símbolo, então pode certamente ser alterada.

A sua ideia de símbolo é totalmente materialista e antropológica.
Para mim, o símbolo é uma ponte de conhecimento divino, uma porta aberta para o transcendente. O símbolo é uma forma de podermos, por via dos nossos sentidos, aceder ao que nos ultrapassa. Se Jesus é Deus e Jesus instituiu o Símbolo eucarístico, logo, para o cristão, a Eucaristia não é um "símbolo cultural", gerado por "homens", mas sim um Símbolo espiritual, instituido por Deus.

Estes três pontos parecem resumir-se a um apenas: se se constatou que houve discriminação pelo sexo feita por Jesus

CA, Jesus discriminou! Mas nunca num sentido pejorativo. Jesus, claramente, atribui papéis diferentes, no Seu plano, para homens e mulheres.
E uma razão bem forte, como já o disse, prende-se com uma necessidade simbólica incontornável.

Como Jesus fez outras discriminações práticas (a mais importante das quais foi dirigir-se ao povo de Israel apenas), deveríamos mantê-las sempre? A resposta tem que ser não, pois a Igreja abriu-se logo aos gentios. Então porquê a relevância especial atribuída ao sexo?

Objecção inválida. O seu pressuposto está errado. Jesus não trouxe a Boa Nova apenas para Israel. Releia, por favor, o final do Evangelho de S. Mateus: "ensinai todas as nações".

É o próprio Cristo que o desmente, Bernardo, pois diz que o Espírito há-de ensinar aos discípulos muitas coisas que eles ainda não podiam suportar.

Não compreendi esta objecção, e terá que a explicar melhor, por favor.
Obrigado pelos comentários.

sexta-feira, 19 de agosto de 2005

Sobre o sacerdócio feminino

Esta questão regressa sempre, mais cedo ou mais tarde...
É uma questão importante e de fundo, porque assistimos cada vez mais nos dias que correm a uma enorme multidão de crentes católicos a manifestarem-se a favor do sacerdócio feminino, o que é um grave sinal de incompreensão da doutrina que professam.
Muitos católicos modernos estão, hoje, cada vez mais empenhados em levantar uma série de objecções a aspectos específicos do culto católico e da organização da Igreja. A sociedade tornou-se menos exigente para com a cultura e o estudo, os crentes também se tornaram menos exigentes com eles próprios, e facilmente surgem inúmeras incompreensões doutrinais como esta.

Antes de principiar, um aviso importante: neste breve texto tratarei apenas desta objecção relativamente ao sacerdócio feminino. Cada objecção merece ser tratada à parte, porque existem diversos níveis de importância doutrinal nas várias objecções levantadas pelos católicos modernos. Se se quiser discutir, por exemplo, o celibato dos sacerdotes, estaremos perante outra questão, diga-se, com muito menor peso doutrinal. Pelo que se deve, doutrinalmente, manter inaceitável o sacerdócio feminino (explicarei adiante), mas se pode manter em aberto a discussão de outras questões não tão importantes, doutrinalmente, como a do celibato dos sacerdotes.

Esta explicação não é exaustiva e representa apenas um modesto esforço, uma recolha dos pontos essenciais e mais importantes que justificam esta interdição das mulheres ao sacramento da ordenação sacerdotal.

Ponto I: Jesus Cristo apenas escolheu homens para seus apóstolos. Nenhum dos doze apóstolos era mulher. Contudo, inúmeras mulheres seguiam Jesus como discípulas. No entanto, a distinção entre discípulo e apóstolo é importante: o discípulo é o "aluno", que escuta a Palavra. O apóstolo é o "enviado", encarregado de espalhar a Palavra. À mesa da Última Ceia estavam doze apóstolos. Na recepção do Espírito Santo, pelo Pentecostes, estavam reunidos os doze apóstolos.
Nesta escolha, não há a influência de qualquer preconceito social, uma vez que Jesus Cristo não moldou a sua doutrina ao sabor das condicionantes sociais.

Ponto II: O símbolo sacramental. O sacerdote exerce uma função primordial no sacramento eucarístico, pelo qual o pão e o vinho são transformados em Corpo e Sangue de Jesus Cristo. A doutrina católica ensina que, com cada sacramento, há a possibilidade de se receber uma graça divina concreta, pelo que o símbolo é a via pela qual se pode aceder a essa graça. No caso da Eucaristia, o símbolo é feito de pão e de vinho que, com as palavras adequadas, se transforma no Corpo e Sangue de Cristo. Tanto a matéria (pão e vinho) como a forma (as palavras pronunciadas) são fundamentais para a eficácia do sacramento eucarístico. Se bem que a forma seja a parte mais importante, a matéria também não deve ser desprezada: uma eucaristia feita, por exemplo, com arroz (mesmo pronunciando as palavras ritualísticas correctas), não seria eficaz porque a matéria não corresponderia simbolicamente à usada por Jesus Cristo na Última Ceia. No entanto, qualquer tipo de pão e vinho serve, visto que a parte material do símbolo está representada.
Posto isto, o sacerdote é a representação viva do próprio Jesus Cristo. Diz o sacerdote durante o ritual: "Por Cristo, com Cristo e em Cristo". Do mesmo modo que, para manter a matéria do símbolo, se deve usar pão e vinho, também para manter a imagem viva do próprio Jesus Cristo, o oficiante deve ser um homem. Deus escolheu o sexo masculino para incarnar, logo qualquer função representativa, onde o símbolo de Cristo seja fundamental (como o é nos sacramentos), deve ser desempenhada por um homem.
Poder-se-ia levantar esta objecção: mas Deus não tem sexo, logo, se o sacerdote está ali para representar Deus, então não tem que ter um sexo específico para O representar bem.
Resposta: Foi Deus Filho quem instituiu a Eucaristia, logo é para Jesus Cristo que estamos a olhar quando olhamos para um sacerdote em pleno rito eucarístico. E, se foi como homem, visível e audível pelos doze apóstolos, que Jesus instituiu a Eucaristia, pois terá que ser um homem a reproduzir, para a posteridade, a diginidade sacra desse momento.

Ponto III: O Cordeiro é um dos muitos animais atribuidos simbolicamente à figura de Jesus Cristo. Mais concretamente, este animal ganha especial significado graças ao simbolismo da Crucificação: Cristo é visto como o "Cordeiro de Deus", que pela sua morte "tirou o Pecado do Mundo". Tanto no Antigo como no Novo Testamento, a função sacrificial é cumprida por homens. Recordemos o episódio de Abraão, que apresenta a Deus o seu próprio filho Isaac para ser sacrificado. O sacrifício (no entanto não consumado) de Isaac por seu pai é visto, na exegese sacra, como um prenúncio do sacrifício de Jesus Cristo, o Filho, às mãos do Homem por vontade do Pai. O acto sacrificial está reproduzido da forma mais perfeita no mistério eucarístico. Pelo que, de novo, sendo um acto sacrificial, é desempenhado por um homem.

Para terminar, há que ter em consideração que as objecções que muitos católicos modernos levantam em relação a este ponto delicado da ordenação das mulheres são objecções muito influenciadas por uma tendência feminista (ou, no mínimo, por uma tendência ultra-igualitarista, onde uma artificial "igualdade" deveria ser estabelecida a qualquer custo), à qual se tem dado uma prioridade maior do que à exegese sacra e ao simbolismo sacramental. O que é, no mínimo insólito: existirem cada vez mais cristãos que, porventura sem se darem conta, estabelecem raciocínios nos quais dão primazia a tendências e modas sociais em detrimento do que é importante na sua fé, que deveria ser a compreensão real da doutrina que professam.
A mulher não tem menos capacidades em si mesma do que o homem para o exercício do sacerdócio. Contudo, tanto por respeito para com a intenção do Salvador, como por necessidade material do simbolismo sacramental, na qual o sacerdote deve apresentar-se como imagem viva do Deus Incarnado, foi dado apenas aos homens o acesso a este sacramento.
Assim, é enquanto símbolo, e não enquanto mulher, que a mulher é inapta para o sacerdócio cristão. É evidente, pela natureza idiossincrética do símbolo eucarístico, que isto não se pode generalizar: noutras doutrinas, onde os ritos se baseiem noutros simbolismos, poderemos encontrar legitimamente uma mulher a desempenhar funções sacerdotais. Vemos assim que não há, neste aspecto, qualquer "sexismo", mas sim apenas o respeito pelos símbolos cristãos e pelos sacramentos por eles representados. O sacerdócio feminino pode ser legítimo nos ritos de outras doutrinas que não a cristã.
O sacerdócio feminino não é um direito das mulheres, uma vez que se assim fosse, isso quereria dizer que uma universalização extrema de um suposto "direito feminino" obrigaria a atropelar o simbolismo, e consequentemente, a eficácia de um sacramento tão importante como o da Eucaristia. E far-nos-ia possivelmente pensar que, naquele que é o momento mais alto da revelação crística, Jesus se teria deixado influenciar por um suposto machismo na cultura judaica, ou seja, por uma volúvel condicionante social. Se assim fosse, a doutrina deixada por Cristo à Sua Igreja seria algo de passageiro e de validade limitada, algo subjugado e condicionado por características sociais.
Outras questões ficam por tratar, como a interessante questão do diaconato feminino. Em certas Igreja cristãs primitivas, era permitido às mulheres o acesso a um dos graus menores da ordenação, a do diaconato. Note-se que há uma distinção fundamental aqui presente: um diácono não é um sacerdote. Não recebe a ordenação sacerdotal. Deste modo, um diácono não está qualificado para presidir à Eucaristia.
Deste modo, existe algum campo aberto ao debate relativamente ao acesso das mulheres ao diaconato, uma vez que não seriam violadas questões essenciais de doutrina.

Bernardo

quinta-feira, 18 de agosto de 2005

A noção de Hermenêutica

Adquiri, recentemente, a espantosa obra de Jean Borella, Ésotérisme Guénonien et Mystère Chrétien (Delphica - L'Age d'Homme, Lausanne, Suíça, 1997), de onde retiro este pedagógico apêndice, intitulado "A noção de Hermenêutica".

A NOÇÃO DE HERMENÊUTICA

A hermenêutica constitui hoje um "lugar filosófico" maior; [mas] nem sempre foi assim. Tradicionalmente, os teólogos católicos chamam «hermenêutica» à «arte que traça as regras da interpretação das Sagradas Escrituras», e «exegese» à «aplicação destas regras» (2). A palavra hermenêutica é um adjectivo substantivado que transcreve o grego herméneutiké (s.e. tekhné): (arte) da interpretação (3). Deriva do verbo herméneuein que significa «interpretar», «explicar», e que faz referência a Hermes, o intérprete e o mensageiro dos Deuses, o mestre dos segredos da palavra e do poder dos signos, cujo nome se aproxima de herma que designa todo o objecto que serve de ponto de apoio ou de marca de referencial, em particular nas pedras levantadas, eventualmente itifálicas, o que não deixa de ter relação com o lingam de Shiva, palavra que, em sânscrito, significa «signo». Hermes é filho de Zeus e da ninfa Maia (4), do mesmo modo que Ganesha («Senhor» = îsha das «categorias» = gan) é filho de Shiva e de Pârvatî; ambos são «logotetas», reveladores celestes dos signos da palavra e da escrita, das ciências e das artes. Na revelação cristã a função de Hermes é atribuida a São Paulo que é assim designado pelos habitantes de Listra «porque ele trazia a palavra» (5). Únicos de entre os Padres [da Igreja], Orígenes e Santo Agostinho elaboraram precisamente uma "teoria geral" da hermenêutica (6), sem todavia "nomear" esta mesma ciência. Nos latinos, fala-se correntemente de interpretatio, de intelligentia, expositio, explicatio, explanatio, enarratio, commentarium, lectio, etc., mas jamais de hermeneutica. Mesmo quando os escritores católicos tiveram necessidade, na época da Reforma, de redigir tratados específicos de hermenêutica bíblica, eles não empregaram o termo, nem em latim (o termo preferido é o de interpretatio), nem em francês (onde se emprega sobretudo «explication» ou «intelligence» da Escritura). De centro e trinta e sete tratados católicos de exegese recenseados entre 1528 e 1900, apenas contámos quarenta e quatro (ou seja, menos da terça parte) que trazem no seu título a palavra hermeneutica, que apenas aparece pela primeira vez em 1751: De verbo Dei scripto et tradito seu Introductio in hermeneuticam sacram utriusque Testamenti, de Corbinien Thomas (Salzburgo). Por outro lado, de oitenta e dois tratados protestantes, entre 1567 e 1900, encontramos quarenta (ou seja, perto da metade) cujo título contém «hermenêutica», o primeiro surgido em 1654: Hermeneutica sacra, de J. C. Dannhauer (Estrasburgo). O uso do termo vem então incontestavelmente dos protestantes desejosos de se demarcar da terminologia latina demasiado católica usando uma palavra grega. Contudo, ele impôs-se nos próprios católicos que acabaram por a integrar no vocabulário técnico da teologia e que lhe deram um lugar ao lado do termo consagrado de «exegese», o qual designa em suma a hermenêutica em acto: deste modo Leão XIII, na sua encíclica sobre a Escritura santa, Providentissimus Deus [7], fala das «regras da hermenêutica». Em francês, o adjectivo «hermenêutico» foi registado num dicionário pela primeira vez em 1777 no Supplément da Encyclopédie de Diderot e de D'Alembert. Quando ao substantivo, aparece em 1852 no Manuel d'herméneutique biblique de Cellérier, publicado em Genebra.
Estes dados históricos (8) mostram que o emprego da palavra «hermenêutica» é correlativo da elaboração do conceito de uma ciência especial de interpretação bíblica. Um tal conceito deveria atrair a atenção dos filósofos sobre o acto de interpretar enquanto tal: que fazemos nós quando lemos um texto, bíblico ou não? É o filósofo e o teólogo protestante, Schleiermacher que, em primeiro lugar, formula a exigência de uma hermenêutica geral (1819): «Não existe uma hermenêutica geral que seja uma arte de compreender, existem [apenas] diversas hermenêuticas especiais» (9). Este tema será retomado pelo seu longínquo discípulo Dilthey que o desenvolverá num método geral das ciências da cultura (em alemão as «ciências do espírito», Geisteswissenschaften): Origem e desenvolvimento da hermenêutica (1900) [10]. A partir de Dilthey, com Husserl e sobretudo Heidegger, a reflexão filosófica sobre o acto de interpretar, ou seja, o acto pelo quando nós conferimos tal significado, não só a tal elemento cultural, mas ainda a todos os dados da nossa existência, adquire a sua maior generalidade: o homem não regista apenas os factos, ele compreende-os e interpreta-os como os signos de um certo sentido da existência; aqui, a hermenêutica identifica-se à própria filosofia. Cremos todavia, com Gadamer e Ricœur, que não há «hermenêutica do dasein [11]», de interpretação fundamental da experiência de existir, que não seja informada por uma certa tradição cultural, a qual, para nós, apela necessariamente a uma revelação. A compreensão de si mesmo e do mundo, a «leitura» que fazemos da vida e das coisas efectua-se sempre sobre a base e com a ajuda das chaves da tradição simbólica universal.

(1) Jean Borella, op. cit., pp. 34-35.
(2) Pe. Berthier, Abrégé de théologie dogmatique et morale, E. Vitte, 1927, n.º 214.
(3) Platão, Política, 260d.
(4) Hinos homéricos, Mercúrio, I, 1.
(5) Actos dos Apóstolos, XIV, 12.
(6) Tratado dos Princípios, IV, 8-27; Da doutrina cristã, II e III.
[7] de 18 de Novembro de 1893 (N. T.).
(8) Cf. o artigo «Herméneutique» de E. Mangenot, no Dictionnaire de la Bible de Vigouroux, tomo III, 1903, col. 612-633.
(9) Hermeneutik, editado por Kimmerle, Academia das Ciências e da Cultura de Heidelberg, 1959, p. 79).
[10] Em alemão, Die Entstehung der Hermeneutik (N. T.).
[11] Palavra alemã cujo significado é o de "existência". Contudo, com o filósofo Heidegger, a palavra adquiriu um significado filosófico próprio (N. T.).

terça-feira, 16 de agosto de 2005

Qual é o problema do Criacionismo?

(reprodução do texto publicado no Afixe)

O que se segue, como não podia deixar de ser, é um texto de opinião, visto que não me considero entendido nas matérias em questão.

As posições tomadas por George W. Bush, nos E.U.A., relativamente ao ensino do intelligent design nas escolas a par com as doutrinas evolucionistas têm gerado imensa polémica.
Muitos evolucionistas surgem ao ataque, agitando as suas espadas em nome da Ciência, contra o que chamam de "obscurantismo medieval", ou seja, o criacionismo.
A histeria, como se sabe, nunca é boa a ajuizar em matérias tão difíceis. Antes de mais, tenho que dizer que, sendo católico, e tendo pensado muito no assunto, opto por uma forma específica de criacionismo. A mais elementar obediência à doutrina católica deveria ter-me levado a assumir, imediatamente, a defesa dessa tese cosmológica. Contudo, parece-me sempre proveitoso que se medite sobre estas questões, de modo a que o crente tome uma decisão, que não obstante ser de fé, seja maturada e ponderada.

Ponhamos as duas teorias (e sublinho a palavra teorias) lado a lado, de forma muito sucinta:

- o Evolucionismo: não obstante os inúmeros ramos evolucionistas, e a grande disparidade de correntes que existem, parece-me razoável definir o evolucionismo como uma tese que se sustenta em dois pontos essenciais, que devem jogar em conjunto para o sucesso da teoria:

a) a Selecção Natural, devida a Darwin, como forma de filtrar a aptidão para a sobrevivência de uma dada espécie; as espécies menos preparadas desaparecem, as mais bem preparadas sobrevivem e multiplicam-se

b) as mutações genéticas como justificação para a variedade de espécies; ao longo de muitos milhões de anos, a alteração por mutação do património genético de uma espécie (ADN) faria dela uma outra espécie

- O Criacionismo: também uma posição matizada, feita de inúmeras correntes, que advoga, para justificar a variedade das espécies de seres vivos, a acção inteligente de uma entidade superior, que se poderia definir como divina e criadora.

Nos E.U.A., temos assistido recentemente ao surgir de inúmeros movimentos criacionistas, que atacam ferozmente o evolucionismo. Vejamos o que é defendido nas mais importantes modalidades do criacionismo:

a) há os que advogam que o Génesis e as Sagradas Escrituras devem ser lidas à letra, defendendo deste modo que a Terra não teria mais do que alguns milhares de anos; seguem a cronologia do Arcebispo de Armagh (Irlanda), James Ussher, que no século XVIII elaborou uma estrutura de datação para a Terra, afirmando que a Criação se dera no ano de 4004 a.C.

b) há os que, afirmando-se cristãos, concordam com a generalidade, senão mesmo a totalidade, da teoria evolucionista; defendem que a evolução, a par com a selecção natural darwiniana, são processos intencionais criados por Deus para guiar o devir do mundo natural

Há ainda inúmeras outras formas de ver o criacionismo que não professam necessariamente a ideia de que a Terra é recente, ou a ideia de que o Génesis deve ser lido com os olhos do Homem do século XXI, e não obstante manifestam-se altamente críticas, não tanto da Selecção Natural mas sobretudo da evolução das espécies por mutações.

Encontro-me nesta última categoria, e foi precisamente o facto de eu achar que este tema anda a ser discutido de forma altamente falaciosa, imperfeita e política que me atirei para a frente com a ideia de lançar este tema aqui no Afixe.

Certos evolucionistas rejubilaram quando, há uns anos a esta parte, o Papa João Paulo II afirmou que a evolução era mais do que uma hipótese. Para eles, era o sinal de que a Igreja Católica dava luz verde ao evolucionismo. Com a subida do Cardeal Ratzinger ao trono papal, muitos demonstraram a sua revolta por aquilo que julgavam ser um retrocesso num suposto "amén" católico ao evolucionismo.
Nada disso.
O actual Papa Bento XVI está em total sintonia com João Paulo II neste aspecto. O evolucionismo é mais do que uma hipótese: é uma teoria científica. A selecção das espécies não contradiz a razão natural nem o mais elementar bom senso. As espécies mais bem adaptadas sobrevivem, e outras menos adaptadas morrem.
As recentes declarações do Arcebispo de Viena, Cristoph Schönborn, geraram mais uma onda de contestação mediática. Vemos que as palavras deste Arcebispo evidenciam claramente a necessidade dos esclarecimentos que o seu texto traz.
Schönborn diz, com muita razão, que muitos evolucionistas deram uma interpretação equivocada às palavras do Papa João Paulo II. O Papa João Paulo II, numa audiência datada de 10 de Julho de 1985, pronunciou sólidas palavras sobre esta matéria. Em suma, o Santo Padre afirmava:

«A evolução dos seres vivos, de que a ciência procura determinar as etapas e discernir o mecanismo, apresenta um finalismo interno que suscita a admiração. Esta finalidade que orienta os seres numa direcção, da qual não existem padrões nem responsáveis, obriga a supor um Espírito que seja o seu inventor, o criador.»

Estas palavras prudentes demonstram que o Santo Padre não se pronunciou fora do campo da sua competência, deixando à Ciência o trabalho árduo de discernir o mecanismo do devir dos seres vivos. O que não está aqui, e que nunca foi defendido pela Igreja Católica, é um aval ao neo-darwinismo, a defesa da ideia peregrina de que a inteligência surge nos seres vivos por milhões de anos de mutações ocasionais e aleatórias. No limite, mesmo sendo possível demonstrar que as mutações genéticas permitem a multitude de espécies conhecidas (extintas ou não), a doutrina católica mostra-se clara num ponto fundamental: a matéria não engendra o intelecto.

Importa salientar que, no debate de ideias, há sempre espaço para uma certa dose de fé. Senão vejamos: ninguém discute a presença desta dose de fé no lado criacionista. Contudo, poucos a reconhecem no lado evolucionista.
Nos meus tempos de Universidade, trabalhei com ferramentas matemáticas que dão pelo nome de Algoritmos Genéticos. O bonito nome pode gerar equívocos, pelo que importa explicar sucintamente o que são e para que servem.
Os algoritmos genéticos são uma das muitas metodologias de resolução de problemas matemáticos. Antes de principiar um algoritmo genético, há que ter duas coisas (que me desculpem os especialistas por esta apresentação mutilada e simplista):

1. Uma heurística que codifique numericamente uma solução para o problema; sem esta codificação (dita "genética"), a solução não pode ser trabalhada algoritmicamente

2. Uma função de custo, que avalie o valor de uma dada solução. Esta função de custo será o juíz, que dará uma pontuação (numa escala pré-definida) a cada solução do problema

Como evolui o algoritmo?
Evolui sensivelmente da mesma forma que, segundo os evolucionistas, o mundo vivo teria evoluido desde os primórdios:

a) parte-se de um conjunto aleatório de possíveis soluções para o problema, todas colocadas em pé de igualdade, e todas codificadas da mesma forma; o ingrediente elementar de cada solução é chamado de "gene", e é um valor numérico que pode ser modificado

b) mutações ocasionais (alterações na codificação das soluções em jogo) permitem o surgimento de novas possíveis soluções; a função de custo avalia as novas soluções: as menos pontuadas vão para o fim da lista (e podem mesmo ser eliminadas); as mais bem pontuadas ascendem na tabela de pontuação.

Ao fim de muitos passos, com maior ou menor dosagem de mutações, o algoritmo produz a "melhor" solução, extraída por pontuação do conjunto inicial aleatório de soluções.
Isto funciona!
Contudo, não se pode aplicar este raciocínio ao ADN dos seres vivos. Porquê? Há várias razões, mas sublinho estas:

1. O património genético de um ser vivo é composto por milhares de genes e é tipicamente muito estável; o ADN reage, muitas vezes, a mutações que num algoritmo numérico poderiam ser desastrosas, mas que no mundo real podem não ter consequências graves para o ser vivo: a Natureza defende-se das mutações

2. As mutações na Natureza são um fenómeno raro, de carácter aleatório, e que apenas pode ser trabalhado probabilisticamente. Num algoritmo, podemos dosear a quantidade de mutação, e é só uma questão de tempo e de processador para que o algoritmo produza uma solução boa. Mas a Natureza não funciona assim, e confesso que vejo a necessidade não de um, mas de vários milhões de milagres para que, ao longo de tanto tempo, e parodiando, uma amiba dê origem ao Homem, tudo apenas com mutações genéticas.

Por tudo isto, penso que o evolucionismo tem um lado aceitável (a Selecção Natural, que pode encerrar em si mesma uma parcela da verdade sobre o devir das espécies), e um lado questionável (a evolução por mutações).
Questionar o evolucionismo é tarefa de qualquer pessoa séria que se debruce sobre este problema. Aliás, em Ciência, questionar é A TAREFA. Como eu gostaria de ver nestes tempos as mentes mais brilhantes debaterem estes temas sem entrarem na infantilização do adversário e sem entrarem em jogadas políticas de ataque à religião.

O criacionismo existe há milhares de anos no mundo Ocidental. Estruturas teóricas cosmológicas semelhantes encontram-se no pensamento oriental. A metafísica e as formas de ontologia de origem divina acompanharam o pensar humano desde sempre. Não faz sentido menosprezar o imenso peso intelectual dos defensores do Criacionismo. E muito menos tentar transformar os delírios intelectuais com que os E.U.A. nos costumam brindar, nestas e noutras matérias, na regra geral aplicável a todos. A forma como concebo o criacionismo é muito diferente da da maioria dos criacionistas norte-americanos.
Fica para uma próxima oportunidade alongar-me mais sobre isto.

Para terminar, uma ideia fundamental: o criacionismo é uma tese que não pode ser tratada pelas ferramentas da ciência moderna. É esta uma das razões principais para o aprofundar de toda esta incompreensão. Pelo facto de recorrer a causas metafísicas, e portanto supra-empíricas, o criacionismo é sobretudo uma corrente filosófica. O criacionismo estabelece uma causa sobrenatural para efeitos naturais. O evolucionismo, pelo contrário, e também legitimamente, procura essa mesma causa na própria natureza.
Duas metodologias diferentes que teriam que, naturalmente, conduzir a duas teorias diferentes.
Qualquer "dogmatismo científico" nesta área só pode ser estéril. Se eu fosse um cientista adepto do evolucionismo não me preocupava com os criacionistas: não há base científica para demonstrar o criacionismo. Contudo, as coisas também não estão fáceis para o evolucionismo, uma vez que a base científica de demonstração é eminentemente frágil, controversa e questionável. Para mais, o cientista moderno, em absoluto, terá que ter sempre presente que abdicou, por opção própria, do metafísico no primeiro dia em que se decidiu a trabalhar com ferramentas científicas modernas.
Deixemos a linguagem dogmática para a religião, que é a única que, por definição, a pode exercer com autoridade. Esperemos que os neo-darwinistas possam encontrar a calma e a lucidez para poderem efectuar verdadeiro trabalho científico, ao invés de promoverem agendas anti-religiosas.
Por outro lado, esperemos que os criacionistas do séquito de George W. Bush, com as suas agendas fanáticas bem preenchidas, não façam mais estragos a esta já delicada situação.

Bernardo

Sou criacionista...

... e com muito orgulho, porque é uma posição tomada com ponderação com sensatez e com muita hora dedicada a pensar no assunto.
Outros há que, dotados de uma inteligência acima da média, porque não sujeita à obscurantista religião, pensam melhor que uma criatura como eu, que só pode ser criacionista por ignorância ou casmurrice.

Diz a Palmira que costuma tratar em vários posts os "mitos cristãos sobre a origem do Universo", ou seja, traduzido para linguagem não distorcida, ela pretende falar sobre cosmogonia cristã. Um tema que ela ignora profundamente, ou se não ignora, apresenta-a de uma forma totalmente distorcida.
Oxalá que seja por ignorância que escreve o que escreve, Palmira, porque senão será por razões mais graves, que se prendem com a típica desonestidade intelectual que encontramos um pouco por toda a parte no local onde costuma escrever.
Que quer ela dizer? Que a cosmogonia cristã é "mitológica", ou seja, que nada tem a ver com a realidade.
Sim, e a teoria que esta senhora defende, ou seja, a teoria de que tudo o que existe e vive neste Universo surgiu devido a milhões de acasos, cada um deles de probabilidade quase zero, que ficaram a marinar durante biliões de anos?
Quando se pergunta a um evolucionista como é que ele explica os "missing links", a resposta é quase sempre esta: "passou muito tempo".
Ou seja, é como jogar na lotaria.
A evolução, como teoria, é semelhante a jogar no Euromilhões. Ganhar é fácil! Bastaria jogar 1.000.000.000.000.000.000 de vezes e tudo correria bem, quase de certeza!

Que dizer desta teoria, senão que se nos afigura como eminentemente mitológica? Como acreditar nisto? Como não ver nisto a marca da pseudo-ciência?
Darwin: que dizem em teu nome estes novos pseudo-cientistas?

Selecção natural? Tudo bem, porque darwinismo não é igual a neo-darwinismo. Nada tenho a opor à rarefacção de espécies menos preparadas para os meios em que viveram, desde que não me façam crer que as espécies dão saltos por acaso, que estranhas mutações fazem uma espécie mudar para outra totalmente diferente, e que, passados milhões de anos, uma ameba se torna num homem.
Mas passemos adiante, e deixemos os novos cientistas destruirem a Ciência, porque o que me traz aqui é a questão religiosa, que como sempre, é usada como papel higiénico na prosa desta senhora.

Como é desonesta, Palmira gosta de misturar a posição da Igreja Católica, que é a minha, e que é a da criação do Mundo por Deus exemplificada pela constatação de que há um desenho inteligente no Universo, com outras posições ridículas que ela vai buscar, como não podia deixar de ser, ao pardieiro intelectual dos nossos tempos: os E.U.A., onde pululam grupelhos de estranhos criacionistas que defendem as mais bizarras teses, e que a Palmira, muito convenientemente, mistura ao barulho como se fossem de índole intectual idêntica à da Igreja Católica.

"Mas nos Estados Unidos, onde o fundamentalismo e a IDiotia cristãs prosperam, os mitos cristãos da Criação são aceites como verdade por uma percentagem assustadora da população."

Assustadora porquê?
Sendo criacionista, devo supor que meto medo à Palmira?
Buuuu!!

"Nomeadamente acreditam que a Terra e o Universo foram criados em seis dias há menos de 10 000 anos, que todos os animais existentes (incluindo os extintos) foram criados simultaneamente e passaram por uma temporada na arca de Noé, enfim aceitam como verdade absoluta os absurdos mitos bíblicos."

Isto é, evidentemente, uma infantilização total do relato do Génesis. É perfeitamente possível professar a verdade do Génesis, e simultaneamente admitir os factos incontestáveis que os métodos científicos nos exibem. E tudo isto sem se ser evolucionista!
Há toda uma incompreensão profunda da tessitura do Génesis, e mesmo da linguagem própria do texto revelado.
E tudo isto em nome de quê?
De uma enorme arrogância pseudo-intelectual, de uma chacota da religião, e tudo feito, como não podia deixar de ser, infantilizando os crentes.
Há crentes que pensam, por muito que isso incomode gente como esta.

"Por exemplo, pretendem que os métodos de datação que indicam muitos milhões de anos para a idade da Terra são todos falíveis e assentes em pressupostos errados"

É possível ser criacionista e defender que a Terra tem milhões de anos de idade. E tudo isto sem ser evolucionista. É o meu caso e o de muitos outros criacionistas que pensaram antes de tomar uma posição.
E esta, hem?
Uma faláciazinha, Palmira? Mais uma?
Onde é que eu me encaixo, agora que você separou tudo em mais um dualismo falacioso, bem ao seu gosto e de acordo com as suas capacidades?

"Considerando que os primeiros ataques do Vaticano ao «criacionismo» ateu já começaram e que certamente se seguirão mais investidas para instalar o «santo» obscurantismo medieval, tão louvado pelo anterior Papa, no próximo post continuo com a análise do mito cristão da Criação!"

Análise?
Onde estava ela?

Bernardo

P.S. Peço desculpas aos leitores que não são alvo deste texto. O estilo ácido usado tem um propósito didáctico: fazer ver que estas questões não podem ser transformadas em guerrilha ideológica. E fazer ver que, como crente, me sinto ofendido pelo estilo parodiante usado por alguns escritores ateizantes (ateizantes porque, ao invés de serem apenas ateus, querem ateizar o Mundo) como a Prof. Palmira. O crente criacionista não pode ser rotulado de estúpido ou de acéfalo. Essa forma de ataque ad hominem demonstra que os adversários do criacionismo preferem esse estilo de pseudo-debate a uma troca de ideias com mútuo respeito e seriedade. O estilo mais sério do texto que se segue é prova de que prefiro tratar estes temas com calma e serenidade, e que sempre foi esse o meu objectivo.

segunda-feira, 11 de julho de 2005

Sincrético, José? Eu?

Meister José, um velho amigo destas andanças blogosféricas, honrou-me na semana passada com esta menção, num artigo intitulado Música celestial:

O Bernardo Motta, outro indivíduo de mistério, autor publicado, vindo das trevas do esoterismo e chegado à claridade do Catecismo, católico tradicionalista mas sincrético, atento leitor de René Guénon mas também de Ananda Coomaraswamy.

Como diria o outro, olha que não, José, olha que não!
É, de facto, bem feito para mim que o José me chame de sincrético. E, não fosse eu estar agora aqui prontinho para tentar fugir com o rabo à seringa, estaria tudo dito! Mas vou tentar safar a minha pele...
Meu caro José, na parte do católico tradicionalista acertas em cheio, se bem que a expressão é perigosa, uma vez que permitiria supor que eu tenho alguma coisa a ver com os católicos também ditos "tradicionalistas" que não reconhecem nenhum papa como válido desde o Concílio Vaticano II. Não é o meu caso. Por isso, deixando bem claro que me sinto plenamente integrado na Igreja Católica, não deixo de ser profundamente tradicionalista.

Agora vamos à questão do esoterismo e do sincretismo, que é bem mais espinhosa.
Tal como o dia é luminoso e a noite é escura, eu tenho a minha fé católica como a parte segura, luminosa, "diurna" da minha personalidade.
Por outro lado, a parte "noctura" de mim procura incessantemente tudo o que se mexe espiritualmente. Sou um curioso nato, e é algo que tenho em comum contigo, José. Mas a minha curiosidade leva-me a sair, à noite, da segurança da Cidade de Deus para os terrenos inexplorados onde há tanta coisa para descobrir.
Fora da cidade, também haverá profetas?
Penso que sim, e é isso que me faz sair, por vezes, da segurança das fronteiras bem definidas. Serei esoterista? Acho que não, sou apenas um curioso destas temáticas. Serei sincrético? Julgo que não, porque dos esoterismos retiro, sobretudo, interesse intelectual, e não opção religiosa ou pística. Seria sincrético se, paralelamente à fé católica, eu mantivesse crenças e convicções de fé externas a ela. Não é o caso.
Contudo, pela maneira como escrevo, ou quando defendo a qualidade que existe, inegavelmente, em certos esoterismos, é natural que eu pareça sincrético. René Guénon, e Ananda Coomaraswamy são os exemplos que levantas, José, e são bons exemplos. São exemplos do esoterismo sério e culto. Não os ler é, a meu ver, perder um manancial de intelectualidade. Isso não quer dizer que eu adira à totalidade (ou a grande parte) das suas ideias. René Guénon é um autor com imenso para ensinar a católicos, mas a sua obra contém também uma série de ideias incompatíveis com a fé católica.
Discernir é difícil, mas sabes bem que isso me diverte imenso.
Somos muito parecidos em termos de fé, José, e ambos tivemos uma conversão tardia (eu sempre fui "formalmente" católico, mas só me converti de facto já em idade adulta, quando finalmente pude pensar de forma madura sobre estes assuntos). Dizem que os que se convertem tardiamente se tornam fanáticos. Espero que isso não esteja a acontecer comigo. Para combater isso é que eu sou, como tu, intelectualmente irrequieto e inquieto. Isso é bom. Desde que seja temperado com bom senso!
Um abraço,
Bernardo

domingo, 10 de julho de 2005

Desabafos

Depois de ler a animada troca de comentários entre o Machogrosso e o CA relativamente ao meu último post, apeteceu-me escrever estes desabafos. Peço a quem me lê que veja isto como meros desabafos, cujo reduzido valor serve como boa desculpa para a linguagem ligeira por mim utilizada.
Agradecendo a ajuda do Machogrosso, meu amigo transatlântico, que muitas vezes por cá passa para me demonstrar que eu não estou louco, e que, graças a Deus, ainda há pessoas a tentar pensar e a colocar questões com clareza, queria tecer alguns comentários, à laia de desabafo, depois de ter lido o que escreveu o CA.
O CA recorda-me uma fase da minha vida, na qual eu também diabolizava as "estruturas" do Vaticano, e procurava colocar todas as minhas ignorâncias dentro dessa grande caixa negra de "futilidades vaticanas". Assim, nessa óptica, eu era um protestante sem o saber. Era um protestante que ia à missa, convicto de que não precisava de toda aquela "tralha" inventada por um Vaticano "burocrático" e "déspota".
Mas caramba, eu tinha então vinte anos e era muito ingénuo!
Estava profundamente formatado pela opinionite inculcada pelos mass media.
Desde essa altura, tenho feito um esforço considerável para me instruir em doutrina católica, para aprender o máximo que posso sobre a História da Igreja Católica, para esclarecer as minhas inúmeras dúvidas junto de fontes sérias e credíveis.
Faz-me uma imensa confusão que se considerem as ilacções doutrinárias da Congregação para a Doutrina da Fé como coisas acessórias para a fé do católico.
E porquê?
Porque, do meu estudo das heresias e da história agitada dos primeiros séculos de cristianismo, recordo-me dos excessos de certas seitas que, detestando todo o tipo de estrutura hierárquica, procuravam, numa quase anarquia, o que eles achavam que era "cristianismo original".
A hierarquia foi estabelecida, à luz da doutrina, pelo próprio Jesus Cristo, que escolheu a figura de Pedro como cabeça do seu movimento:

Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam

Não poucas vezes, vejo crentes católicos repudiarem dogmas como o da Infalibilidade Papal, ou o da Imaculada Conceição de Maria, só porque são, para eles, "invenções modernas". Estes dogmas, mesmo surgindo na era moderna, são os frutos da tradição apostólica, do desabrochar das potencialidades da fé crística. Será a maçã, recentemente formada, de natureza diferente da árvore que a gerou?
A tradição apostólica faz da Igreja Católica um dos mais complexos, mas também dos mais coerentes, movimentos que a Humanidade já conheceu.
É da mais simples e discreta humildade que o crente, perante uma naturalíssima dúvida, dê o benefício a uma doutrina com dois mil anos de tradição.
Por outro lado, é da mais abjecta arrogância recorrer à diabolização do Vaticano (transformado em máquina infernal de fúteis invenções doutrinárias) para tentar ocultar atrás de uma opinionite aguda graves deficiências de cultura católica.
Como é possível que um crente, profundamente desconhecedor das questões fundamentais do cristianismo, seja tão egocêntrico ao ponto de achar que a sua opinião ignorante, puro flatus voci, vale alguma coisa contra a solidez de temas tratados durante milénios pelas mais brilhantes cabeças que o Ocidente conheceu?
Usa-se, hoje em dia, e abusa-se, de termos como "tolerância", ou "liberdade de expressão", ou ainda "liberdade de opinião".
Nada tenho a opor-me a estes termos, nem às liberdades por eles defendidas. Contudo, ninguém me poderá negar o direito a expor este vício moderno, a opinionite, pela qual a ignorância pretende subir ao palanque para arrancar à força os louros que antes cabiam à sabedoria.
Opiniões, todos as podemos ter.
Contudo, evitemos confundir opiniões com factos.
É um facto que a doutrina católica professa a existência do Diabo, dos seres intermédios (vulgo "anjos" e "demónios"), bem como usa rituais adequados para lidar com certas situações de real possessão demoníaca.
A opinionite dos católicos "modernistas", cuja intelectualidade está já irremediavelmente materialista, positivista e empirista, nada poderá fazer contra este facto, mesmo que hoje em dia poucos sejam aqueles que o reconhecem como facto.
Ajudados como estão por, também eles "modernos" e "progressistas", teólogos que hoje em dia já são sobretudo "kantianos", "hegelianos", "schopenauerianos", "cartesianos", "jamesianos", teólogos que já não se interessam pela santa doutrina que herdaram dos nossos antepassados na fé, os modernos crentes católicos tentam transformar o catolicismo numa grande tenda, onde cabem todos, bem ao estilo dos tempos modernos.
No que me toca, da minha miserável condição de ser humano que nunca poderá evitar a "marcha do mundo", não me calarei e não prescindirei da denúncia dos vícios modernistas, que se infiltram ininterruptamente e subrepticiamente na doutrina católica.
Os católicos "modernistas", não se dão conta que, de facto, são meros instrumentos nesta marcha inexorável em direcção à dissolução do temporal. Lêem, entusiasmados, um Teilhard de Chardin (criador da excentricidade do "deus evolutor"), com o fascínio com que deveriam ler um São Tomás de Aquino!
O que quererá isto dizer sobre o catolicismo moderno, e sobre o destino que muitos lhe querem imprimir?

sexta-feira, 1 de julho de 2005

Instrução sobre o Exorcismo

SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ

INSTRUÇÃO SOBRE O EXORCISMO

24 de Setembro de 1985

Excelentíssimo Senhor,

Há alguns anos, certos grupos eclesiais multiplicam reuniões para orar no intuito de obter a libertação do influxo dos demônios, embora não se trate de exorcismo propriamente dito. Tais reuniões são efetuadas sob a direção de leigos, mesmo quando está presente um sacerdote.

Visto que a Congregação para a Doutrina da Fé foi interrogada a respeito do que pensar diante de tais fatos, este Dicastério julga necessário transmitir a todos os Ordinários a seguinte resposta:

1. O cânon 1172 do Código de Direito Canônico declara que a ninguém é lícito proferir exorcismo sobre pessoas possessas, a não ser que o Ordinário do lugar tenha concedido peculiar e explícita licença para tanto (1º). Determina também que esta licença só pode ser concedida pelo Ordinário do lugar a um presbítero dotado de piedade, sabedoria, prudência e integridade de vida (2º). Por conseguinte, os srs. Bispos são convidados a urgir a observância de tais preceitos.

2. Destas prescrições, segue-se que não é lícito aos fiéis cristãos utilizar a fórmula de exorcismo contra Satanás e os anjos apóstatas, contida no Rito que foi publicado por ordem do Sumo Pontífice Leão XIII; muito menos lhes é lícito aplicar o texto inteiro deste exorcismo. Os srs. Bispos tratem de admoestar os fiéis a propósito, desde que haja necessidade.

3. Por fim, pelas mesmas razões, os srs. Bispos são solicitados a que vigiem para que - mesmo nos casos que pareçam revelar algum influxo do diabo, com exclusão da autêntica possessão diabólica - pessoas não devidamente autorizadas não orientem reuniões nas quais se façam orações para obter a expulsão do demônio, orações que diretamente interpelem os demônios ou manifestem o anseio de conhecer a identidade dos mesmos.

A formulação destas normas de modo nenhum deve dissuadir os fiéis de rezar para que, como Jesus nos ensinou, sejam livres do mal (cf. Mt 6,13). Além disso, os Pastores poderão valer-se desta oportunidade para lembrar o que a Tradição da Igreja ensina a rrespeito da função própria dos Sacramentos e a propósito da intercessão da Bem-Aventurada Virgem Maria, dos Anjos e dos Santos na luta espiritual dos cristãos contra os espíritos malignos.

Aproveito o ensejo para exprimir a Vossa Excelência meus sentimentos de estima, enquanto lhe fico sendo dedicado no Senhor.

Joseph Card. Ratzinger
Prefeito


Retirado de Instrução sobre o Exorcismo - Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, do site oficial do Vaticano.

Posto isto, com um texto tão claro como este, como é possível que tantos católicos ainda considerem que a existência do Diabo e dos demónios é matéria opcional de fé?
E como é possível que tantos católicos não entendam a necessidade do rito de exorcismo, mesmo que ele apenas tenha que ser usado raríssimas vezes?

terça-feira, 28 de junho de 2005

O católico e as suas obrigações

O Lutz dedicou este post à discussão que tem corrido nestes dias sobre a questão do Diabo à luz da doutrina católica.
Desde já, agradeço-lhe o post, que demonstra a sua tenacidade em reflectir sobre este assunto, e em tentar tirar do tema todas as ilacções possíveis.
Contudo, sinto-me profundamente injustiçado, e sinto que a minha posição foi totalmente incompreendida.
No texto do Lutz, saem enaltecidos os católicos que toleram tudo dentro da sua religião, que num esforço por tolerar o outro, também concordam com o erro do outro. Ora isso não é tolerância. Isso é incoerência.
Uma das maiores facetas da caridade é corrigir o próximo. Nada me parece mais importante do que corrigir o próximo e deixar-me corrigir por ele. Nos dias que correm, as pessoas andam demasiado preocupadas com os seus egos.
Para elas, as minhas palavras eram uma intimação: "Se crês no Diabo, fica! Se não crês, sai!".
Mas alguma vez era essa a minha intenção, Lutz?
Alguma vez?
O que eu disse, e que continuo (teimosamente, se calhar) a dizer é simples e claro como a água: ser católico implica professar a doutrina católica.
A doutrina católica tem uma forma particular e característica de ver o Mundo. É através dessa forma peculiar de ver o mundo que o católico se define como tal, em pensamentos e em actos.
Será que os meus críticos reagiriam do mesmo modo se eu afirmasse ser necessário crer em Jesus Cristo como Deus para ser católico?
Vamos fazer uma suposição: o meu post era sobre Jesus Cristo ser Deus, Filho de Deus feito homem. Estaria eu a ser "intolerante" se eu afirmasse que um católico tem que crer que Jesus é Deus?
Pois qual é a diferença?
Haverá diferença de natureza nas duas situações?
Creio que não há.
Há apenas uma diferença de importância: é notoriamente mais importante para o ser católico crer em Jesus como Deus do que professar a existência do Diabo. Contudo, esta diferença de importância não estabelece uma separação de naturezas: ou seja, o católico, apesar de dever saber dar prioridades nas suas convicções, não pode traçar arbitrariamente a fronteira do que é a crença católica e do que são opiniões pessoais.
Para evitar essa arbitrariedade, existem inúmeros documentos que ajudam o crente a saber, exactamente, o que é a doutrina que ele professa. Um desses documentos é o Catecismo.
O que sucedeu nos posts do Lutz, e por outras bandas, foi que certos católicos decidiram fazer ridícula a minha posição. Quando o que eu apenas lhes afirmei foi o que está no Catecismo da Igreja Católica. O meu post era uma chamada à reflexão para católicos (e também para não-católicos). Não era um julgamento inquisitorial!
No Pai Nosso, dizemos: "Mas livrai-nos do Mal". O que é esse Mal?
Era esse o cerne do meu post, e era a essa reflexão que eu estava a convidar quem estivesse interessado.
Não sou juíz de ninguém, porque primeiro tenho que ajuízar sobre mim próprio.
Mas não faz sentido ser-se católico, e usar o Catecismo à la carte.
Não é uma questão de obediência. É uma questão de coerência.

terça-feira, 21 de junho de 2005

O Diabo à luz da doutrina judaica e cristã

A pedido do Pedro Fontela, eis alguns esclarecimentos rápidos e muito sucintos sobre esta questão. Como são vários os termos empregues para representar o Diabo, convém ter alguma precaução, porque cada termo possui um contexto e um significado diferentes.

Comecemos por Satanás, ou Satã.
Vem do hebreu "shatan", que significa simplesmente "adversário".
Era neste sentido que a palavra era usada vulgarmente pelos hebreus, no sentido de um adversário ou de um inimigo (pessoa individual ou colectividade).
Elaine Pagels, na sua obra The Origins of Satan, defende a tese de que o Diabo era, originalmente, apenas o inimigo.
É totalmente verdadeiro o que o Pedro Fontela afirma, a saber, que a demonologia judaica e a demonologia cristã são muito diferentes.
Uma das características mais notórias é que a demonologia do Antigo Testamento fica àquem, no que toca à complexidade e ao detalhe, de outras demonologias do Médio Oriente, como a dos Assírios, a dos Acadianos, ou a do Avestá (Iranianos).
Embora o Antigo Testamento seja rico em detalhes angeológicos (arcanjos, serafins, querubins, anjos), é pobre no que toca à demonologia.
Mas tal não significa que ela não exista. O Mal está presente na história da serpente, no Génesis. Está em Job, em Reis, no livro de Zacarias. O Levítico adverte contra bruxarias. Isaías fala em demónios (cap. 34, vs. 14). O livro de Tobias (se bem que não faça parte da Bíblica hebraica, mas sim da Cristã) fala no demónio Asmodeus. E há muito mais casos...
Por tudo isto, não me parece correcta a leitura excessivamente académica de Elaine Pagels, que simplifica uma questão complexa. É correcto que os Judeus usavam a palavra "satã" para designar os seus adversários. Mas isso não chega para afirmar que eles não possuiam uma genuína demonologia nem professavam a crença numa criatura personificadora do Mal.

Outro esclarecimento impõe-se no que toca ao termo Lúcifer, que quer apenas dizer "Portador da Luz". Lúficer é a palavra latina para o hebreu "helel", ou o grego "heosphoros". Representa quase sempre a "estrela da manhã", ou seja o planeta Vénus, que se vê logo na aurora (Job 11:17, Salmo 109:3). Lucífer é um termo teologicamente inadequado para representar o Diabo enquanto criatura caída, uma vez que a tradição sempre considerou que o termo apenas se aplicaria ao Diabo na sua condição luminosa antes da Queda (o próprio nome o indica).
Como curiosidade, o termo "Lúcifer" é também aplicado a outras personagens, como por exempo ao Rei da Babilónia (Isaías 14:12), ao Sumo Sacerdote Simão, filho de Onias (Eclesiastes 50:6), e mesmo ao próprio Jesus Cristo (Pedro II 1:19; Apocalipse 22:16). E isto porque a palavra quer mesmo dizer "o portador da Luz", e neste sentido serviu para ser usada em vários contextos.
Por esta razão, o termo correcto, na doutrina católica, para a personificação do Mal é Satã, Satanás, ou simplesmente Diabo.
Etimologicamente, a palavra "diabo" vem do latim "diabolus", que por sua vez vem do grego "diabolos", e representa o líder das hostes demoníacas.

No Novo Testamento, são mais evidentes as referências ao Diabo, como o trecho de Mateus que referi no post anterior. O Apocalipse faz também várias referências ao Diabo, e de uma grande riqueza teológica.
A doutrina católica fixou de forma bastante literal a existência do Diabo e dos demónios:

"Diabolus enim et alii dæmones a Deo quidem natura creati sunt boni, sed ipsi per se facti sunt mali." - Concílio Latrão IV

("o Diabo e os outros demónios foram criados por Deus bons na sua natureza mas eles próprios se fizeram maus.")

Tenho a perfeita noção de que aflorei apenas a ponta do icebergue. Se o Pedro quiser, poderemos ir mais ao detalhe nalguma questão.

Referências:
Catholic Encyclopedia - Devil
Catholic Encyclopedia - Lucifer
Catholic Encyclopedia - Demonology

O Diabo no Novo Testamento

"Naquele tempo, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, a fim de ser tentado pelo Diabo. Jejuou quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome.
O tentador aproximou-se e disse-lhe:
«Se és Filho de Deus, diz a estas pedras que se transformem em pães».
Jesus respondeu-lhe: «Está escrito: ‘Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus’».
Então o Diabo conduziu-O à cidade santa, levou-O ao pináculo do templo e disse-Lhe:
«Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo, pois está escrito: ‘Deus mandará aos seus Anjos que te recebam nas suas mãos,para que não tropeces em alguma pedra’».
Respondeu-lhe Jesus: «Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’».
De novo o Diabo O levou consigo a um monte muito alto, mostrou-Lhe todos os reinos do mundo e a sua glória e disse-Lhe:
«Tudo isto Te darei, se, prostrado, me adorares».
Respondeu-lhe Jesus: «Vai-te, Satanás, porque está escrito: ‘Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele prestarás culto’».
Então o Diabo deixou-O, e aproximaram-se os Anjos e serviram-n'O."


- Mateus 4, 1-11.

Ainda o Diabo...

Eu já sabia que este tema iria gerar alguma incompreensão.
O meu amigo Lutz, conterrâneo de outras andanças, criticou o meu texto anterior sobre o Diabo, perguntando-me se os católicos que recusam o Diabo e a validade dos exorcismos ainda são católicos.
Ora bem, a questão parece-me assaz simples. O catolicismo é o que é porque está doutrinalmente definido. Os textos conciliares, as encíclicas apostólicas, as cartas pontifícias, o Catecismo da Igreja Católica, são tudo fontes fidedignas para saber o que é isto de ser católico.
Se a Igreja Católica fosse o IKEA, qualquer católico poderia entrar na loja, escolher as partes que gostava, e sair de lá de dentro com a "sua" doutrina.
Sucede que a Igreja Católica não é o IKEA.
Podemos ler, no Catecismo da Igreja Católica (por comodidade, não traduzi do inglês):

II. THE FALL OF THE ANGELS

391 Behind the disobedient choice of our first parents lurks a seductive voice, opposed to God, which makes them fall into death out of envy.266 Scripture and the Church's Tradition see in this being a fallen angel, called "Satan" or the "devil".267 The Church teaches that Satan was at first a good angel, made by God: "The devil and the other demons were indeed created naturally good by God, but they became evil by their own doing."268

392 Scripture speaks of a sin of these angels.269 This "fall" consists in the free choice of these created spirits, who radically and irrevocably rejected God and his reign. We find a reflection of that rebellion in the tempter's words to our first parents: "You will be like God."270 The devil "has sinned from the beginning"; he is "a liar and the father of lies".271

393 It is the irrevocable character of their choice, and not a defect in the infinite divine mercy, that makes the angels' sin unforgivable. "There is no repentance for the angels after their fall, just as there is no repentance for men after death."272

394 Scripture witnesses to the disastrous influence of the one Jesus calls "a murderer from the beginning", who would even try to divert Jesus from the mission received from his Father.273 "The reason the Son of God appeared was to destroy the works of the devil."274 In its consequences the gravest of these works was the mendacious seduction that led man to disobey God.

395 The power of Satan is, nonetheless, not infinite. He is only a creature, powerful from the fact that he is pure spirit, but still a creature. He cannot prevent the building up of God's reign. Although Satan may act in the world out of hatred for God and his kingdom in Christ Jesus, and although his action may cause grave injuries - of a spiritual nature and, indirectly, even of a physical nature - to each man and to society, the action is permitted by divine providence which with strength and gentleness guides human and cosmic history. It is a great mystery that providence should permit diabolical activity, but "we know that in everything God works for good with those who love him."275


Dirijo uma pergunta ao meu amigo Lutz, que eu lhe peço que responda com base no seu bom senso: faz sentido um católico não seguir o Catecismo?
Se o Catecismo compila a estrutura e o conteúdo doutrinários da Igreja Católica, e se os crentes escolhem como lhes apetece o que lhes convém (ou melhor, o que convém às mentes distorcidas pelos preconceitos da sociedade moderna, que é materialista até ao âmago), para que serve o Catecismo?

Eu espantar-me-ia se, numa sondagem à boca das Igrejas, mais de metade dos inquiridos tivesse a coragem para assumir que acredita no miraculoso! Muitos crentes fugiriam do assunto, ficariam corados! E se a pergunta fosse "Acredita na existência do Diabo?", as respostas seriam ainda mais escandalosas e ainda mais contraditórias face ao que ensina o Catecismo.

Qual é a minha ideia?
Propor obediência cega ao Catecismo?

Nada disso! Proponho, humildemente, aos meus irmãos católicos:

a) uma leitura atenta do Catecismo, e uma profunda revisão de consciência e do que implica ser católico e professar o catolicismo;

b) um estudo aprofundado sobre estes temas; porque aquilo que é compreeendido é mais facilmente professado.

Não defendo a existência do Diabo para obedecer à Igreja!
Defendo-a porque a doutrina, para mim, só faz sentido assim. Defendo-a, porque acho que corresponde ao real.
Para terminar, Lutz, acho que este teu trecho pode ser muito falacioso:

"Tenho muitos amigos católicos que discordam consigo. Pelo que percebi, nega-lhes o direito de se considerar católicos."

O que tu me dizes é que eu, por respeito para com os teus amigos (também tenho amigos que pensam o mesmo), deveria tentar acomodar (sabe-se lá como) estas opiniões divergentes e contraditórias com o magistério da Igreja?
O que deve fazer a doutrina católica perante os católicos que afirmam que o Diabo não existe? Deve a doutrina riscar essa parte?
E os crentes que não acreditam que Jesus Cristo está presente na Eucaristia? Se calhar, por respeito, a Igreja também deveria riscar essa parte?
E os crentes que não acreditam em milagres? Deverá a Igreja também riscar os milagres do mapa?
O que é que restaria do catolicismo? O que é que o diferenciaria, por exemplo, do protestantismo?
Parece-me que o teu argumento, caro Lutz, é emocional e não racional. Em nome de uma uma suposta (e falsa) "tolerância", ou por respeito para com as opiniões dos crentes, a Igreja Católica deve começar a cortar partes do Catecismo?

E quem terá mais credibilidade?

A) A Igreja com o seu magistério duas vezes milenar
B) O crente que não lê o Catecismo, não lê a Bíblia, não lê os textos oficiais, não sabe nada da História da Igreja

No fundo, e com todo o respeito, Lutz, o crente católico que me descreves, e que nega a existência do Diabo e a validade dos exorcismos, tem apenas "uma opinião" sobre a matéria, e nada mais. E uma opinião não fundamentada, se me permites.

terça-feira, 7 de junho de 2005

O Diabo

(publicado em simultâneo no Afixe)



Nos dias que correm, não poucas dificuldades se apresentam ao crente que vive já num mundo laicizado, racionalista e materialista.
Uma dessas grandes dificuldades apresenta-se com a existência (ou influência) do Mal como entidade distinta. Por outras palavras, a existência do que se chama vulgarmente de "Diabo". Ou se quisermos ser mais generalistas, a existência de entidades malignas ou demoníacas.
Uma das tácticas (porventura usadas inconscientemente) dos adversários militantes de qualquer religião consiste na infantilização e no desprezo de quem crê na existência do Diabo.
Dizem muitos que a crença no Diabo não se coaduna com a mente do "homem moderno", nem é compatível com a Ciência moderna. De forma totalmente desonesta, muitos tentam extravasar a Ciência moderna para fora dos seus limites, que são estritamente empíricos, querendo aplicá-la a tudo.
E, curiosamente, criou-se esta estranha ideia, que se entranha dia após dia: o Diabo era uma superstição dos nossos avós, uma coisa de gente atrasada, inculta, cientificamente analfabeta. Algo que "as Luzes" já teriam, supostamente, refutado.
No caso específico da Igreja Católica (contexto que me é particularmente caro), é curioso notar a campanha que se faz, nos dias que correm, contra o exorcismo e contra a crença nas entidades demoníacas.
Hoje em dia, não poucos católicos teriam coragem para, abertamente, professar a crença no Diabo. No entanto, deveriam saber que a sua liturgia, a liturgia católica, possui ainda rituais de exorcismo, que, ao invés de serem meros caprichos antiquados de gente perversa, fazem parte do corpo da doutrina da própria Igreja Católica.
Bastaria lermos, por exemplo, a Suma Teológica de S. Tomás de Aquino, na Primeira Parte, onde se discutem os seres demoníacos.

Será que os católicos dos dias de hoje estão tão iluminados pelo positivismo científico que se envergonham das palavras do aquinate, um dos maiores doutores da Igreja, cuja obra teológica é hoje ainda um dos pilares do seu magistério?

Espero que não me interpretem mal!
(grande lata, é evidente que me vão interpretar mal!)

Não estou a fazer qualquer tipo de propaganda doutrinária. Penso que esta matéria interessa a crentes e a descrentes.
Os primeiros deveriam saber que não faz sentido ser católico e recusar a crença no Diabo, porque isso só advém de uma incompreensão grave da doutrina que professam.
Os segundos deveriam sabê-lo, quanto mais não fosse para conhecerem melhor o que é isto de ser católico e com que linhas se cose a doutrina de um católico.

Ah, já estou a ver este post a dar estalada e gritos, de certeza!
Basta ter bom senso: no dia em que o ritual do exorcismo desaparecer da prática da Igreja Católica, ter-se-á dado uma enorme machadada na estrutura basilar da concepção católica do mundo criado por Deus. Ter-se-á distorcido, para além dos limites do razoável, o próprio conceito do Mal.
Não julgo que as entidades demoníacas tenham abandonado o nosso Mundo! Acho que nunca estiveram tão presentes. O problema é que, nos dias que correm, poucos são aqueles que sequer as concebem como reais!

Termino com uma máxima famosa:

«La plus grande ruse du Diable est de faire croire qu'il n'existe pas» - Charles Baudelaire (1821-1867)

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2005

Crítica ao Diário Ateísta

(publicado em simultâneo no Afixe)

Criticarei, de novo, um artigo do Diário Ateísta.
Poderão alguns questionar-se acerca do porquê deste meu interesse pelo Diário Ateísta.
O interesse é já antigo. Pessoalmente, atraem-me as questões sociológicas que a leitura deste site suscita.
Deixei de intervir há largos meses com comentários no Diário Ateísta porque o diálogo se tornou, infelizmente, numa conversa de surdos.
Mas continua a parecer-me útil criticar alguns dos textos que surgem neste site ateísta. Infelizmente, é pela mediocridade que me sinto obrigado a tecer críticas a este site ateísta. Por isso, longe de querer que as minhas críticas sejam críticas ao ateísmo, estas críticas são puramente culturais e históricas, e não incidem sobre qualquer questão pística.
Não há proselitismo católico nas minhas críticas.
Tenho apenas uma intenção didáctica. A intenção de dirigir um convite à reflexão, ao estudo, e a um aprofundamento de cultura histórica e religiosa aos membros do Diário Ateísta.
Creio que, para se combater eficazmente um adversário, é pertinente conhecê-lo bem.
Creio também que não é o que sucede com o Diário Ateísta, onde todos os dias vemos demonstrações de lacunas culturais, que a meu ver, dado o número elevado de visitas ao Diário Ateísta, prejudicam a imagem do próprio ateísmo na Internet, pelo menos aos olhos dos visitantes mais cultos.

Vamos ao teor da crítica de hoje.
André Esteves é o autor de um artigo intitulado "Doutorados e Ignorantes".

Segundo André Esteves,
"Nalgumas igrejas evangélicas e fundamentalistas americanas tornou-se um valor comum não tirar cursos universitários, ou ser-se «intelectual» porque são coisas seculares ou da carne."

O passado evangélico de André Esteves poderá, parece-me, explicar o seu interesse pelos movimentos evangélicos norte-americanos. Sou da opinião que muitos desses movimentos cristãos têm posturas fanáticas (prefiro este termo ao termo "fundamentalista", uma vez que me parece bom ter-se fundamentos). Nisto concordo com o André Esteves.
Contudo, parece-me inadequado usar estes casos de fanatismo evangélico norte-americano para extrapolar conclusões gerais relativamente ao universo dos crentes.

Assim, a frase que se segue, de André Esteves, é para mim uma generalização inaceitável:

"O medo de se tornar num «liberal» é palpável entre os jovens crentes das igrejas, para os quais uma universidade reputada ou o prosseguimento de estudos além da licenciatura, se tornaram sinónimos da perdição espiritual."

Antes de mais, faz-me especial confusão que se use o termo "liberal" para classificar a opção pela formação académica complementar à licenciatura. É um "liberal" aquele que prossegue os seus estudos após o grau de licenciatura?

Depois, a generalização. Partindo dos evangélicos norte-americanos, André Esteves partilha da opinião de que certas posturas fanáticas são para generalizar aos "jovens crentes das igrejas".

Por fim, chegamos ao ponto onde me parece se revelar com mais nitidez a lacuna cultural que me fez escrever esta crítica:

"Por cá, Deus demonstra-se complicado: a Conferência Episcopal definiu que para se ser bispo em Portugal tem que se ser doutorado. Antigamente aos desígnios de Deus para serem compreendidos bastavam a tonsura e aljubeta. Agora o capelo também se torna necessário."



É curiosa esta afirmação, que revela que André Esteves desconhece a obra e vida dos doutores da Igreja, sobretudo a de S. Tomás de Aquino. O aquinate é uma figura incontornável no reavivar da vida universitária medieval. Usando como tema central da sua actividade intelectual a conciliação entre o saber clássico grego (nomeadamente, a obra de Aristóteles) e a revelação cristã, S. Tomás de Aquino revolucionou a vida académica, dando um significado rejuvenescido e profundo ao que é o trabalho "universitário".
As "quaestiones disputatae" de S. Tomás primam por um esforço de rigor dialético e argumentativo, no qual uma tese é colocada em análise, sendo fornecidos argumentos a favor, e argumentos em contrário.

Todo o processo de uma "quaestio" é conduzido de forma a fazer surgir a conclusão de modo natural e justo, considerando todos os dados relevantes no processo.
A universidade moderna não seria igual ao que é hoje sem S. Tomás de Aquino. Parece-me pertinente conhecer apenas as linhas gerais da vida e obra desta figura chave da intelectualidade europeia, para que se possam evitar considerações destas, que revelam da parte do senhor André Esteves uma postura proselitista duvidosa, que só pode funcionar com uma audiência desprovida das mais elementares referências culturais.
Para saber mais sobre S. Tomás, recomendo vivamente o texto introdutório do professor Luiz Jean Lauand.

Bernardo

quinta-feira, 20 de janeiro de 2005

Déjà vu?

(publicado em simultâneo no Afixe)

De Philip Jenkins, o CESNUR publica um estudo interessantíssimo intitulado "Le Jésus des sectes - Comment le Christ ésotérique devint le Christ des universitaires". É extenso, mas muito esclarecedor!

"Il y a cent ans, pratiquement toutes les idées présentées aujourd’hui comme le dernier cri chez les universitaires travaillant sur le sujet de Jésus étaient déjà largement connues, bien qu’elles le fussent moins des chercheurs en matière biblique que des membres de nouvelles religions, écoles marginales occultes et ésotériques et des mouvements qui étaient déjà connus en tant que "sectes". Les excentricités sectaire des années 1900 sont devenues les références orthodoxes universitaires des années 2000."

A tese central: os delírios neo-gnósticos dos movimentos esotéricos nascentes no final do século XIX e início do século XX, foram-se transformando, a pouco e pouco, na "ortodoxia" universitária, conforme veiculada por entusiastas académicas do gnosticismo, como a autora Elaine Pagels.
É fascinante e revelador, através deste texto, ver como os ideais da Sociedade Teosófica, fundada por Helena P. Blavatsky no século XIX, foram, a pouco e pouco, passando do domínio da seita esotérica para o domínio académico do estudo das origens do cristianismo.

Bernardo

terça-feira, 4 de janeiro de 2005

Arturo Reghini e o Progresso

(publicado em simultâneo no Afixe)

Este texto é endereçado aos nossos leitores que se interessam pela Maçonaria, e pelos temas iniciáticos.
Há uns tempos, tive a sorte de tropeçar num livro de Arturo Reghini, editado pela Hugin em 2002 (e que boa ideia), intitulado "Escritos sobre a Maçonaria".

Esta pequena obra reúne artigos que Reghini escreveu para várias revistas italianas da especialidade. A meu ver, Reghini foi uma daquelas raras mentes lúcidas a conseguir conjugar erudição maçónica com uma integridade e coerência de ideias.

O meu interesse por Reghini foi despertado pela leitura deste conjunto de cartas escritas por Guénon ao maçon italiano, que a Symbolos disponibilizou online aqui.

Gostaria de escrever sobre tantos e tantos aspectos interessantes levantados pela leitura da prosa de Reghini, mas tendo que escolher um, eu começaria por extrair, do capítulo III ("As bases espirituais da Maçonaria", pág. 48), o seguinte, a propósito da nefasta infiltração do conceito moderno de "progresso" nos ideais maçónicos:

"Notamos, «en passant», que esta crença no progresso, muito profana e não contemplada nas Constituições de Anderson nem nos antigos Landmarks, se radicou curiosamente em certas Maçonarias, acostumadas a pedir luz ao mundo profano, ao invés de à sabedoria iniciática. Já nas Constituições do Grande Oriente de França, de 1849, a Maçonaria é definida como uma instituição filantrópica, filosófica e progressista que tem como base a existência de Deus e a imortalidade da alma. Como é sabido, justamente pela fé no progresso e nas conquistas do livre pensamento e da ciência profana é que os Franco-Maçons franceses atiraram ao mar, com maioria de votos, o Grande Arquitecto do Universo e a imortalidade da alma, para ficarrem arreigados ao não louvado fetiche do progresso; e na conferência de Genebra de 1921, na qual participaram sete ou oito Potências simbólicas, entre as quais os dois Grandes Orientes irregulares de França e de Itália (Pallazzo Giustiniani), foi proclamada e subscrita uma declaração de princípios que define a Maçonaria como instituição filosófica, humanitária, progressista. A declaração depois especifica que se preocupa com o progresso social, porque a Maçonaria honra igualmente o trabalho intectual e o manual, etc., etc..
Estes Franco-Maçons, como autênticos Livres Pensadores, sentir-se-iam mal dos intestinos se tivessem de renunciar a esta crença no progresso. E a ideia que formaram consolida-se, granítica, imutável, estacionária, incapaz do mínimo... progresso!"

(publicado na revista Rassegna Massonica, em 1923)

Agora, alguns esclarecimentos...
A dureza da linguagem de Reghini não deve iludir o leitor sério, que encontrará nesta obra inúmeros e vitais ensinamentos sobre a Maçonaria genuína, essa espécie tão rara que quase se pode declarar em extinção. Reghini não era um mangiapreti, ou seja, um "papa-padres", como tantos outros maçons do seu tempo.

Claro está que, sendo católico, este meu texto pode parecer estranhíssimo e desadequado. Explico porque não é: gosto bastante das temáticas maçónicas, acho o simbolismo maçónico muito rico e profundo, e apesar de não ser maçon, nem pensar vir a ser (sendo católico, está-me vedado), detesto a ligeireza com que se ataca hoje em dia o conceito de Maçonaria, triste sinal de uma tremenda falta de conhecimento sobre o tema (que a obra de Reghini pode ajudar a corrigir, nas pessoas bem intencionadas e verdadeiramente interessadas) bem como detesto a corja de falsos maçons que enchem hoje em dia a esmagadora maioria das lojas, corja essa à qual Reghini (com a competência que eu não tenho) alude, com grande e justa precisão de vocabulário.

Para terminar, escolhi este excerto porque evidencia outro dos meios intelectuais que foram infestados por esta moderna crença no progresso: o meio iniciático da Maçonaria.

A crença no progresso entrou basicamente em todo o lado. Parece ser o resultado, no domínio sociológico, de um casamento estranho das teorias evolucionistas emanadas das ciências naturais com um milenarismo apocalíptico decadente e confuso (este "casamento" parece despropositado, mas o historiador Jean Delumeau fornece pistas mais que suficientes no seu livro "Mil Anos de Felicidade"). Esta crença no progresso é uma virose alojada, e que dificilmente sai, apesar de termos acesso todos os dias a sinais mais que evidentes de que tal progresso não existe. Só para dar um exemplo: no século que se seguiu à invenção das ideias progressistas, o mundo assistiu a duas grandes guerras mundiais...

Parece-me justo afirmar que a Maçonaria tem como fim, nas mentes dos seus membros mais sinceros e honestos, o aperfeiçoamento do maçon como ser humano. Do que li de Reghini não devo estar equivocado na definição, pelo menos na essência. Esse aperfeiçoamento individual (escrevi individual e não solitário, porque o maçon trabalha na Loja com os restantes irmãos), com o passar dos tempos e a infiltração de ideais jacobinos (e tantas vezes anti-católicos), passou a ser confundido com o professar de uma crença no progresso imparável da Humanidade! E Reghini encontra, tão cedo como em 1849, indícios desta infiltração!

Na História da Humanidade encontramos progressos e retrocessos, numas áreas e noutras. Haverá bases suficientes para se poder afirmar, em rigor, que a Humanidade progride sempre, sem parar?
Faz sentido, a crença moderna no progresso?
Não servirá esta ideia gratuita do progresso absoluto uma arma de arremesso do laicismo materialista (agora dominante) contra a intelectualidade do passado (considerada "caduca" ou "primitiva", ou ainda "antiquada")?

E não é curioso notar que os visados por esta infiltração de ideias (dir-se-ia eufemisticamente, por esta "mudança de paradigma") foram, não só as religiões organizadas como também organizações iniciáticas como a Maçonaria, onde podemos notar a presença infestante e destruidora destes ideais jacobinos?

Aqui fica a ideia para que se medite sobre ela...

Bernardo