sábado, 23 de setembro de 2006

Pio XII e o Nazismo - Parte II

Porque nasceu o mito do "Papa de Hitler"

«By the middle of 1997, I was in a state of moral shock. The material I had gathered amounted not to an exoneration but to an indictment more scandalous than Hochhuth's. The evidence was explosive. It showed for the first time that Pacelli was patently, and by the proof of his own words, anti-Jewish. It revealed that he had helped Hitler to power and at the same time undermined potential Catholic resistance in Germany. It showed that he had implicitly denied and trivialized the Holocaust, despite having reliable knowledge of its true extent. And, worse, that he was a hypocrite, for after the war he had retrospectively taken undue credit for speaking out boldly against the Nazi persecution of the Jews.» - John Cornwell

Por detrás da obra Hitler's Pope, de John Cornwell (1999) esconde-se um fenómeno cultural de grandes proporções e que se manifesta nesta e noutras muitas formas. Uma crise no seio do catolicismo, crise essa que divide uma corrente crescente e revolucionária, chamada frequentemente de "corrente liberal", de uma corrente conservadora e tradicionalista.
John Cornwell, ex-seminarista, abandonou uma possível carreira no sacerdócio em 1965 (1), tendo-se debatido deste então com a situação da Igreja Católica na modernidade, e com o rumo que ela deveria, segundo ele, tomar. Muitas das atitudes de Cornwell demonstram uma opção decidida pelas ideias ditas "liberais".
Tentemos mergulhar um pouco nestes termos polarizados: "liberal" e "conservador". São termos que provêm do mundo da política, e que, na minha opinião, são usados abusivamente quando surgem fora do seu domínio original. No presente caso, são usados no domínio da religião, um domínio no qual não deveriam ser usados. E explico porquê...
A Política regula a organização e a gestão das sociedades. Neste sentido, apesar de existir objectividade em princípios políticos quase universalmente aceites hoje em dia (como por exemplo, partindo da "Declaração Universal dos Direitos do Homem"), a aplicação destes princípios, a forma pela qual eles são instituídos, sempre foi fortemente condicionada pelo local e pelo tempo.
Cada sociedade, cada civilização, procura construir a sua forma de fazer política. E em política, faz sentido o uso de termos como "conservador" para representar aqueles que, tendencialmente, dão prioridade ao carácter perene das ideias em política, e "liberal" para representar aqueles que, tendencialmente, dão prioridade ao carácter transitório das ideias em política.
Muitos liberais poderiam contestar as minhas palavras, sobretudo aqueles que são adeptos da teoria do Progresso, segundo a qual a Humanidade tem progredido ao longo dos últimos séculos, e está neste momento a progredir, sendo que a espera um futuro que só poderá ser risonho, desde que continuem a ter espaço na sociedade as políticas liberais.
Os políticos liberais consideram que o liberalismo "liberta" progressivamente a Humanidade. Ou seja, desde que se seja "liberal", desde que se contestem ideias excessivamente perenes, a Humanidade seguirá o seu caminho de Progresso. Segundo os políticos liberais, as ideias demasiado rígidas e fixas limitam o Progresso.
É evidente que é natural e que há espaço, em Política, para a polarização nestas duas formas de pensar a organização das sociedades: uns dando primazia à manutenção de um cerne de ideias perenes e outros dando primazia à constante mudança com vista a um aperfeiçoamento que consideram inevitável e que não deve ser travado.

Contudo, em religião, estes conceitos polarizantes, quando aplicados, dão sempre resultados insatisfatórios. Ultrapassando a esfera do Ocidente e do Médio Oriente, espaço geográfico das religiões abraâmicas, e usando uma expressão mais geral como a de "doutrinas tradicionais", as sociedades nas quais a espiritualidade se revestiu da forma de uma doutrina organizada institucionalmente sempre valorizaram o carácter perene dessa doutrina. Por natureza, as grandes tradições espirituais da Humanidade são perenialistas. Sucede isto fora do espaço religioso abraâmico com o Hinduísmo, com o Taoísmo, com o Budismo, entre outras tradições. Uma ideia antiga como o Mundo é a de que uma doutrina espiritual, para ser verdadeira porque divinamente inspirada, deve ser perene. E isto porque deve vigorar sempre, independentemente do tempo e do espaço. Porque uma doutrina espiritual, sendo de origem transcendente, não deve vogar ao sabor das volições humanas. Assim, torna-se evidente que o pensamento tradicional em religião é algo de perfeitamente natural e está intimamente associado a esta ideia de "perene" de qualquer mensagem que se venera como sendo divinamente inspirada.
Por estas razões, deveria ser entendido de uma vez por todas que qualquer doutrina espiritual digna desse nome é tradicional, ou seja, apoia-se na transmissão ("traditio") idealmente inalterada de doutrinas perenes.
Contudo, e a partir dos finais do século XVIII, começou a crescer na Europa uma corrente intelectual que advogava para a Religião uma fórmula semelhante à do liberalismo político: a Religião, para progredir, ou seja, para acompanhar um Progresso que se crê imparável, deveria estar preparada para rever as suas doutrinas, para adaptá-las ao tempo e ao espaço.
É, então, a partir do desprezo da essência tradicional de qualquer religião, e do Cristianismo em particular, que nasce no Ocidente a ideia de uma "liberalização" da Religião. Esta ideia, a par com uma crescente contestação à centralização representada na figura do Papa, contestação essa que principiou com a Reforma protestante, daria lugar, no século XIX, à ideia de um "retorno às origens", a um cristianismo que fosse mais próximo do que se julgava serem os ensinamentos de Cristo, de um cristianismo que fosse despojado do peso da autoridade papal e que "aligeirasse" a doutrina do seu carácter impositivo e dogmático.
Simultaneamente, o significado atribuído pela opinião pública ao termo "dogma" também sofreu uma radical transformação, passando a ser visto como um termo pejorativo.
Na sua acepção grega original, a palavra "dogma" era usada em dois contextos diferentes: significava ora um decreto ora uma opinião. Mais tarde, já num contexto cristão, a palavra foi usada pela primeira vez para designar os decretos resultantes do Primeiro Concílio de Jerusalém (2). Para os cristãos, a palavra "dogma" tinha agora o significado de doutrina, de postulado ou axioma religioso, e era usada para fixar em conceitos sintéticos a tradição oral apostólica. Mas a bem sucedida campanha de diabolização da palavra "dogma" trá-la, em pleno século XX, para junto da opinião pública já numa forma distorcida. O "dogma" seria então o instrumento privilegiado do poder da Igreja Católica, uma organização vista como déspota, que prezaria o crente obediente e que não questiona, e que silenciaria com tirânicos "dogmas" o crente desafiador e interrogativo.
Como se vê, a intrusão desadequada do termo "liberalismo" no seio da intelectualidade católica moderna, a par com a perda do significado primevo do conceito de "dogma", tão valorizado pela patrística muito antes ainda de a Igreja de Roma se revestir do poder e autoridade de que mais tarde veio a usufruir, provocou a actual situação de evidente fractura.
Tal qual como num qualquer Parlamento, os católicos vão-se dividindo hoje em dia entre os chamados "católicos liberais", também vistos convenientemente por uma certa opinião anti-clerical como "modernos" ou "moderados", um grupo cada vez mais crescente e dominante mesmo nalgumas camadas da hierarquia da Igreja, e os chamados "católicos conservadores", que nalguns sectores violentamente anti-clericais são mesmo chamados de católicos "fundamentalistas", ou "fanáticos".
Assim, nos dias de hoje, a adesão de um católico à Tradição perene da Igreja, conforme chegou aos nossos dias através das vidas e obras de de homens e mulheres durante dois mil anos, é sinal de falta de espírito crítico, de obediência cega às hierarquias, de um receio de modernidade que só pode ser fruto da ignorância e da falta de espírito científico.
Por outro lado, aquele católico que contesta todas as principais facetas da doutrina católica é visto como alguém com maturidade intelectual, como alguém que tenta trazer a Igreja para os dias de hoje, para a modernidade.
É neste contexto que tantos católicos se sentem divididos. John Cornwell é apenas mais um desses católicos indecisos entre a atracção pela revolução doutrinal e pela contestação à hierarquia e o receio perante um evidente apodrecimento da essência do ser católico, o chamado "sensus catholicus". Na sua entrevista à Crisis Magazine, Cornwell dá já sinais claros dessa sua permanente dúvida interior, dando as suas palavras um exemplo disso mesmo quando ele fala acerca do empobrecimento crescente da liturgia nos tempos modernos:

«... é que o Missal Romano foi menosprezado de uma forma que contribui para este processo geral de Pelagianismo na Igreja, roubando-nos do nosso sentido de imerecimento e também roubando-nos, no próprio coração da Missa, do sentido da Trindade.»

Na presente situação, é normal que muitos católicos se sintam confusos como Cornwell, contudo é de censurar a atitude precipitada (presumo alguma boa fé nas suas intenções, não arriscando a tese de premeditação) do autor em escrever o grave erro histórico que é o seu livro Hitler's Pope.
Ao constatarmos que, de entre os vários nomes dos actuais críticos e detractores de Pio XII, encontramos católicos da chamada corrente "liberal", ficamos com a nítida impressão de que por detrás de uma aparente crítica académica à actuação deste Papa, está toda uma crítica macroscópica à Igreja e à forma como esta lida com a modernidade. Ao criticar o estatismo e a autoridade de Pio XII, Cornwell não está a procurar esclarecer, de modo académico, um episódio da recente história europeia mas sim a provocar um acentuar da contestação à Igreja Católica. Cornwell conseguiu com a sua obra, conscientemente ou não, motivar um grande número de católicos para a "revolução liberal". Pasmo-me ao vê-lo em 2004, apenas quatro anos volvidos da publicação da sua polémica obra, tão preocupado com questões de preservação litúrgica quando ele é o principal responsável pelo relançamento, na viragem do século XX para o século XXI, do mito do "papa de Hitler" na opinião pública.
Nas fileiras católicas "liberais" encontramos muitos dos detractores de Pio XII, e citando apenas alguns nomes referidos por David Dalin na sua recente obra The Myth of Hitler's Pope, temos: os ex-seminaristas Garry Wills (autor de Papal Sin) e John Cornwell, juntamente com o ex-sacerdote James Carroll, autor de Constantine's Sword - The Church and the Jews - a History. Une-os a vontade de promover uma agenda liberal: juntamente com a contestação à hierarquia surgem outras contestações, nomeadamente à moral sexual da Igreja e aos métodos contraceptivos, à questão da licitude do aborto, à questão da homossexualidade, da ordenação sacerdotal de mulheres, do divórcio católico, entre tantas outras questões "fracturantes".

Apesar de John Cornwell ter, em grande parte, acatado as contestações às suas premissas historicamente infundadas (3), a verdade é que toda esta campanha de "liberalismo" católico foi aproveitada, como não podia deixar de ser, pelos radicalizados sectores anti-clericais, que não perderam a oportunidade para louvar o "academicismo" do trabalho de Cornwell e a utilidade e validade do seu trabalho. Evidentemente, aos sectores anti-clericais interessará tudo o que possa dividir o universo católico. A afinidade verificada por muitos dos anti-clericais com os católicos ditos "liberais" é apenas aparente: os primeiros vêem os últimos como úteis e necessários para fazer soçobrar o que resta do edifício católico.

Como católico que seria rapidamente classificado como "fanático" por certos radicais ateus ou mesmo por católicos, escrevo estes textos como exortação aos católicos do nosso tempo, para que façam duas coisas antes de tomar uma posição considerada "liberal" ou "conservadora":

1. Em relação a cada questão fracturante, tentar estudar a fundo a questão, obter os documentos essenciais, procurar as fontes, tentar compreender ambos os lados da questão, tanto os defensores como os detractores

2. Regressar a um estudo sério do catolicismo; o "sensus catholicus" pode e deve ser nutrido com a leitura, com o aprofundamento da cultura cristã pessoal de cada católico.

Um católico consciente, nos dias de hoje, não pode tomar uma decisão pessoal contra o Papa ou contra a Igreja Católica apenas baseando-se nos "media", veículo comunicativo saturado de ruído em relação a estes temas, sem sequer dar a si mesmo a possibilidade de saber o que diz a Igreja sobre cada assunto.

O mito do "Papa de Hitler" nasceu pouco depois da morte de Pio XII. E é, embora sendo central, apenas mais uma das muitas peças de intenção anti-católica que, infelizmente, é também promovida por católicos e não só pelos anti-clericais.
É todo o viver tradicional religioso que está ameaçado pela actual "kulturkampf" anti-católica. É uma guerra silenciosa, ignorada pelos "media", considerada inexistente e exagerada pelos inimigos da Igreja. Mas é uma guerra evidente para todos aqueles que já se deram conta das ameaças de uma secularização excessivamente anti-clerical com ambições totalitárias e que visa a erradicação do viver religioso das sociedades modernas.
É por isso mesmo que o Rabi David Dalin, autor da obra The Myth of Hitler's Pope, consciente da sua responsabilidade na preservação do legado espiritual judaico, se sentiu obrigado a repor a verdade acerca do justo Eugenio Pacelli, Papa Pio XII. Também Dalin sente os efeitos desta secularização radical no seio do próprio judaísmo. Todo e qualquer homem ou mulher que sinta a profundeza espiritual da sua tradição, seja ela cristã, muçulmana, judaica, ou outra qualquer, sentir-se-á necessariamente solidário com esta urgência: deter ou tentar travar esta guerra cultural anti-católica.
Antes de a tentarmos travar, em primeiro lugar, temos que nos dar conta de que ela existe.
No decurso do estudo da História, ao procurarmos encontrar a verdade acerca de cada assunto, não devemos temer o que vamos encontrar: apenas a Verdade liberta. Para mim, esta é uma das mais importantes lições de qualquer fé: a Verdade liberta.

(1) Crisis Magazine, Interview with John Cornwell
(2) Jean Borella, Ésotérisme Guénonien et Mystère Chrétien, p. 108.
(3) "(...) I did not object to those who criticized the arguments and disputed the historical evidence. But I was dismayed by those who used ad hominem arguments, claiming that I was not a Catholic and disputing that I had started out intending to defend Pius XII.", na entrevista à Crisis Magazine atrás citada.

segunda-feira, 3 de julho de 2006

Pio XII e o Nazismo - Parte I

Pio XII (Eugenio Pacelli)
Fonte: Wikipedia

As opiniões anti-clericais relativamente ao tema das relações entre a Santa Sé e o regime de Hitler têm andado agitadas nos últimos tempos. A eterna questão, que vigora desde os anos sessenta, voltou à ordem do dia. É a título puramente pessoal que escreverei o que vou escrever, enquanto indivíduo apaixonado pela História e católico apaixonado pelo Catolicismo. As minhas palavras não pertendem representar nenhuma posição oficial da Igreja Católica uma vez que eu não tenho qualquer legitimidade para tal.

Em tempos, mesmo tendo sido sempre católico, tive uma opinião muito negativa acerca deste Papa, motivada principalmente pelos "media" e pela leitura de um livro pouco sério, Hitler's Pope, de John Cornwell. Nesta obra, o “católico” Cornwell revela ao leitor que, tendo começado a investigar com o objectivo de limpar a memória de Pio XII, teria entrado num estado de “choque moral” (“moral shock”) com o que tinha descoberto durante a investigação. As conclusões de Cornwell eram afinal as de que Pio XII tinha uma boa parte da culpa pelo sucedido durante a Shoa, e que os seus gestos ou a falta deles deveriam ser interpretados como tendo origem no seu espírito anti-semita e na sua preferência pelo nazismo como força de combate ao comunismo.
Esta leitura de Cornwell é totalmente incompatível com a documentação histórica.

De certo modo, tento sempre considerar como uma possibilidade real a mudança radical da minha opinião acerca da figura de Pio XII e do seu papel durante a Segunda Guerra Mundial. Deveria também ficar claro que, conceptualmente, não tenho quaisquer dificuldades com a possibilidade de um Papa cometer crimes, não só morais mas também materiais. A opinião pública confunde muitas vezes o dogma da Infalibilidade Papal (que apenas está definido num contexto "ex cathedra", quando o Sumo Pontífice se pronuncia sobre questões de doutrina no seu papel de "alter Petrus") com a ideia de que os Papas seriam infalíveis enquanto pessoas, o que deveria ser visto como uma ideia absurda por todos. Usando um exemplo exagerado, um Papa poderia cometer homicídio (o que seria claramente um pecado pessoal de grande gravidade), que isso não beliscaria a validade do seu Papado enquanto protector do "Depósito de Pedro", ou seja, desde que esse Papa, com os seus actos, não destruísse nem adulterasse a doutrina, o seu cargo enquanto Papa manter-se-ia válido. Uma coisa é a imagem de bom ou mau cristão que um Papa transmite com a sua vida e obra (e aqui, existiram certamente melhores e piores Papas), outra coisa totalmente diferente é o correcto desempenhar de uma missão de protecção de uma doutrina com dois mil anos de antiguidade. Como se vê, é possível que um Papa desempenhe bem esta última missão (basta não alterar a doutrina!), mesmo tendo uma vida corrupta ou dissoluta. O que sucedeu no passado algumas vezes: basta citar o exemplo do bórgia Rodrigo, que ascendeu ao papado com o nome de Alexandre VI, sendo certo que existiram mais casos semelhantes. Mas não queria perder a oportunidade, ao falar de Alexandre VI, para apresentar como curiosidade o facto de este Papa, cuja carreira será censurável em tantos aspectos, ter sido um grande protector dos Judeus! Alexandre VI instituiu a cátedra de Hebraico na Universidade de Roma. Durante o seu papado, o número de judeus acolhidos em Roma practicamente passou para o dobro porque Alexandre VI acolhia os judeus que haviam sido expulsos de Espanha e de Portugal. Na continuidade de uma tradição pontifícia secular, o médico pessoal de Alexandre VI era um judeu de seu nome Bonet de Lattes (natural da Provença). Este criou um artefacto astronómico e escreveu uma obra sobre a sua invenção, que dedicou «ao seu amigo e patrono Papa Alexandre VI» (1). A História mostra, como ficará evidente nos artigos seguintes que tenciono escrever, que a tendência pró-semita dos pontífices romanos, desde os últimos séculos tem-se mantido constante e firme.

Mas regressemos a Pio XII...
Pela força dos factos de que comecei a ter conhecimento, mudei totalmente a minha ideia acerca deste Papa, assim que me dei conta de que o material que tinha lido sobre ele estava totalmente viciado, e mais do que tudo, esse material tinha sido preparado minuciosamente para causar um forte efeito de repulsa por Pio XII.

Mas tenho a perfeita noção de que, sem o meu condicionalismo católico, se calhar eu não teria tido a vontade de pesquisar, e talvez não tivesse consequentemente mudado de opinião. Não nego que, sendo eu católico, exista em mim um desejo profundo e emocional de que Pio XII tenha sido uma boa pessoa. Do mesmo modo que, sendo os meus adversários ideológicos ateus e anti-clericais por convicção, exista neles um desejo profundo e emocional de que Pio XII tenha colaborado com o Nazismo. Somos falíveis, porque humanos. E separar a emoção da razão é tarefa desejável, mas quase impossível. De parte a parte. O que interessa, sendo-se crente ou ateu, é saber avaliar da forma mais neutra possível o que de facto se passou com base em documentação histórica que ninguém conteste.

Todos nós estamos, de certo modo, condicionados pelas nossas idiossincrasias. Mas, tendo isto bem presente, e se formos honestos, também sabemos encontrar formas de não estarmos tão presos a estas condicionantes, sem no entanto nunca nos libertarmos totalmente delas, porque fazem parte do nosso ser. É assim que tentam trabalhar os historiadores sérios, sejam eles ateus ou crentes. Como recorda Bruno Cardoso Reis, citando o exemplo da colectânea preparada por historiadores crentes e ateus coordenada por Jean Delumeau, L'Historien et la foi, o essencial relativamente à qualidade do trabalho historiográfico está no modo de trabalhar as fontes históricas e não nas convicções pessoais do historiador. Ao invés do que sugeria a editora do Hitler's Pope de John Cornwell, e do que disseram elogiosamente certos comentadores estrangeiros e portugueses, e que tentaram promover a isenção e a validade desta obra pelo facto de esta ter sido escrita por um católico, não interessa nada para a validade científica da sua obra que Cornwell seja católico! A fé pessoal, ou a ausência dela, de qualquer investigador ou historiador nada diz sobre a validade ou invalidade do seu trabalho, sobre a forma como esse trabalho foi conduzido.

Assim, supondo eu que a maioria dos ateus anti-clericais, com grande probabilidade, nunca irá defender a vida e a obra do Papa Pio XII, eu já ficaria satisfeito, e muito, se tivesse conseguido fazê-los ver que certas ideias concretas que possuem acerca deste papado estão condicionadas erroneamente por uma campanha difamatória que nasce na Alemanha com o surgimento da peça teatral de Rolf Hochhuth, O Vigário (1963). Desde então, uma bem montada campanha de difamação tem vindo a crescer, envolvendo os media em largo espectro, mas atingindo também, infelizmente, figuras do meio universitário que colocam objectivos ideológicos à frente dos científicos.

Tenciono, por isto tudo, trazer a pouco e pouco para a blogosfera algum material por mim recolhido de fontes diversas, tendo eu evitado, sempre que possível, basear-me demasiado na Internet. Trata-se de um problema demasiado delicado para ser estudado pela Internet: há riscos no uso excessivo, para argumentação, de ligações para sites na Internet cuja credibilidade não é facilmente atestada. Nestes textos que irei publicar acerca deste tema irei dar, quase sempre, referências bibliográficas. As obras de que falarei estão acessíveis em bibliotecas públicas e poderão também ser adquiridas "on-line" nos grandes sites de vendas de livros na Internet.
É também evidente que a isenção e a qualidade de uma obra não ficam garantidas, à partida, por esta estar editada em papel em vez de estar na Internet! Há, certamente, excelentes sites bem melhores do que muitas obras desonestas editadas em papel. Mas dado o maior âmbito temporal de uma obra editada em papel, existe uma maior dose de compromisso e de responsabilidade por parte de um autor com uma obra editada neste suporte tradicional do que com um site, que a qualquer altura, se não estiver apoiada numa instituição duradoura, poderá desaparecer ou ver o seu conteúdo alterado radicalmente.

As minhas referências principais são muito modestas, e puramente introdutórias. Tenho, por isso, a perfeita noção de que apenas aflorei a ponta do icebergue e de que tenho pela frente anos de trabalho árduo para me inteirar dos detalhes da questão. Mas, na minha opinião, o que pude ler é mais do que suficiente para colocarmos de lado os preconceitos de um Pio XII filo-nazi ou anti-semita. E também para colocarmos de lado o juízo injusto de que este Papa teria preferido o silêncio acerca da morte dos judeus só para aproveitar uma suposta proximidade com os nazis para beneficiar desse efeito no combate ao comunismo.
Baseei-me fundamentalmente na obra recente de Andrea Tornielli e de Matteo Napolitano, "Il Papa che salvò gli ebrei", Piemme, 2004. Trata-se, evidentemente, de uma obra apologética, mas baseada num manancial documental de valor e numa bibliografia com credibilidade, visto que os autores se socorrem dos grandes especialistas nesta temática, mesmo daqueles que são mais críticos das opções tomadas pela Santa Sé. Estes dois autores italianos puderam também beneficiar da abertura aos investigadores em 2003, por ordem de João Paulo II, do imenso dossiê "Germania", contendo, entre outras coisas, a fundamental correspondência diplomática entre a Santa Sé e Berlim durante aqueles anos quentes da ascensão e queda do nazismo na Alemanha.
Matteo Napolitano é docente de História na Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Urbino e Andrea Tornielli é um conhecido jornalista e vaticanista italiano.
Baseei-me na obra recente do judeu e rabi David Dalin, professor de História e Ciência Política na Unversidade Ave Maria, na Florida, E.U.A., sendo que este autor serve de actual porta-voz ao que de melhor se tem escrito por académicos judeus em defesa de Pio XII, numa linha de continuidade que passa por grandes figuras como Pinchas Lapide, Joseph Lichten, Jeno Levai, Michelle Tagliacozzo (ele próprio sobrevivente das purgas nazis ao ghetto de Roma), entre muitos outros.
Também me baseei num breve, mas valioso, artigo da autoria de Bruno Cardoso Reis, contendo uma análise crítica da referida obra de John Cornwell, publicado na Análise Social, número 157, vol. XXXV, 2000.
Em todo o caso, considero estas referências como uma excelente introdução, visto que são fontes concisas, e que ambas apontam para um elenco considerável de obras a consultar posteriormente, destacando-se as obras dos especialistas Andrea Riccardi, Robert Graham, e Annie Lacroix-Riz. De notar que não se tratam apenas de autores que apoiem a tese que defendo, uma vez que a obra desta última, e só para citar um exemplo, segundo Bruno Cardoso Reis, "é a verdadeira referência para quem queira atacar a política externa da Santa Sé". Cá fica a dica acerca desta autora para benefício dos meus adversários ideológicos!
Por último, necessariamente, recorri ao site da Santa Sé, que contém inúmera documentação, incluindo as encíclicas papais importantes para esta questão.

Começo por alertar aqueles que criticam Pio XII de que não basta uma leitura destas encíclicas, mesmo que seja uma leitura atenta, para se poder emitir uma opinião. Contra mim mesmo falo, mas deveria ser evidente para os meus caros adversários ideológicos que há que fazer uma auto-avaliação para nos darmos conta de se já estamos ou não preparados para emitir uma opinião válida. Opiniões, todos as podem ter. Mas uma opinião válida deve estar bem fundamentada. É pura perda de tempo emitir uma opinião acerca da política de Pio XI e de Pio II face ao nazismo e mesmo face ao fascismo apenas pela leitura das respectivas encíclicas. Há todo um imenso acervo documental, composto principalmente por correspondência entre a Santa Sé e Berlim, que deve ser analisado com minúcia.

Para além de tudo isto, deveria ser evidente que o simples facto de ter sido assinada uma Concordata entre a Santa Sé e a Alemanha nazi a 20 de Julho de 1933 não chega para se poder deduzir qualquer tipo de apoio à política de Hitler. Com a confirmação final do poder de Hitler após a sua estrondosa vitória na consulta popular de 5 de Março de 1933, a Santa Sé tinha forçosamente que ratificar o documento concordatário com o novo governo recém-eleito. O documento em questão era a sequência natural das anteriores concordatas assinadas com a República de Weimar, e anteriormente, com a Baviera e o Baden-Baden.
Deduzir qualquer apoio da Santa Sé ao governo recém-eleito de Hitler não faz qualquer sentido, tendo em consideração que a Concordata era um dos últimos recursos diplomáticos de que a Santa Sé dispunha para conseguir que Hitler se comprometesse por escrito com a preservação de alguns direitos fundamentais para a sobrevivência do catolicismo na Alemanha, direitos esses que já vinham de trás, e que a Santa Sé queria, naquele conturbado ano de 1933, confirmar de novo por escrito com a Alemanha.

Não negando a vocação da Igreja para a protecção de todos os que sofrem, e seguramente que os judeus foram os que mais sofreram às mãos de Hitler, não podemos também tecer falsos moralismos, retirando à Santa Sé a legitimidade para proteger e defender o catolicismo e os católicos na Alemanha nazi. O nazismo hitleriano não tinha como alvo apenas a erradicação dos judeus, tinha também como outros objectivos a erradicação dos portadores de deficiências psíquicas ou físicas, a erradicação de outras etnias (por exemplo, os ciganos), e por último, a erradicação do cristianismo. A Santa Sé, e pretendo dar exemplos concretos nas partes que se seguirão a esta, muito fez em prol dos judeus (não falo apenas dos convertidos, ou seja, de judeus baptizados, falo também dos judeus que praticavam o judaísmo), mas não podemos retirar-lhe o legítimo direito de proteger o catolicismo e os católicos que sofriam as perseguições do nazismo nos países ocupados.

O texto já vai longo, mas desta vez vou ficar por aqui, visto que a necessária introdução já obrigou a um grande dispêndio de tempo e espaço!
Termino esta primeira parte explicando o que eu não tenciono fazer com estes textos, contrapondo ao que tenciono fazer.
Não tenciono, de forma alguma, gerar uma demonstração e uma argumentação de carácter científico da validade da tese que defendo, uma vez que não possuo os conhecimentos para tal. Estes meus textos devem ser lidos como um trabalho individual de pesquisa histórica de carácter amador.
O que eu tenciono, sobretudo, é trazer para a linha da frente documentação e testemunhos que costumam andar “perdidos” ou esquecidos. Tenho a plena convicção de que é bem mais difícil a uma mente honesta continuar defender certas ideias preconceituosas depois de se tomar contacto com a documentação que pretendo apresentar.
Este meu trabalho pode ser visto como um trabalho apologético de defesa do bom-nome e da imagem de Eugenio Pacelli, Papa Pio XII, que na minha modesta opinião não merece a difamação de que tem sido alvo. Não quero classificar todos os actos deste Papa como perfeitos, nem fazer o mesmo face à sua carreira anterior ao Papado, como Secretário de Estado da Santa Sé desde 1930 a 1939, e antes disso como núncio em Munique, na Baviera. Importa sublinhar a importância diplomática do cargo de Pacelli antes de ser nomeado Papa: estando a Alemanha, naquele tempo, dividida entre a Prússia e a Baviera, e sendo que na Prússia a Santa Sé não tinha nunciatura, na prática, Pacelli era mais do que apenas o núncio na Baviera porque a sua esfera de influência diplomática católica englobava também a Prússia.
Não me compete a mim julgar Pio XII, nem de modo negativo nem de modo positivo porque considero que não tenho legitimidade para tal. Obviamente que ninguém é perfeito, e seguramente o próprio Pacelli admitiria, como o fazem todas as pessoas honestas e cientes das suas limitações, que poderia ter melhorado vários aspectos da sua actuação.
Se muitos querem criticar Pacelli, a sua vida e a sua obra, os seus silêncios, pois que o façam livremente, mas à luz da documentação e respeitando as regras do trabalho historiográfico. Quando se lê um determinado texto, seja ele uma simples e modesta carta diplomática ou uma formal proclamação encíclica papal, não podemos interpretar o que lemos apenas à procura de argumentos para chegar a uma conclusão por nós estabelecida “a priori”. Temos a obrigação moral de entender as motivações daqueles que escreveram esses documentos, temos a obrigação moral de conhecer os eventos que geraram esses documentos. E depois, munidos do devido contexto histórico, pronunciarmo-nos sobre esses factos conforme nos ditar a nossa consciência de ateu, agnóstico ou crente.

Bernardo

(1) David Dalin, The Myth of Hitler's Pope, pp. 23-24.

terça-feira, 6 de junho de 2006

Onde estava Deus?


(Fonte: Fox News)

Luís Grave Rodrigues revolta-se, muito chocado com as questões colocadas por Bento XVI durante o discurso que pronunciou em Auschwitz, no passado dia 28 de Maio.
Não é o único: a grande maioria da comunicação social revoltou-se com estas questões. Comentadores discorreram em torno desta citação do Papa, tantas vezes repetida:

«Onde estava Deus naqueles dias? Porque ficou Deus silencioso? Como pode Deus permitir este infindável massacre, este triunfo do mal?»


Um leitor mais distraído poderia pensar que Bento XVI teria ficado sem resposta. Que Bento XVI, de alguma forma, ignorando a resposta à sua pergunta de retórica, teria atirado a culpa da Shoa para Deus.
Ora sucede que o discurso do Papa foi ligeiramente mais longo do que aquilo que foi notificado pela Imprensa. É bem sabido que uma frase fora do contexto permite dar largas às mais fervilhantes imaginações. Sobretudo quando queremos, à viva força, encaixar os factos, espremer as curtas e cortadas palavras de outrém, nas nossas precipitadas conclusões já formuladas a priori dos acontecimentos que queremos comentar.
Foi o que sucedeu, julgo eu, como Luís Grave Rodrigues: comentou largamente um discurso do qual apenas tinha lido uma frase. O que é uma pena para si e para os seus leitores, que assim apenas tiveram acesso a uma frase do Papa fora de contexto e a uma série de comentários que não vinham a propósito por ignorarem o texto completo do discurso papal.
Porque há que informar, e informar de modo sério, vejamos o texto integral, que está perfeitamente acessível no site do Vaticano.
Versão em Inglês
Versão em Italiano

sexta-feira, 26 de maio de 2006

Resposta da Prof. Helena Barbas

Com a autorização da Prof. Helena Barbas, apresento de seguida a sua resposta à minha carta aberta:

Caro Senhor: em resposta ao seu e-mail, queria agradecer a atenção que dispensou ao programa. Um programa de televisão é um programa de televisão. Relativamente às críticas que me faz, remeto-o para a minha tese de doutoramento publicada on-line desde Fevereiro de 2003 - http://www.fcsh.unl.pt/docentes/hbarbas/ em «dissertações».
Os meus cumprimentos
Helena Barbas

quinta-feira, 25 de maio de 2006

Carta aberta à Prof. Helena Barbas

Ontem assisti, na RTP-N, a um interessante debate acerca da omnipresente obra polémica da Dan Brown. Foi um debate que me perturbou profundamente, sobretudo pela forma como a Professora Helena Barbas nele participou.
Assim, escrevo esta carta aberta à Professora Helena Barbas, pedindo-lhe que me elucide sobre certas questões que me ficaram no espírito durante e após o visionamento do dito debate. Com esta missiva, não tenho qualquer pretensão de provar o que quer que seja, apenas desejo manifestar publicamente as minhas dúvidas, aguardando ser esclarecido.

Exma. Senhora
Prof. Helena Barbas,

Manifestando desde já todo o respeito pelo seu estatuto de docente universitária, e em consideração pelo seu conhecido e reconhecido trabalho académico, venho por este meio, humildemente, comunicar-lhe algumas dúvidas que tenho acerca daquilo que disse no debate conduzido ontem, dia 24 de Maio, em directo no canal RTP-N acerca do livro de Dan Brown, "O Código da Vinci".
Apenas dependendo da minha memória, irei apontar as suas afirmações que me intrigaram, esperando ser fiel na sua reprodução:

A) Sobre a datação dos Evangelhos

Pareceu-me ter ouvido a senhora Professora afirmar que os Evangelhos Canónicos seriam largamente posteriores ao tempo de Jesus; se bem entendi, a senhora Professoria teria afirmado que o mais antigo dos evangelhos dataria de sessenta anos após a morte de Jesus; no entanto, tenho presente outros dados diferentes acerca da datação dos evangelhos. O Evangelho de São João, esse sim considerado o mais tardio, teria sido composto por volta dos anos 90-100 d.C., ou seja, mais ou menos sessenta anos após a morte de Jesus. Mas esse seria o mais tardio!
Em primeiro lugar, a senhora Professora saberá certamente que os Evangelhos ditos de Lucas, Marcos, Mateus e João não são vistos pela Igreja como tendo sido, necessariamente, escritos por estes autores. Pelo que a minha argumentação de antiguidade e historicidade será baseada no conteúdo destes textos, mais do que sobre a materialidade dos textos na forma escrita.
Este é um ponto importante: independentemente do escriba, da pessoa que os materializou pela primeira vez, o conteúdo destes textos respeitaria a tradição oral atribuída a Mateus, Marcos, Lucas e João. A palavra grega "kata", ou seja, "segundo" é aqui essencial: deve-se dizer "Evangelho Segundo S. Lucas", "Evangelho Segundo S. Marcos", etc., marcando claramente que se procura autenticar não tanto o autor físico e material dos textos (o escriba), mas sobretudo o seu inspirador. A tradição oral pré-existe à escrita e não pode ser desprezada do ponto de vista histórico, visto que há ampla evidência do seu relevo na tradição da Igreja. Bastaria recordar, mas não a desenvolverei aqui porque nos levaria demasiado longe, a essencial questão da "disciplina do arcano" e a influência desta no património doutrinal cristão (1).
Apenas para se obter um termo de comparação, a senhora professora saberá certamente que uma boa parte da tradição judaica se transmite por via oral, pelo que não é improvável que, nos primeiros séculos, os cristãos tivessem usado uma estrita e rigorosa tradição oral, pelo recurso à prática da memorização e repetição de textos de grande dimensão.
Posto isto, eis o que pude aprender acerca destes Evangelhos...
Sobre S. Mateus, é complicada a questão acerca de se saber se o texto original seria em aramaico e a versão grega seria posterior, ou se seria ao contrário. À parte destas questões, que são importantes certamente, a datação deste evangelho é maioritariamente consensual na escolha da década de 60 d.C. como a data mais tardia. Não encontro sustentação académica para as datações posteriores a esta década, conforme consta na obra de certos críticos (Weiss and Harnack datam em 70-75; Renan em 85, Réville, entre 69 e 96, Jülicher, entre 81 e 96, Montefiore, entre 90-100, Volkmar, em 110; Baur entre 130 e 34), de forma puramente conjectural, supondo que quando Jesus fala profeticamente acerca da perseguição aos cristãos isso seria prova de que a perseguição aos cristãos no primeiro século já teria ocorrido. Ou seja, a datação é feita por conjectura e não com base em dados mais concretos de estilística, análise lexical ou pelo cruzamento deste evangelho com os restantes.
Sobre São Marcos, a tradição cristã, pela via de autores bastante antigos e respeitáveis como Eusébio, Clemente de Alexandria, Orígenes, Tertuliano, Santo Ireneu de Lião, e muitos outros, estabelece como altamente provável a tese de que este evangelista teria recebido os ensinamentos directamente de São Pedro, o que daria um cunho fortíssimo de historicidade e antiguidade a este evangelho.
Sobre S. Lucas, sabe-se que seria um grego (atestado pela análise da sua escrita - ele é também visto como o autor dos Actos dos Apóstolos) natural de Antioquia (Eusébio atesta-o nas sua História Eclesiástica - Livro III, iv, 6, e nas suas "Quæstiones Evangelicæ", IV, i, 270). Ao longo dos Actos dos Apóstolos, penso que se encontra ampla base para se supor que Lucas seria companheiro de São Paulo.
Sobre o Evangelho de São João, cuja historicidade é amplamente negada fora da Igreja Católica (chegando também a ser negada, dentro da Igreja, pelo modernista Loisy e por outros da mesma corrente), é difícil ter conclusões seguras na sua datação. A Igreja, baseando-se na tradição oral apostólica e na coerência doutrinal deste evangelho com os restantes três, mantém, por respeito a essa tradição, que o autor deste texto é o mesmo apóstolo S. João, o "discípulo amado".
Seja como for, o único evangelho que pode ser atribuido com segurança aos ditos sessenta anos após a morte de Jesus, como referiu a senhora Professora, parece-me ser o de São João, sendo que os restantes três seriam anteriores.
Para terminar, e esperando que a senhora Professora não partilhe desta tese "browniana", os textos canónicos não resultaram da política nem da escolha do imperador romano Constantino, uma vez que o Codex Muratori (datado de aproximadamente 180 d.C.) já traz uma compilação de textos muito próxima do actual Novo Testamento.

B) Sobre o Concílio de Niceia

Escutei, com grande espanto, a senhora Professora afirmar que a Igreja Católica, ao tempo do Concílio de Niceia (325 d.C.) teria sido constituída como instituição precisamente graças a este concílio, tendo tido a sorte de surgir, no meio das várias "seitas cristãs" (expressão sua, julgo eu), como a corrente considerada ortodoxa. Assim, graças a Constantino, a doutrina cristã oficial teria sido protegida por este imperador, e após ser retirada do universo das seitas e elevada à condição de ortodoxia, teria rotulado todas as restantes seitas de heterodoxas.
Antes de principiarmos, queria recordar a obra de Henri Lassiat, La Jeunesse de l'Église: la foi au IIe siècle (1979), referida por Jean Borella (ver nota no final do texto). Borella, o reputado filósofo francês especialista em cristianismo, afirma que Lassiat demonstra de forma "irrefutável" a existência de amplos testemunhos de que existia uma "regra de Fé" pré-Niceana, o que prova que a doutrina já estava bem definida (não na forma de um texto escrito, mas sim transmitida oralmente) entre os anos 100 e 200 d.C., o que inviabiliza a tese de que Constantino, ou mesmo o Concílio de Niceia, teria pervertido o legado crístico.
Pelo que a alegação da senhora Professora, no que diz respeito ao carácter de "seita" dos defensores da doutrina fixada formalmente em Niceia me parece ser uma alegação com pouco suporte documental. Se eu estiver a interpretar incorrectamente as suas afirmações, por favor, aponte-me as incorrecções, pois estou apenas a comentar com base na memória do que ouvi ontem.
Aproveito para fazer um parêntesis acerca do conceito de "dogma". É uma ideia frequentemente generalizada encarar os dogmas como uma criação exclusiva do Concílio de Niceia, e que estas formas autoritárias e rígidas seriam uma perversão do legado de Cristo. A História prova que esta ideia é falsa. A palavra grega "dogma", que significa "decreto", aplica-se desde as mais remotas origens do cristianismo às chamadas "verdades de Fé". Para vermos que não se tratam de imposições de carácter autocrático nascidas em Niceia, é importante saber qual era, e qual é, o significado genuíno destes "dogmas", ou seja, destes "decretos da fé cristã".
É útil recordar, como menciona Jean Borella, o legado de São Basílio de Cesareia, bispo da dita cidade, irmão de São Gregório de Nissa e amigo de São Gregório de Naziano. É que a obra de São Basílio é uma das mais importantes evidências da antiguidade da dita "disciplina do arcano": ou seja, falamos do preservar, sob a protecção do silêncio, as "verdades da fé", não só dos pagãos não baptizados, mas também dos catecúmenos, ou seja, dos "pré-cristãos" que aguardavam o baptismo e que para ele se preparavam longamente.
Nos primeiros séculos, ainda longe da generalização da prática do pedobaptismo, a administração deste sacramento (a palavra "sacramentum" é a fiel tradução latina do grego "mystérion", não esquecer) culminava um longo percurso de preparação, que hoje em dia ainda subsiste, chamado de "catecumenado". Ora a obra de São Basílio (destacando o "Tratado do Espírito Santo") explicita de forma clara a distinção entre o "dogma" e a "kérigma" ("proclamação"): aos não baptizados, estava vedado o conhecimento dos dogmas, ou seja, das verdades de fé. Assim, os primeiros pastores da Igreja, quando falavam publicamente, guardavam rigorosamente a "disciplina do arcano", vedando às plateias não preparadas (não baptizadas), a revelação da essência da fé, ou seja, dos dogmas. Nestes tempos muito recuados, sempre que falavam publicamente, os sacerdotes e os bispos usavam os "kérigmata", ou seja, "proclamações" públicas que evitavam a revelação generalizada das verdades písticas centrais ao cristianismo.
Assim, vemos que o significado da palavra "dogma" tem sido mal compreendido e mal estudado, visto que na origem revela algo cuja natureza é, surpreendentemente, mais "esotérica" do que se imaginaria, ou seja, de carácter mais interior e reservado do que se suporia.
Distinguindo "dogma" como algo de interior, de "kérigma" como algo de exterior, parece-me que não poderemos fazer leituras simplistas acerca do fenómeno de Niceia como se se tratasse de uma ditatorial e autoritária definição de regras que perverteriam o legado de Jesus Cristo para favorecer o Império e a Igreja.
Fechando este parêntesis, cara Professora Helena Barbas, sintetizo a minha dúvida deste modo: como é possível sustentar que não existia, desde o final do século I, uma regra de fé cristã bem solidificada, transmitida quase exclusivamente por via oral (os "dogmata" protegidos pela "disciplina do arcano"), que se manteria inalterada na sua essência até Niceia, quando em 325 d.C., os bispos cristãos reunidos em concílio decidiram formalizar a dita regra de fé no chamado Símbolo de Niceia?
É, até, curioso notar que a necessidade de formalização da fé neste primeiro concílio não nascera por vontade primordial da Igreja Católica mas sim como reacção ao fenómeno ariano, que naquele tempo alastrava com vigor. Vendo bem, atentando aos relatos que chegaram aos nossos dias, constatamos que fora o espírito filosófico grego imbuído na personalidade de Ário que o fizera procurar uma formulação metafísica nítida e clara para a relação entre o Pai e o Filho. Niceia é a reacção do mundo cristão à difusão generalizada das ideias metafísicas muito pessoais do próprio Ário. Essa reacção explica-se, na minha modesta opinião, pelo simples facto de que quem conhecia profunda e interiormente o legado apostólico, transmitido por via oral, via que as ideias de Ário, por muito "claras" que fossem, não eram compatíveis com o dito legado.
Mas tentemos ir à profundidade, dentro do possível, das motivações de Constantino: o imperador procurava, julga-se que suportado pelo Papa Silvestre I, juntar a Cristandade na definição clara da sua doutrina em Niceia, porque Constantino queria uma fé oficial sólida para o Império. O que o motivava era a união dos seus súbtidos sob uma mesma doutrina, fosse ela qual fosse, procurando o Imperador sempre aquela doutrina que pudesse gerar maior consenso, visto que a verdade acerca da mesma era algo que possuia para ele interesse secundário.
O Imperador não está dentro das subtilezas teológicas da questão: para Constantino, pouco importa o "homoousion" ou outras minúcias do género. A prova disso está no facto, que eu não vi a senhora Professora referir, de que poucos anos após ter promovido Niceia, Constantino estava activamente a promover a doutrina ariana: após 333, Constantino chama de volta os bispos arianos exilados e une os seus esforços a Ário. Esta reacção de Constantino, de verdadeiro retrocesso à sua política de protecção ao Concílio de Niceia, vai gerar consequências durante quase um século: toda a Europa, graças às políticas pró-arianas de Constantino, vai cair sob o fascínio desta heresia. Recordemos que é no ano de 358 que o exilado Papa Libério será obrigado a assinar uma profissão de fé muito duvidosa no dito Concílio de Sírmio. Mesmo depois do Concílio de Constantinopla (381), a europa permanecerá ariana durante muito tempo, em consequência deste verdadeiro volte face do Imperador, que infelizmente tão poucos comentadores modernos referem. Os Visigodos permanecerão arianos até ao baptismo de Clóvis no final do século V. Os Lombardos atrasarão o abandono do arianismo até meados do século VII.
Sinceramente, perante os factos históricos, não sei como é que se mantém, sem ser anacronicamente, a ideia de uma Igreja Católica escolhida de entre as seitas, e fortalecida graças à protecção de Roma.

C) Sobre as origens gnósticas da mortificação corporal

Fiquei surpreendido ao ver que a senhora Professora partilhava da opinião de que a penitência e o sofrimento corporal voluntários seriam algo de estranho ao cristianismo, encontrando as suas raízes no gnosticismo e no maniqueísmo. É inegável que a doutrina gnóstica considerava que a Criação era a obra maligna de um demiurgo, e que a matéria era intrinsecamente má. Contudo, é também inegável que essa era uma das principais razões pelas quais o cristianismo combateu o gnosticismo. Esse repúdio, essa malignidade da Criação, estavam (e estão) em total contradição com a tradição cristã e judaica (basta pensarmos no Génesis, por exemplo).
A tendência para uma valorização negativa da matéria sempre existiu no cristianismo, mas a sua génese nada tem de gnóstico! É pela noção do transcendente, pela elevação da condição espiritual acima da condição humana, que se pode abrir caminho para uma certa relativização da condição material, não enquanto maligna, mas enquanto inferior ao transcendente.
A abundância de exemplos da prática do ascetismo, a generalização dos testemunhos de eremitas e de vidas cristãs de grande penitência corporal, está presente no cristianismo desde as origens. O próprio martírio dos cristãos nas arenas romanas era já um bom exemplo desta entrega da vida às mãos dos carrascos romanos pela glória da defesa de uma verdade que transcendia este Mundo.
A mortificação corporal (nem sempre "auto-flagelação" como me pareceu que o debate de ontem pretendia concluir) não é uma prática do Opus Dei, mas sim do cristianismo desde sempre.
Não será, certamente, uma prática recomendada, mas ao mesmo tempo nunca tal prática se poderia condenar, desde que, dentro de certos limites, fosse mantido um respeito pelo corpo que impedisse a sua morte prematura (o que seria "contra natura").
Espero que concorde comigo quando aponto a diferença, cara Professora, entre o "endura" cátaro, a prática ultra-ascética do suícidio pela privação de alimentação, e o que a tradição cristã conta acerca, por exemplo, de um Santo Antão ou de outros santos que viveram como eremitas, alimentando-se de forma precária, procurando imitar Cristo (recordemos a estadia de Cristo no deserto) mas sem nunca procurar a gnóstica libertação da carne!
Para terminar, interrogo-me porque razão a senhora Professora não teria tido presente, no debate de ontem, uma evidência contrária às suas afirmações. Em S. Francisco, aliás, em toda a tradição franciscana, é difícil negar a presença da penitência corporal por via da privação dos bens e dos luxos da vida terrena. Ora, existirá hino mais anti-gnóstico, mais contrário à heresia gnóstica, do que o Cantico delle Creature, de São Francisco de Assis (2)?
Há, no cristianismo, um convívio generalizado com a penitência corporal, que também encontra raízes judaicas por via do jejum. Este convívio foi praticado e defendido sem qualquer relação causal com a heresia gnóstica. A mortificação corporal encontra a sua razão de existir na vontade, puramente pessoal, de certos crentes se identificarem com a Paixão de Cristo pela via do desconforto ou da penitência do próprio corpo, não porque este seria maligno, mas sim porque Cristo teria passado pelo mesmo tipo de situação,
É inegável que existiram, ao longo dos dois mil anos de história da Igreja Católica, vários exemplos de excesso, vários testemunhos de cristãos que levaram demasiado longe a relativização do corpo face ao espírito, e que, numa tentativa de fugir das "tentações da carne", procuravam na auto-flagelação uma solução para evitar cair em pecado. Este é, certamente, um caso de desvio do cristianismo, visto que de acordo com o legado cristão, o pecado resulta de uma decisão voluntária do Homem e não da malignidade do seu corpo, como defenderiam os gnósticos.
Conclusão: a mortificação corporal, como forma de imitação do sofrimento físico de Cristo, encontra o seu lugar na tradição cristã, sendo uma prática puramente pessoal, decidida e vivida opcionalmente na interioridade espiritual de cada um. A mortificação corporal como forma de expiação dos pecados é algo de excessivo e de seguramente posterior aos primeiros séculos do cristianismo, associando-se sobretudo à Idade Média e a um ambiente psicológico e social que a senhora Professora conhecerá certamente melhor do que eu, ao qual não é estranha a influência dos quiliasmos e dos sentimentos apocalípticos aliadas à vivência difícil de alguns dos séculos mais duros na História da Europa.

Falhando-me a memória para poder criticar outras afirmações proferidas pela senhora Professora Helena Barbas no referido programa televisivo, despeço-me com elevada consideração e respeito, não querendo de forma alguma manchar ou atacar a sua reputação académica, mas procurando sobretudo obter o esclarecimento das afirmações que aqui apontei e critiquei.

Com estima,

Bernardo Sanchez da Motta

(1) Jean Borella, Ésotérisme Guénonien et Mystère Chrétien, Delphica, 1997, Lausanne.
(2) Ver o texto completo desta composição de São Francisco aqui: http://www.crs4.it/Letteratura/CanticoCreature/CanticoCreature.html
Nota: consultei amplamente, na redacção deste texto, a enciclopédia católica on-line "New Advent", em http://www.newadvent.org