quarta-feira, 31 de agosto de 2005

O Dhikr...

... é uma prática islâmica, mais concretamente sufi, de oração repetitiva e ritmada. O dhikr consiste na repetição sincronizada, feita por várias pessoas em simultâneo, do nome de Allah ou de uma das suas variantes.
Escutar a recitação de um dhikr é uma experiência única. Dos poucos que ouvi, gostei especialmente deste, que se chama Dhikr Kalwati (aqui dirigido pelo shaik Nazim, da tariqah Naqshbandi). Nesta gravação escutamos, durante muito tempo, a repetição da palavra allah em escalas descendentes.
O dhikr, mesmo sendo uma prática sufi (e portanto inserida na tradição islâmica) é perfeitamente análogo aos mantras hindus e a outras orações de tipo ritmado que se encontram em várias tradições espirituais pelo Mundo fora.
No cristianismo oriental, de tradição ortodoxa, encontramos algo de semelhante na prática do hesicasmo, a repetição ritmada do nome de Jesus. De forma mais ou menos ostinata, encontramos em quase todas as religiões conhecidas algum tipo de oração repetitiva. A prática da oração repetitiva é vista por muitos ateus e agnósticos como uma forma de inebriar massas de crentes ignorantes. Uma tal opinião é, ela mesmo, uma grosseira manifestação de ignorância. O que já é mais espantoso e grave é encontrar, nos dias que correm, crentes que minimizam a importância da oração (o que sucede muito no catolicismo moderno), ou que parecem não dar qualquer relevo a orações repetitivas ou ritmadas, sinal de que já lhes escapa o sentido profundo da importância do ritmo e do som na actividade espiritual.
Sigamos Guénon:

«(...) a [repetição da] palavra dhikr, que, no esoterismo islâmico se aplica a fórmulas ritmadas que correspondem exactamente aos mantras hindus, (...) tem por objectivo produzir uma harmonização de diversos elementos do ser, e de determinar as vibrações susceptíveis, pela sua repercussão através da série de estados, em hierarquia indefinida, de abrir uma comunicação com os estados superiores, o que aliás, de forma geral, é a razão essencial e primordial de todos os ritos» - René Guénon, La Langue des Oiseaux, artigo publicado em Le Voile d'Isis, Novembro de 1931.

sábado, 27 de agosto de 2005

Resposta às objecções do CA

O leitor CA, num comentário ao texto anterior, deixou uma série de objecções que sujeitarei agora a uma análise detalhada. Desde já, os meus agradecimentos pelo seu contributo construtivo para este complexo debate.

«Ponto I:
"o discípulo é o "aluno", que escuta a Palavra. O apóstolo é o "enviado", encarregado de espalhar a Palavra."

Seguindo o seu raciocínio deveria concluir que as mulheres hoje não são chamadas a espalhar a Palavra. Constato na prática que muitas mulheres espalham a Palavra (catequistas, missionárias, etc.). Assim parece-me que o raciocínio falha quando assume que, porque Jesus não escolheu apóstolas, a Igreja nunca o poderá fazer.»


Bela objecção, à qual deverei dar a mão à palmatória.
De facto, o meu raciocínio apresentava, neste aspecto, claras falhas. Não serve usar uma argumentação etimológica, uma vez que nem sequer é constante o uso, na própria Sagrada Escritura, do termo "apóstolo" para os doze. Por vezes, são chamados de "discípulos". E lembrei-me, entretanto, de outra objecção ao meu raciocínio: Maria de Magdala, a quem Jesus expulsara demónios, é a primeira testemunha da ressurreição, e como tal é ela a "enviada" junto dos restantes onze, quem lhes vai comunicar que o Mestre ressuscitou (cf. S. Lucas, 16, 9). Posto isto, a minha argumentação neste ponto cai por terra.

Contudo, e porque julgo estar certo na tese geral que estou a defender, tentarei contornar as dificuldades por mim criadas usando uma linguagem mais cuidadosa e argumentos bem mais fortes...
Há muita razão da parte do CA quando afirma que todos os cristãos são, de certo modo, "enviados", co-responsáveis pelo espalhar da Palavra.
No entanto, a meu ver, há uma nítida diferença: os onze (retirando Judas, que se enforca antes da morte de Cristo) sobrevivem à Paixão como o núcleo dos próximos do Messias e vêem-se desse modo revestidos de uma graça bem particular e especial. São "enviados" como serão todos os cristãos, mas a um nível qualitativamente diferente. Uma passagem profundamente significativa encontra-se no final de S. Lucas:

Depois, disse-lhes: «Estas foram as palavras que vos disse, quando estava convosco: Que era necessário que se cumprisse tudo quanto a Meu respeito está escrito em Moisés, nos Profetas e nos Salmos».
Abriu-lhes então o entendimento para compreenderem as Escrituras e disse-lhes: «Assim está escrito que o Messias havia de sofrer e ressuscitar de entre os mortos ao terceiro dia, que havia de ser pregado, em Seu nome, o arrependimento e a remissão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós sois as testemunhas destas coisas. E eu vou mandar sobre vós O que Meu Pai prometeu. Entretanto, permanecei na cidade até serdes revestidos com a força lá do Alto.
- S. Lucas 24, 44-49.

Há, claramente explícita, uma atribuição de dons interpretativos (diria mesmo, as chaves da hermenêutica sacra, que desde então estão na posse da Igreja) aos onze reunidos com o Jesus ressuscitado. Vejamos outro exemplo das Sagradas Escrituras, desta vez de S. João, exemplo este ainda mais claro de que há, nitidamente, uma diferença de estatura entre a profundidade espiritual da missão dos onze apóstolos e a dos restantes cristãos:

Na tarde desse dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas da casa onde os discípulos se achavam juntos, com medo dos judeus, veio Jesus pôr-Se no meio deles e disse-lhes: «A paz seja convosco». Dizendo isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. Alegraram-se os discípulos, vendo o Senhor. E Ele disse-lhes de novo: «A paz seja convosco» Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós». Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoares os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos». - S. João 20, 19-23.

São Marcos faz também coro neste ponto fulcral:

Apareceu, finalmente, aos próprios onze, quando estavam à mesa, e censurou-lhes a incredulidade e obstinação em não acreditarem naqueles que O tinham visto ressuscitado. Depois, disse-lhes: «Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda a criatura. Quem acreditar e for baptizado será salvo, mas quem não acreditar será condenado. Eis os milagres que acompanharão aqueles que acreditarem: Em Meu nome expulsarão os demónios, falarão línguas novas, apanharão serpentes com as mãos e, se ingerirem alguma bebida mortífera, não sofrerão nenhum mal; imporão as mãos sobre os enfermos e eles recuperarão a saúde». - S. Marcos 16, 14-18.

Num ponto que se afigura tão importante, S. Mateus não poderia falhar na concordância com os restantes evangelistas:

Os onze discípulos partiram para a Galileia, para o monte que Jesus lhes tinha designado. Quando O viram, adoraram-n'O; alguns, no entanto, duvidavam ainda. Aproximando-Se deles, Jesus disse-lhes: «Foi-Me dado todo o poder no céu e na terra: Ide, pois, ensinai todas as nações, baptizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo ensinando-as a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. E Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo». - S. Mateus 28, 16-20.

Torna-se claríssimo, pela concordância dos quatro evangelistas, que é ponto doutrinal assente que os onze receberam do Jesus ressuscitado uma graça especial. S. João é explícito: os onze receberam o Espírito Santo, com a missão de, iluminados por Ele, espalharem a Boa Nova e realizar milagres em nome de Jesus.
A Boa Nova iria espalhar-se de boca em boca, sendo que todos os cristãos seriam convidados a fazê-lo. Contudo, aquele núcleo de onze homens, escolhidos por Jesus, seria o centro espiritual de onde emanariam todas as graças de Cristo e do Pai. Esse legado, essa herança deixada por Cristo aos Homens, está viva através dos onze primeiros da Sua Igreja. É um verdadeiro dom espiritual e é a fonte que vivifica espiritualmente a Igreja Católica, que honra desde então a sucessão apostólica a partir de Pedro.

Resumindo: não estavam mulheres presentes no Pentecostes. Não havia uma só mulher de entre os onze que foram investidos desta graça e desta missão especial.
Será que Jesus não valorizava as mulheres?
Supô-lo seria uma tolice: é uma mulher, Maria Madalena, a primeira testemunha humana da Ressurreição, que é o epicentro do cristianismo.
As Sagradas Escrituras não permitem outra interpretação: é nítido verificar que o vértice, a nascente espiritual da Igreja era constituida por onze homens investidos pessoalmente por Deus.
Negá-lo seria atentar contra a própria validade das Sagradas Escrituras.
Algo bastante normal para um não-cristão, mas algo de monstruoso para um cristão.

Aliás, por essa linha de raciocínio, não poderia haver apóstolos de raça negra, por exemplo. Porquê distinguir pelo sexo e não pela raça?

Esta objecção, sinceramente, CA, não percebi.
Apóstolos de raça negra? Mas Jesus e os doze apóstolos eram judeus. E na Palestina, naquele tempo, os judeus eram brancos. Existia (e ainda existe) na Etiópia uma pequena comunidade de judeus negros, mas isso nada tem a ver com a presente discussão. Os judeus da Palestina eram de raça semita, de pele branca.
Mas uma claríssima prova de que a Igreja não discrimina pela raça é o facto de a ordenação sacerdotal ser conferida a homens de qualquer raça.

Ponto II:

"Deus escolheu o sexo masculino para incarnar, logo qualquer função representativa, onde o símbolo de Cristo seja fundamental (como o é nos sacramentos), deve ser desempenhada por um homem."

Mais uma vez dá imensa relevância ao sexo. Ora não vejo em Jesus essa relevância explícita.


Apresentei-lhe referências extremamente explícitas para este facto simplicíssimo: Jesus escolheu onze homens para constituir a Sua Igreja. Sendo o homem diferente da mulher, Jesus fez desta distinção fundamental uma distinção de papéis no plano salvífico. Quando falei, no meu texto, da Eucaristia e do seu símbolo, fui bem claro na importância da "substância" ser compatível. Penso que consegui tornar claro a importância de ser um homem a presidir à Eucaristia, momento central da vida cristã.

Vemos que os evangelhos dizem que Jesus escolheu apenas homens mas não vejo Jesus a fazer referência ao sexo como algo de importante. Assim, a distinção do sexo como algo essencial parece-me mais uma insistência humana.

Não sei como insiste em não o ver, CA.
Pois que é bem claro que Jesus usou o género como um dos Seus critérios de escolha do grupo dos doze. Ou supõe que o facto de termos doze apóstolos todos homens seja um puro acaso probabilístico?

Ponto III:

"Tanto no Antigo como no Novo Testamento, a função sacrificial é cumprida por homens."

Mais uma vez o sexo como distinção, indo agora buscar o Antigo Testamento, o que não acrescenta nada de novo.


Antes pelo contrário, CA, é um reforço muito forte. Significa que encontramos, tanto no Antigo como no Novo Testamento, a função sacrificial a ser desempenhada por homens.

Parece-me que os símbolos são feitos pelo homem, são essencialmente culturais. Se a sua objecção é apenas ao nível do símbolo, então pode certamente ser alterada.

A sua ideia de símbolo é totalmente materialista e antropológica.
Para mim, o símbolo é uma ponte de conhecimento divino, uma porta aberta para o transcendente. O símbolo é uma forma de podermos, por via dos nossos sentidos, aceder ao que nos ultrapassa. Se Jesus é Deus e Jesus instituiu o Símbolo eucarístico, logo, para o cristão, a Eucaristia não é um "símbolo cultural", gerado por "homens", mas sim um Símbolo espiritual, instituido por Deus.

Estes três pontos parecem resumir-se a um apenas: se se constatou que houve discriminação pelo sexo feita por Jesus

CA, Jesus discriminou! Mas nunca num sentido pejorativo. Jesus, claramente, atribui papéis diferentes, no Seu plano, para homens e mulheres.
E uma razão bem forte, como já o disse, prende-se com uma necessidade simbólica incontornável.

Como Jesus fez outras discriminações práticas (a mais importante das quais foi dirigir-se ao povo de Israel apenas), deveríamos mantê-las sempre? A resposta tem que ser não, pois a Igreja abriu-se logo aos gentios. Então porquê a relevância especial atribuída ao sexo?

Objecção inválida. O seu pressuposto está errado. Jesus não trouxe a Boa Nova apenas para Israel. Releia, por favor, o final do Evangelho de S. Mateus: "ensinai todas as nações".

É o próprio Cristo que o desmente, Bernardo, pois diz que o Espírito há-de ensinar aos discípulos muitas coisas que eles ainda não podiam suportar.

Não compreendi esta objecção, e terá que a explicar melhor, por favor.
Obrigado pelos comentários.

sexta-feira, 19 de agosto de 2005

Sobre o sacerdócio feminino

Esta questão regressa sempre, mais cedo ou mais tarde...
É uma questão importante e de fundo, porque assistimos cada vez mais nos dias que correm a uma enorme multidão de crentes católicos a manifestarem-se a favor do sacerdócio feminino, o que é um grave sinal de incompreensão da doutrina que professam.
Muitos católicos modernos estão, hoje, cada vez mais empenhados em levantar uma série de objecções a aspectos específicos do culto católico e da organização da Igreja. A sociedade tornou-se menos exigente para com a cultura e o estudo, os crentes também se tornaram menos exigentes com eles próprios, e facilmente surgem inúmeras incompreensões doutrinais como esta.

Antes de principiar, um aviso importante: neste breve texto tratarei apenas desta objecção relativamente ao sacerdócio feminino. Cada objecção merece ser tratada à parte, porque existem diversos níveis de importância doutrinal nas várias objecções levantadas pelos católicos modernos. Se se quiser discutir, por exemplo, o celibato dos sacerdotes, estaremos perante outra questão, diga-se, com muito menor peso doutrinal. Pelo que se deve, doutrinalmente, manter inaceitável o sacerdócio feminino (explicarei adiante), mas se pode manter em aberto a discussão de outras questões não tão importantes, doutrinalmente, como a do celibato dos sacerdotes.

Esta explicação não é exaustiva e representa apenas um modesto esforço, uma recolha dos pontos essenciais e mais importantes que justificam esta interdição das mulheres ao sacramento da ordenação sacerdotal.

Ponto I: Jesus Cristo apenas escolheu homens para seus apóstolos. Nenhum dos doze apóstolos era mulher. Contudo, inúmeras mulheres seguiam Jesus como discípulas. No entanto, a distinção entre discípulo e apóstolo é importante: o discípulo é o "aluno", que escuta a Palavra. O apóstolo é o "enviado", encarregado de espalhar a Palavra. À mesa da Última Ceia estavam doze apóstolos. Na recepção do Espírito Santo, pelo Pentecostes, estavam reunidos os doze apóstolos.
Nesta escolha, não há a influência de qualquer preconceito social, uma vez que Jesus Cristo não moldou a sua doutrina ao sabor das condicionantes sociais.

Ponto II: O símbolo sacramental. O sacerdote exerce uma função primordial no sacramento eucarístico, pelo qual o pão e o vinho são transformados em Corpo e Sangue de Jesus Cristo. A doutrina católica ensina que, com cada sacramento, há a possibilidade de se receber uma graça divina concreta, pelo que o símbolo é a via pela qual se pode aceder a essa graça. No caso da Eucaristia, o símbolo é feito de pão e de vinho que, com as palavras adequadas, se transforma no Corpo e Sangue de Cristo. Tanto a matéria (pão e vinho) como a forma (as palavras pronunciadas) são fundamentais para a eficácia do sacramento eucarístico. Se bem que a forma seja a parte mais importante, a matéria também não deve ser desprezada: uma eucaristia feita, por exemplo, com arroz (mesmo pronunciando as palavras ritualísticas correctas), não seria eficaz porque a matéria não corresponderia simbolicamente à usada por Jesus Cristo na Última Ceia. No entanto, qualquer tipo de pão e vinho serve, visto que a parte material do símbolo está representada.
Posto isto, o sacerdote é a representação viva do próprio Jesus Cristo. Diz o sacerdote durante o ritual: "Por Cristo, com Cristo e em Cristo". Do mesmo modo que, para manter a matéria do símbolo, se deve usar pão e vinho, também para manter a imagem viva do próprio Jesus Cristo, o oficiante deve ser um homem. Deus escolheu o sexo masculino para incarnar, logo qualquer função representativa, onde o símbolo de Cristo seja fundamental (como o é nos sacramentos), deve ser desempenhada por um homem.
Poder-se-ia levantar esta objecção: mas Deus não tem sexo, logo, se o sacerdote está ali para representar Deus, então não tem que ter um sexo específico para O representar bem.
Resposta: Foi Deus Filho quem instituiu a Eucaristia, logo é para Jesus Cristo que estamos a olhar quando olhamos para um sacerdote em pleno rito eucarístico. E, se foi como homem, visível e audível pelos doze apóstolos, que Jesus instituiu a Eucaristia, pois terá que ser um homem a reproduzir, para a posteridade, a diginidade sacra desse momento.

Ponto III: O Cordeiro é um dos muitos animais atribuidos simbolicamente à figura de Jesus Cristo. Mais concretamente, este animal ganha especial significado graças ao simbolismo da Crucificação: Cristo é visto como o "Cordeiro de Deus", que pela sua morte "tirou o Pecado do Mundo". Tanto no Antigo como no Novo Testamento, a função sacrificial é cumprida por homens. Recordemos o episódio de Abraão, que apresenta a Deus o seu próprio filho Isaac para ser sacrificado. O sacrifício (no entanto não consumado) de Isaac por seu pai é visto, na exegese sacra, como um prenúncio do sacrifício de Jesus Cristo, o Filho, às mãos do Homem por vontade do Pai. O acto sacrificial está reproduzido da forma mais perfeita no mistério eucarístico. Pelo que, de novo, sendo um acto sacrificial, é desempenhado por um homem.

Para terminar, há que ter em consideração que as objecções que muitos católicos modernos levantam em relação a este ponto delicado da ordenação das mulheres são objecções muito influenciadas por uma tendência feminista (ou, no mínimo, por uma tendência ultra-igualitarista, onde uma artificial "igualdade" deveria ser estabelecida a qualquer custo), à qual se tem dado uma prioridade maior do que à exegese sacra e ao simbolismo sacramental. O que é, no mínimo insólito: existirem cada vez mais cristãos que, porventura sem se darem conta, estabelecem raciocínios nos quais dão primazia a tendências e modas sociais em detrimento do que é importante na sua fé, que deveria ser a compreensão real da doutrina que professam.
A mulher não tem menos capacidades em si mesma do que o homem para o exercício do sacerdócio. Contudo, tanto por respeito para com a intenção do Salvador, como por necessidade material do simbolismo sacramental, na qual o sacerdote deve apresentar-se como imagem viva do Deus Incarnado, foi dado apenas aos homens o acesso a este sacramento.
Assim, é enquanto símbolo, e não enquanto mulher, que a mulher é inapta para o sacerdócio cristão. É evidente, pela natureza idiossincrética do símbolo eucarístico, que isto não se pode generalizar: noutras doutrinas, onde os ritos se baseiem noutros simbolismos, poderemos encontrar legitimamente uma mulher a desempenhar funções sacerdotais. Vemos assim que não há, neste aspecto, qualquer "sexismo", mas sim apenas o respeito pelos símbolos cristãos e pelos sacramentos por eles representados. O sacerdócio feminino pode ser legítimo nos ritos de outras doutrinas que não a cristã.
O sacerdócio feminino não é um direito das mulheres, uma vez que se assim fosse, isso quereria dizer que uma universalização extrema de um suposto "direito feminino" obrigaria a atropelar o simbolismo, e consequentemente, a eficácia de um sacramento tão importante como o da Eucaristia. E far-nos-ia possivelmente pensar que, naquele que é o momento mais alto da revelação crística, Jesus se teria deixado influenciar por um suposto machismo na cultura judaica, ou seja, por uma volúvel condicionante social. Se assim fosse, a doutrina deixada por Cristo à Sua Igreja seria algo de passageiro e de validade limitada, algo subjugado e condicionado por características sociais.
Outras questões ficam por tratar, como a interessante questão do diaconato feminino. Em certas Igreja cristãs primitivas, era permitido às mulheres o acesso a um dos graus menores da ordenação, a do diaconato. Note-se que há uma distinção fundamental aqui presente: um diácono não é um sacerdote. Não recebe a ordenação sacerdotal. Deste modo, um diácono não está qualificado para presidir à Eucaristia.
Deste modo, existe algum campo aberto ao debate relativamente ao acesso das mulheres ao diaconato, uma vez que não seriam violadas questões essenciais de doutrina.

Bernardo

quinta-feira, 18 de agosto de 2005

A noção de Hermenêutica

Adquiri, recentemente, a espantosa obra de Jean Borella, Ésotérisme Guénonien et Mystère Chrétien (Delphica - L'Age d'Homme, Lausanne, Suíça, 1997), de onde retiro este pedagógico apêndice, intitulado "A noção de Hermenêutica".

A NOÇÃO DE HERMENÊUTICA

A hermenêutica constitui hoje um "lugar filosófico" maior; [mas] nem sempre foi assim. Tradicionalmente, os teólogos católicos chamam «hermenêutica» à «arte que traça as regras da interpretação das Sagradas Escrituras», e «exegese» à «aplicação destas regras» (2). A palavra hermenêutica é um adjectivo substantivado que transcreve o grego herméneutiké (s.e. tekhné): (arte) da interpretação (3). Deriva do verbo herméneuein que significa «interpretar», «explicar», e que faz referência a Hermes, o intérprete e o mensageiro dos Deuses, o mestre dos segredos da palavra e do poder dos signos, cujo nome se aproxima de herma que designa todo o objecto que serve de ponto de apoio ou de marca de referencial, em particular nas pedras levantadas, eventualmente itifálicas, o que não deixa de ter relação com o lingam de Shiva, palavra que, em sânscrito, significa «signo». Hermes é filho de Zeus e da ninfa Maia (4), do mesmo modo que Ganesha («Senhor» = îsha das «categorias» = gan) é filho de Shiva e de Pârvatî; ambos são «logotetas», reveladores celestes dos signos da palavra e da escrita, das ciências e das artes. Na revelação cristã a função de Hermes é atribuida a São Paulo que é assim designado pelos habitantes de Listra «porque ele trazia a palavra» (5). Únicos de entre os Padres [da Igreja], Orígenes e Santo Agostinho elaboraram precisamente uma "teoria geral" da hermenêutica (6), sem todavia "nomear" esta mesma ciência. Nos latinos, fala-se correntemente de interpretatio, de intelligentia, expositio, explicatio, explanatio, enarratio, commentarium, lectio, etc., mas jamais de hermeneutica. Mesmo quando os escritores católicos tiveram necessidade, na época da Reforma, de redigir tratados específicos de hermenêutica bíblica, eles não empregaram o termo, nem em latim (o termo preferido é o de interpretatio), nem em francês (onde se emprega sobretudo «explication» ou «intelligence» da Escritura). De centro e trinta e sete tratados católicos de exegese recenseados entre 1528 e 1900, apenas contámos quarenta e quatro (ou seja, menos da terça parte) que trazem no seu título a palavra hermeneutica, que apenas aparece pela primeira vez em 1751: De verbo Dei scripto et tradito seu Introductio in hermeneuticam sacram utriusque Testamenti, de Corbinien Thomas (Salzburgo). Por outro lado, de oitenta e dois tratados protestantes, entre 1567 e 1900, encontramos quarenta (ou seja, perto da metade) cujo título contém «hermenêutica», o primeiro surgido em 1654: Hermeneutica sacra, de J. C. Dannhauer (Estrasburgo). O uso do termo vem então incontestavelmente dos protestantes desejosos de se demarcar da terminologia latina demasiado católica usando uma palavra grega. Contudo, ele impôs-se nos próprios católicos que acabaram por a integrar no vocabulário técnico da teologia e que lhe deram um lugar ao lado do termo consagrado de «exegese», o qual designa em suma a hermenêutica em acto: deste modo Leão XIII, na sua encíclica sobre a Escritura santa, Providentissimus Deus [7], fala das «regras da hermenêutica». Em francês, o adjectivo «hermenêutico» foi registado num dicionário pela primeira vez em 1777 no Supplément da Encyclopédie de Diderot e de D'Alembert. Quando ao substantivo, aparece em 1852 no Manuel d'herméneutique biblique de Cellérier, publicado em Genebra.
Estes dados históricos (8) mostram que o emprego da palavra «hermenêutica» é correlativo da elaboração do conceito de uma ciência especial de interpretação bíblica. Um tal conceito deveria atrair a atenção dos filósofos sobre o acto de interpretar enquanto tal: que fazemos nós quando lemos um texto, bíblico ou não? É o filósofo e o teólogo protestante, Schleiermacher que, em primeiro lugar, formula a exigência de uma hermenêutica geral (1819): «Não existe uma hermenêutica geral que seja uma arte de compreender, existem [apenas] diversas hermenêuticas especiais» (9). Este tema será retomado pelo seu longínquo discípulo Dilthey que o desenvolverá num método geral das ciências da cultura (em alemão as «ciências do espírito», Geisteswissenschaften): Origem e desenvolvimento da hermenêutica (1900) [10]. A partir de Dilthey, com Husserl e sobretudo Heidegger, a reflexão filosófica sobre o acto de interpretar, ou seja, o acto pelo quando nós conferimos tal significado, não só a tal elemento cultural, mas ainda a todos os dados da nossa existência, adquire a sua maior generalidade: o homem não regista apenas os factos, ele compreende-os e interpreta-os como os signos de um certo sentido da existência; aqui, a hermenêutica identifica-se à própria filosofia. Cremos todavia, com Gadamer e Ricœur, que não há «hermenêutica do dasein [11]», de interpretação fundamental da experiência de existir, que não seja informada por uma certa tradição cultural, a qual, para nós, apela necessariamente a uma revelação. A compreensão de si mesmo e do mundo, a «leitura» que fazemos da vida e das coisas efectua-se sempre sobre a base e com a ajuda das chaves da tradição simbólica universal.

(1) Jean Borella, op. cit., pp. 34-35.
(2) Pe. Berthier, Abrégé de théologie dogmatique et morale, E. Vitte, 1927, n.º 214.
(3) Platão, Política, 260d.
(4) Hinos homéricos, Mercúrio, I, 1.
(5) Actos dos Apóstolos, XIV, 12.
(6) Tratado dos Princípios, IV, 8-27; Da doutrina cristã, II e III.
[7] de 18 de Novembro de 1893 (N. T.).
(8) Cf. o artigo «Herméneutique» de E. Mangenot, no Dictionnaire de la Bible de Vigouroux, tomo III, 1903, col. 612-633.
(9) Hermeneutik, editado por Kimmerle, Academia das Ciências e da Cultura de Heidelberg, 1959, p. 79).
[10] Em alemão, Die Entstehung der Hermeneutik (N. T.).
[11] Palavra alemã cujo significado é o de "existência". Contudo, com o filósofo Heidegger, a palavra adquiriu um significado filosófico próprio (N. T.).

terça-feira, 16 de agosto de 2005

Qual é o problema do Criacionismo?

(reprodução do texto publicado no Afixe)

O que se segue, como não podia deixar de ser, é um texto de opinião, visto que não me considero entendido nas matérias em questão.

As posições tomadas por George W. Bush, nos E.U.A., relativamente ao ensino do intelligent design nas escolas a par com as doutrinas evolucionistas têm gerado imensa polémica.
Muitos evolucionistas surgem ao ataque, agitando as suas espadas em nome da Ciência, contra o que chamam de "obscurantismo medieval", ou seja, o criacionismo.
A histeria, como se sabe, nunca é boa a ajuizar em matérias tão difíceis. Antes de mais, tenho que dizer que, sendo católico, e tendo pensado muito no assunto, opto por uma forma específica de criacionismo. A mais elementar obediência à doutrina católica deveria ter-me levado a assumir, imediatamente, a defesa dessa tese cosmológica. Contudo, parece-me sempre proveitoso que se medite sobre estas questões, de modo a que o crente tome uma decisão, que não obstante ser de fé, seja maturada e ponderada.

Ponhamos as duas teorias (e sublinho a palavra teorias) lado a lado, de forma muito sucinta:

- o Evolucionismo: não obstante os inúmeros ramos evolucionistas, e a grande disparidade de correntes que existem, parece-me razoável definir o evolucionismo como uma tese que se sustenta em dois pontos essenciais, que devem jogar em conjunto para o sucesso da teoria:

a) a Selecção Natural, devida a Darwin, como forma de filtrar a aptidão para a sobrevivência de uma dada espécie; as espécies menos preparadas desaparecem, as mais bem preparadas sobrevivem e multiplicam-se

b) as mutações genéticas como justificação para a variedade de espécies; ao longo de muitos milhões de anos, a alteração por mutação do património genético de uma espécie (ADN) faria dela uma outra espécie

- O Criacionismo: também uma posição matizada, feita de inúmeras correntes, que advoga, para justificar a variedade das espécies de seres vivos, a acção inteligente de uma entidade superior, que se poderia definir como divina e criadora.

Nos E.U.A., temos assistido recentemente ao surgir de inúmeros movimentos criacionistas, que atacam ferozmente o evolucionismo. Vejamos o que é defendido nas mais importantes modalidades do criacionismo:

a) há os que advogam que o Génesis e as Sagradas Escrituras devem ser lidas à letra, defendendo deste modo que a Terra não teria mais do que alguns milhares de anos; seguem a cronologia do Arcebispo de Armagh (Irlanda), James Ussher, que no século XVIII elaborou uma estrutura de datação para a Terra, afirmando que a Criação se dera no ano de 4004 a.C.

b) há os que, afirmando-se cristãos, concordam com a generalidade, senão mesmo a totalidade, da teoria evolucionista; defendem que a evolução, a par com a selecção natural darwiniana, são processos intencionais criados por Deus para guiar o devir do mundo natural

Há ainda inúmeras outras formas de ver o criacionismo que não professam necessariamente a ideia de que a Terra é recente, ou a ideia de que o Génesis deve ser lido com os olhos do Homem do século XXI, e não obstante manifestam-se altamente críticas, não tanto da Selecção Natural mas sobretudo da evolução das espécies por mutações.

Encontro-me nesta última categoria, e foi precisamente o facto de eu achar que este tema anda a ser discutido de forma altamente falaciosa, imperfeita e política que me atirei para a frente com a ideia de lançar este tema aqui no Afixe.

Certos evolucionistas rejubilaram quando, há uns anos a esta parte, o Papa João Paulo II afirmou que a evolução era mais do que uma hipótese. Para eles, era o sinal de que a Igreja Católica dava luz verde ao evolucionismo. Com a subida do Cardeal Ratzinger ao trono papal, muitos demonstraram a sua revolta por aquilo que julgavam ser um retrocesso num suposto "amén" católico ao evolucionismo.
Nada disso.
O actual Papa Bento XVI está em total sintonia com João Paulo II neste aspecto. O evolucionismo é mais do que uma hipótese: é uma teoria científica. A selecção das espécies não contradiz a razão natural nem o mais elementar bom senso. As espécies mais bem adaptadas sobrevivem, e outras menos adaptadas morrem.
As recentes declarações do Arcebispo de Viena, Cristoph Schönborn, geraram mais uma onda de contestação mediática. Vemos que as palavras deste Arcebispo evidenciam claramente a necessidade dos esclarecimentos que o seu texto traz.
Schönborn diz, com muita razão, que muitos evolucionistas deram uma interpretação equivocada às palavras do Papa João Paulo II. O Papa João Paulo II, numa audiência datada de 10 de Julho de 1985, pronunciou sólidas palavras sobre esta matéria. Em suma, o Santo Padre afirmava:

«A evolução dos seres vivos, de que a ciência procura determinar as etapas e discernir o mecanismo, apresenta um finalismo interno que suscita a admiração. Esta finalidade que orienta os seres numa direcção, da qual não existem padrões nem responsáveis, obriga a supor um Espírito que seja o seu inventor, o criador.»

Estas palavras prudentes demonstram que o Santo Padre não se pronunciou fora do campo da sua competência, deixando à Ciência o trabalho árduo de discernir o mecanismo do devir dos seres vivos. O que não está aqui, e que nunca foi defendido pela Igreja Católica, é um aval ao neo-darwinismo, a defesa da ideia peregrina de que a inteligência surge nos seres vivos por milhões de anos de mutações ocasionais e aleatórias. No limite, mesmo sendo possível demonstrar que as mutações genéticas permitem a multitude de espécies conhecidas (extintas ou não), a doutrina católica mostra-se clara num ponto fundamental: a matéria não engendra o intelecto.

Importa salientar que, no debate de ideias, há sempre espaço para uma certa dose de fé. Senão vejamos: ninguém discute a presença desta dose de fé no lado criacionista. Contudo, poucos a reconhecem no lado evolucionista.
Nos meus tempos de Universidade, trabalhei com ferramentas matemáticas que dão pelo nome de Algoritmos Genéticos. O bonito nome pode gerar equívocos, pelo que importa explicar sucintamente o que são e para que servem.
Os algoritmos genéticos são uma das muitas metodologias de resolução de problemas matemáticos. Antes de principiar um algoritmo genético, há que ter duas coisas (que me desculpem os especialistas por esta apresentação mutilada e simplista):

1. Uma heurística que codifique numericamente uma solução para o problema; sem esta codificação (dita "genética"), a solução não pode ser trabalhada algoritmicamente

2. Uma função de custo, que avalie o valor de uma dada solução. Esta função de custo será o juíz, que dará uma pontuação (numa escala pré-definida) a cada solução do problema

Como evolui o algoritmo?
Evolui sensivelmente da mesma forma que, segundo os evolucionistas, o mundo vivo teria evoluido desde os primórdios:

a) parte-se de um conjunto aleatório de possíveis soluções para o problema, todas colocadas em pé de igualdade, e todas codificadas da mesma forma; o ingrediente elementar de cada solução é chamado de "gene", e é um valor numérico que pode ser modificado

b) mutações ocasionais (alterações na codificação das soluções em jogo) permitem o surgimento de novas possíveis soluções; a função de custo avalia as novas soluções: as menos pontuadas vão para o fim da lista (e podem mesmo ser eliminadas); as mais bem pontuadas ascendem na tabela de pontuação.

Ao fim de muitos passos, com maior ou menor dosagem de mutações, o algoritmo produz a "melhor" solução, extraída por pontuação do conjunto inicial aleatório de soluções.
Isto funciona!
Contudo, não se pode aplicar este raciocínio ao ADN dos seres vivos. Porquê? Há várias razões, mas sublinho estas:

1. O património genético de um ser vivo é composto por milhares de genes e é tipicamente muito estável; o ADN reage, muitas vezes, a mutações que num algoritmo numérico poderiam ser desastrosas, mas que no mundo real podem não ter consequências graves para o ser vivo: a Natureza defende-se das mutações

2. As mutações na Natureza são um fenómeno raro, de carácter aleatório, e que apenas pode ser trabalhado probabilisticamente. Num algoritmo, podemos dosear a quantidade de mutação, e é só uma questão de tempo e de processador para que o algoritmo produza uma solução boa. Mas a Natureza não funciona assim, e confesso que vejo a necessidade não de um, mas de vários milhões de milagres para que, ao longo de tanto tempo, e parodiando, uma amiba dê origem ao Homem, tudo apenas com mutações genéticas.

Por tudo isto, penso que o evolucionismo tem um lado aceitável (a Selecção Natural, que pode encerrar em si mesma uma parcela da verdade sobre o devir das espécies), e um lado questionável (a evolução por mutações).
Questionar o evolucionismo é tarefa de qualquer pessoa séria que se debruce sobre este problema. Aliás, em Ciência, questionar é A TAREFA. Como eu gostaria de ver nestes tempos as mentes mais brilhantes debaterem estes temas sem entrarem na infantilização do adversário e sem entrarem em jogadas políticas de ataque à religião.

O criacionismo existe há milhares de anos no mundo Ocidental. Estruturas teóricas cosmológicas semelhantes encontram-se no pensamento oriental. A metafísica e as formas de ontologia de origem divina acompanharam o pensar humano desde sempre. Não faz sentido menosprezar o imenso peso intelectual dos defensores do Criacionismo. E muito menos tentar transformar os delírios intelectuais com que os E.U.A. nos costumam brindar, nestas e noutras matérias, na regra geral aplicável a todos. A forma como concebo o criacionismo é muito diferente da da maioria dos criacionistas norte-americanos.
Fica para uma próxima oportunidade alongar-me mais sobre isto.

Para terminar, uma ideia fundamental: o criacionismo é uma tese que não pode ser tratada pelas ferramentas da ciência moderna. É esta uma das razões principais para o aprofundar de toda esta incompreensão. Pelo facto de recorrer a causas metafísicas, e portanto supra-empíricas, o criacionismo é sobretudo uma corrente filosófica. O criacionismo estabelece uma causa sobrenatural para efeitos naturais. O evolucionismo, pelo contrário, e também legitimamente, procura essa mesma causa na própria natureza.
Duas metodologias diferentes que teriam que, naturalmente, conduzir a duas teorias diferentes.
Qualquer "dogmatismo científico" nesta área só pode ser estéril. Se eu fosse um cientista adepto do evolucionismo não me preocupava com os criacionistas: não há base científica para demonstrar o criacionismo. Contudo, as coisas também não estão fáceis para o evolucionismo, uma vez que a base científica de demonstração é eminentemente frágil, controversa e questionável. Para mais, o cientista moderno, em absoluto, terá que ter sempre presente que abdicou, por opção própria, do metafísico no primeiro dia em que se decidiu a trabalhar com ferramentas científicas modernas.
Deixemos a linguagem dogmática para a religião, que é a única que, por definição, a pode exercer com autoridade. Esperemos que os neo-darwinistas possam encontrar a calma e a lucidez para poderem efectuar verdadeiro trabalho científico, ao invés de promoverem agendas anti-religiosas.
Por outro lado, esperemos que os criacionistas do séquito de George W. Bush, com as suas agendas fanáticas bem preenchidas, não façam mais estragos a esta já delicada situação.

Bernardo

Sou criacionista...

... e com muito orgulho, porque é uma posição tomada com ponderação com sensatez e com muita hora dedicada a pensar no assunto.
Outros há que, dotados de uma inteligência acima da média, porque não sujeita à obscurantista religião, pensam melhor que uma criatura como eu, que só pode ser criacionista por ignorância ou casmurrice.

Diz a Palmira que costuma tratar em vários posts os "mitos cristãos sobre a origem do Universo", ou seja, traduzido para linguagem não distorcida, ela pretende falar sobre cosmogonia cristã. Um tema que ela ignora profundamente, ou se não ignora, apresenta-a de uma forma totalmente distorcida.
Oxalá que seja por ignorância que escreve o que escreve, Palmira, porque senão será por razões mais graves, que se prendem com a típica desonestidade intelectual que encontramos um pouco por toda a parte no local onde costuma escrever.
Que quer ela dizer? Que a cosmogonia cristã é "mitológica", ou seja, que nada tem a ver com a realidade.
Sim, e a teoria que esta senhora defende, ou seja, a teoria de que tudo o que existe e vive neste Universo surgiu devido a milhões de acasos, cada um deles de probabilidade quase zero, que ficaram a marinar durante biliões de anos?
Quando se pergunta a um evolucionista como é que ele explica os "missing links", a resposta é quase sempre esta: "passou muito tempo".
Ou seja, é como jogar na lotaria.
A evolução, como teoria, é semelhante a jogar no Euromilhões. Ganhar é fácil! Bastaria jogar 1.000.000.000.000.000.000 de vezes e tudo correria bem, quase de certeza!

Que dizer desta teoria, senão que se nos afigura como eminentemente mitológica? Como acreditar nisto? Como não ver nisto a marca da pseudo-ciência?
Darwin: que dizem em teu nome estes novos pseudo-cientistas?

Selecção natural? Tudo bem, porque darwinismo não é igual a neo-darwinismo. Nada tenho a opor à rarefacção de espécies menos preparadas para os meios em que viveram, desde que não me façam crer que as espécies dão saltos por acaso, que estranhas mutações fazem uma espécie mudar para outra totalmente diferente, e que, passados milhões de anos, uma ameba se torna num homem.
Mas passemos adiante, e deixemos os novos cientistas destruirem a Ciência, porque o que me traz aqui é a questão religiosa, que como sempre, é usada como papel higiénico na prosa desta senhora.

Como é desonesta, Palmira gosta de misturar a posição da Igreja Católica, que é a minha, e que é a da criação do Mundo por Deus exemplificada pela constatação de que há um desenho inteligente no Universo, com outras posições ridículas que ela vai buscar, como não podia deixar de ser, ao pardieiro intelectual dos nossos tempos: os E.U.A., onde pululam grupelhos de estranhos criacionistas que defendem as mais bizarras teses, e que a Palmira, muito convenientemente, mistura ao barulho como se fossem de índole intectual idêntica à da Igreja Católica.

"Mas nos Estados Unidos, onde o fundamentalismo e a IDiotia cristãs prosperam, os mitos cristãos da Criação são aceites como verdade por uma percentagem assustadora da população."

Assustadora porquê?
Sendo criacionista, devo supor que meto medo à Palmira?
Buuuu!!

"Nomeadamente acreditam que a Terra e o Universo foram criados em seis dias há menos de 10 000 anos, que todos os animais existentes (incluindo os extintos) foram criados simultaneamente e passaram por uma temporada na arca de Noé, enfim aceitam como verdade absoluta os absurdos mitos bíblicos."

Isto é, evidentemente, uma infantilização total do relato do Génesis. É perfeitamente possível professar a verdade do Génesis, e simultaneamente admitir os factos incontestáveis que os métodos científicos nos exibem. E tudo isto sem se ser evolucionista!
Há toda uma incompreensão profunda da tessitura do Génesis, e mesmo da linguagem própria do texto revelado.
E tudo isto em nome de quê?
De uma enorme arrogância pseudo-intelectual, de uma chacota da religião, e tudo feito, como não podia deixar de ser, infantilizando os crentes.
Há crentes que pensam, por muito que isso incomode gente como esta.

"Por exemplo, pretendem que os métodos de datação que indicam muitos milhões de anos para a idade da Terra são todos falíveis e assentes em pressupostos errados"

É possível ser criacionista e defender que a Terra tem milhões de anos de idade. E tudo isto sem ser evolucionista. É o meu caso e o de muitos outros criacionistas que pensaram antes de tomar uma posição.
E esta, hem?
Uma faláciazinha, Palmira? Mais uma?
Onde é que eu me encaixo, agora que você separou tudo em mais um dualismo falacioso, bem ao seu gosto e de acordo com as suas capacidades?

"Considerando que os primeiros ataques do Vaticano ao «criacionismo» ateu já começaram e que certamente se seguirão mais investidas para instalar o «santo» obscurantismo medieval, tão louvado pelo anterior Papa, no próximo post continuo com a análise do mito cristão da Criação!"

Análise?
Onde estava ela?

Bernardo

P.S. Peço desculpas aos leitores que não são alvo deste texto. O estilo ácido usado tem um propósito didáctico: fazer ver que estas questões não podem ser transformadas em guerrilha ideológica. E fazer ver que, como crente, me sinto ofendido pelo estilo parodiante usado por alguns escritores ateizantes (ateizantes porque, ao invés de serem apenas ateus, querem ateizar o Mundo) como a Prof. Palmira. O crente criacionista não pode ser rotulado de estúpido ou de acéfalo. Essa forma de ataque ad hominem demonstra que os adversários do criacionismo preferem esse estilo de pseudo-debate a uma troca de ideias com mútuo respeito e seriedade. O estilo mais sério do texto que se segue é prova de que prefiro tratar estes temas com calma e serenidade, e que sempre foi esse o meu objectivo.