quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Palermice Animal

A ler, no blogue do Jairo: Palermice Animal.

Living within the Truth - Arcebispo Chaput (EUA)

É cada vez mais sabido que os EUA estão bem fornecidos de Bispos de categoria. Tenho citado neste blogue vários bons exemplos. Eis mais um texto lúcido e importante do Arcebispo de Denver, Charles Chaput, do qual tomei conhecimento via Infovitae.

Living within the truth: Religious liberty and Catholic mission in the new order of the world

Eis um excerto deste texto poderoso:

«This diagnosis helps us understand one of the foundational injustices in the West today -- the crime of abortion.

I realize that the abortion license is a matter of current law in almost every nation in the West. In some cases, this license reflects the will of the majority and is enforced through legal and democratic means. And I’m aware that many people, even in the Church, find it strange that we Catholics in America still make the sanctity of unborn life so central to our public witness.

Let me tell you why I believe abortion is the crucial issue of our age.

First, because abortion, too, is about living within the truth. The right to life is the foundation of every other human right. If that right is not inviolate, then no right can be guaranteed.

Or to put it more bluntly: Homicide is homicide, no matter how small the victim.

Here’s another truth that many persons in the Church have not yet fully reckoned: The defense of newborn and preborn life has been a central element of Catholic identity since the Apostolic Age.

I’ll say that again: From the earliest days of the Church, to be Catholic has meant refusing in any way to participate in the crime of abortion -- either by seeking an abortion, performing one, or making this crime possible through actions or inactions in the political or judicial realm. More than that, being Catholic has meant crying out against all that offends the sanctity and dignity of life as it has been revealed by Jesus Christ.

The evidence can be found in the earliest documents of Church history. In our day -- when the sanctity of life is threatened not only by abortion, infanticide and euthanasia, but also by embryonic research and eugenic temptations to eliminate the weak, the disabled and the infirm elderly -- this aspect of Catholic identity becomes even more vital to our discipleship.

My point in mentioning abortion is this: Its widespread acceptance in the West shows us that without a grounding in God or a higher truth, our democratic institutions can very easily become weapons against our own human dignity.

Our most cherished values cannot be defended by reason alone, or simply for their own sake. They have no self-sustaining or “internal” justification.

There is no inherently logical or utilitarian reason why society should respect the rights of the human person. There is even less reason for recognizing the rights of those whose lives impose burdens on others, as is the case with the child in the womb, the terminally ill, or the physically or mentally disabled.

If human rights do not come from God, then they devolve to the arbitrary conventions of men and women. The state exists to defend the rights of man and to promote his flourishing. The state can never be the source of those rights. When the state arrogates to itself that power, even a democracy can become totalitarian.

What is legalized abortion but a form of intimate violence that clothes itself in democracy? The will to power of the strong is given the force of law to kill the weak.»

Vaticano doa 1,2 milhões de euro para luta contra a SIDA

Devia ser bem sabido que a Igreja Católica, sobretudo pela voz do Papa e dos seus Bispos, tem carradas de razão ao afirmar a preponderância negativa do uso do preservativo, como potenciador de comportamentos promíscuos e de risco, na disseminação da SIDA.
Mas se é elementar justiça reconhecer que a Igreja está do lado da verdade nesta matéria, o papel da Igreja sai ainda mais reforçado pelo facto impressionante de que é a maior organização não lucrativa activa no terreno, ou seja, a prestar ajuda humana e material a quem dela precisa.

Por isso, notícias como estas, mais uma no meio de muitas, não devem ser silenciadas:

LUTA CONTRA AIDS: VATICANO DESTINA 1,2 MILHÃO DE EUROS

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Idiotas morais

Via Cláudio Anaia, a quem agradeço ter realçado a notícia, vim a saber deste novo disparate: Burla e fraude deixaram de ser crime.

À partida, a ideia até parece fazer algum sentido: se alguém rouba ou atenta contra o património de outrem, e depois ressarcir o lesado, o processo judicial não avança e o acto não é considerado crime. Dá-se uma negociação entre o gatuno e o lesado, e a coisa morre na praia.

Este "avanço" fantástico é defendido desta forma por Germano Marques da Silva, segundo a notícia, um "especialista em Direito Penal": «O Direito não tem um conteúdo nem moral nem ético. A sua função é resolver conflitos da sociedade».

Esta visão "utilitarista" do Direito está perfeitamente alinhada com as novas modas instauradas por alguns destacados filósofos morais contemporâneos, que procuram dissolver conceitos como "certo" e "errado", e cada vez instaurar de forma mais profunda o relativismo moral e ético.

Segundo pontifica o "especialista" Marques da Silva, o Direito "não tem um conteúdo nem moral nem ético". Ora, aqui o não especialista interroga-se: o Direito deixou de ter alguma coisa a ver com Justiça? Em que dia é que os "especialistas" decretaram a separação entre Direito e Justiça? Decidiram por voto?

É que o cidadão comum, aquele que não é especialista nem lecciona em Universidades, interroga-se, afinal de contas, acerca da relação que ele supunha existir entre Direito e Justiça. É que não há Justiça sem reparação do mal cometido. E, antigamente, quando as pessoas tinham cérebro, achava-se que a atribuição de uma pena por parte de um Tribunal era uma forma de a sociedade ser reparada pelo mal cometido pelo prevaricador.

Mas não: isso agora pertence ao passado. Segundo outro "especialista", desta feita Costa Andrade da Universidade de Coimbra: «Pode ser discutível desde o ponto de vista ético, mas esse é o futuro. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, tudo se negoceia».

Este "especialista" afirma que este tipo de decisão é "discutível do ponto de vista ético". A sério, professor? Quem diria?

Mas claro, cá vem a palhaçada do mito do progresso, pois se os especialistas dizem que certa nova moda jurídica é "o futuro", está tudo dito! O futuro é sempre risonho para estes novos visionários! Se a coisa já se faz nos "States" é porque está certo, pá!

Tudo isto é uma verdadeira miséria racional. É a destruição da razão, do intelecto, do bom senso, e um puro dinamitar da Justiça. A nossa sociedade está entregue a idiotas morais.

O nosso pragmatista prossegue, em defesa da ideia peregrina da não prisão dos prevaricadores: "alguém tem de ficar cá fora para trabalhar". Ah, bravo, senhor Professor! E porque não descriminalizar outros crimes, e resolver a chatice que é ter os violadores e os assassinos atrás de barras? Bela lógica, hã? E dão cadeiras a esta gente, para eles meterem estas burradas nas cabeças dos alunos. É a desgraça.

Ainda Marques da Silva: "o Direito só deve intervir para assegurar a paz". Mas há paz sem justiça, Professor? E ainda: «É fácil legislar e mandar toda a gente para a cadeia. Mais difícil é resolver os problemas sociais que são causa de criminalidade.» Belo sofisma: mas o que fica por explicar é de que forma é que dinamitando a Justiça, e acabando com o conceito de reparação que sempre esteve por detrás do Direito e da Justiça Penal, é que se vai atacar esses "problemas sociais".

Gente pateta. Problemas sociais? Mas a sociedade é um indivíduo? A criminalidade é um problema social, é certo, mas a culpa dessa criminalidade é da sociedade? A culpa é dos criminosos, cuja mole é responsável pela criminalidade. Isto é lógica, estúpido. E como se ataca a criminalidade? Atacando os criminosos, ora bolas. Metendo-os atrás de barras. Com o duplo e clássico efeito: proteger a sociedade dos patifes, isolando-os na cadeia, e fazendo-os retribuir à sociedade pelo mal cometido. Como? Pela pena de privação da liberdade, à qual se poderia e deveria sempre juntar o pagamento de coimas, ou na falta de recursos por parte do criminoso, na prestação de serviço obrigatório à sociedade.

Claro que, para bom observador, o que está por detrás destas modernices balofas é o puro pragmatismo de quem não quer organizar nem pagar o sistema penal e o estado de Direito. Emagrecer os tribunais e as prisões, reduzir as penas, reduzir os crimes, são tudo formas muito pragmáticas (e muito estúpidas) de desbloquear os tribunais e fechar as prisões. Pela mesma lógica, no combate aos incêndios em Portugal, deveria adoptar-se a política da terra queimada. É uma medida bem pragmática, e que garante, de certeza absoluta, que no futuro Portugal nunca mais haverá lenha para arder. Aplique-se isto à mole de patifes que cirandam pelas ruas: acabe-se com o conceito de crime e deixam de existir criminosos. Logo, deixam de existir prisões, e pode-se gastar o dinheiro noutras coisas mais importantes. Como por exemplo, comprar mais Magalhães e mais "magic boards" para as escolas, ou construir uma 4ª e uma 5ª travessias do Tejo, ou ainda construir um aeroporto no Poceirão.

Uma nota final, e sinistra: Marques da Silva é professor na Universidade Católica.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A influência da Maçonaria na IIIª República Portuguesa

Há vários textos a circular na Internet sobre a Maçonaria e o Portugal contemporâneo. Quase nenhum tem aspecto verosímil, e alguns arriscam mesmo vaticínios que são autênticas contradições.

Este texto é uma excepção e merece uma leitura mais atenta:

A influência da Maçonaria na IIIª República Portuguesa

O que me chamou a atenção foi a introdução, com detalhes de rigor histórico que demonstram que o autor (anónimo) tem conhecimento da História da Maçonaria.

Bach - Sonata Trio N.º VI (BWV 530)

sábado, 7 de agosto de 2010

Fideísmo e o Argumento Cosmológico

É frequente que os cristãos sejam acusados de serem fideístas, ou seja, de manterem a crença numa determinada ideia com base em argumentos exclusivos de autoridade, sem recurso à razão para análise intelectual dessa ideia.

Isto é espantoso, visto que a Igreja condenou várias vezes o fideísmo como heresia.

Mais especificamente, o Concílio Vaticano I afirmou de forma clara:

«O Deus verdadeiro e uno e Senhor pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, através das coisas que foram feitas [através da Criação]» (Constituição Dogmática De Fide Catholica, Sessão III, cân. i, De Revelatione)

Hoje em dia, podemos actualizar este ensinamento à luz dos actuais conhecimentos científicos, apresentando um argumento racional para a existência de Deus, como o famoso Argumento Cosmológico:

Existência de Deus: o Argumento Cosmológico
1.      Tudo o que começa a existir tem uma causa
o       Se coisas inexistentes surgissem sem uma causa, porque razão existiriam algumas coisas e não outras? Porque não existiria TUDO? (infinitos Universos: tese filosófica inacessível à Ciência);
o       Se coisas inexistentes surgissem sem uma causa, isso contrariaria TODA a nossa experiência enquanto seres humanos;
2.      O Universo começou a existir
o       Segundo o actual modelo cosmológico de expansão do Universo, a recta do tempo não se prolonga infinitamente para o passado (13,7 mil milhões de anos);
o       Mesmo assim, o Universo poderia ser eterno e ser contingente (São Tomás de Aquino, que deduzia o início temporal do Universo do livro do Génesis, e não da filosofia);
o       Mas o ateu não quer aceitar um Universo contingente (que implica uma causa necessária e transcendente): o ateu defende um Universo necessário: mas um Universo necessário é uma tontice: nesse caso, não poderia ter havido qualquer variação, mesmo microscópica, das variáveis fundamentais do Universo;
3.   Logo, o Universo tem uma causa (externa ao Universo e que causa a sua existência).

É, também, da argumentação racional anterior que podemos derivar as seguintes propriedades de Deus:


Propriedades de Deus (causa da existência do Universo)
1.      Necessidade: tem que ser não causada [1];
2.      Eternidade: tem que estar “fora” do tempo [2];
3.      Imaterialidade: tem que estar “fora” do espaço [3];
4.      Imutabilidade: tem que ser invariante e imutável [4];
5.      Omnipotência: é capaz de criar sem recorrer a causas materiais (potência infinita);
6.      Pessoalidade: tem que ser pessoal, ou seja, tem que ser um agente livre e dotado de vontade própria:
o       Não seria fácil deduzir isto se o Universo fosse eterno: uma causa eterna (Deus) poderia ter originado um efeito eterno (Universo) sem isso implicar necessariamente uma decisão livre e voluntária (sem implicar que a causa primeira fosse uma causa livre e dotada de vontade própria);
o       Se o Universo não é eterno, como se explica que uma causa eterna (Deus) possa ter originado um efeito não eterno (Universo)?
o       Só uma decisão livre e voluntária de um agente livre (Deus) pode explicar que um efeito não eterno decorra de uma causa eterna;
7.     Unidade: quer da propriedade de Necessidade, quer da propriedade de Omnipotência, decorre esta propriedade:
o       Se existissem duas causas necessárias e distintas para a existência do Universo, o desnecessário aumento de complexidade da tese exigiria nova explicação: qual a causa para existirem duas causas necessárias?
o       O conceito de um ser de potência infinita só é coerente com a unidade desse ser; a frase “dois seres de potência infinita” reflecte uma contradição nos próprios termos da frase: se são dois seres omnipotentes, então é porque nenhum deles tem potência infinita, pois a potência de um ser terá que estar limitada, necessariamente, pela do outro.


[1] Eventuais causas “finitas” (contingentes) do Universo fariam parte do próprio Universo.
[2] O tempo e o espaço são estruturais ao próprio Universo, e decorrem das suas leis intrínsecas.
[3] Idem: Deus não pode ser nem matéria nem energia.
[4] A variância e a mudança implicam algum tipo de temporalidade, ou seja, um “antes” e um “depois” da mudança.

Resposta à Leonor

Por comodidade, decidi responder desta forma a um comentário da Leonor no meu último "post", pois as caixas de comentário não são adequadas a respostas extensas.

«Tenho algumas dúvidas quanto aquilo que argumentas e até mesmo naquilo que acreditas. Até porque noutras ocasiões demonstras que não és um criacionista. Fico algo confusa...»

Em caso de dúvida, é bastante seguro ver-me como um cristão. Não como um cristão herege como os que tenho criticado, mas sim como um cristão que segue a tradição cristã da Igreja Católica. Importa recordar que "heresia" significa, literalmente, "escolha". Os primeiros hereges eram assim chamados porque eles "escolhiam" uma fé diferente da recebida. A oposição, então, é entre a heresia (a "escolha" de uma doutrina pessoal) e a tradição (a profissão de uma doutrina "recebida").

Hoje em dia, os "media" adoram os cristãos hereges, e dão-lhes ampla plataforma de expressão. Para além disso, quando se trata de clero herege, os superiores hierárquicos desses cristãos hereges acham que seria anti-moderno criticar os seus subordinados. E então, as consequências notórias da exposição mediática destes hereges são:

1) a confusão para os não cristãos, que ficam sem perceber, afinal de contas, o que é o cristianismo, pois assistem a relatos contraditórios: o cristão coerente diz que há Diabo, o cristão herege diz que não, o cristão coerente diz que Cristo está presente na Eucaristia, o cristão herege diz que não, o cristão coerente diz que temos que confessar os pecados e procurar a salvação, evitando a condenação, e o cristão herege diz que não há Inferno e que o conceito de pecado está ultrapassado, e assim por diante

2) a confusão para muitos cristãos menos informados ou com menos formação cristã, que perante a ausência de contraditório por parte dos superiores destes padres e teólogos hereges, julgam que eles falam com verdade e autoridade

É então perfeitamente natural que estejas confusa. É-te certamente muito difícil compreender o cristianismo, pois o que vês dele está distorcido pela comunicação social e por uma assimétrica concessão de tempo de antena a dissidentes do cristianismo. Hoje em dia, a única forma de se ter contacto real com o cristianismo é mesmo a do convívio pessoal com cristãos de fé coerente e prática religiosa consistente.

Agora a tua questão... A expressão "criacionista" tornou-se demasiado vaga, pois diferentes sistemas de ideias reivindicam-na. Para simplificar, diria que há dois tipos de criacionismo:

a) o que considera Deus como Criador do Universo, e de todas as coisas visíveis e invisíveis, mas não necessariamente como o criador imediato de todos os seres; quem pensa assim, considera que Deus pode muito bem ter criado um Cosmos com leis próprias e dinamismos próprios, que conduzem ao surgimento da vida pelas chamadas "causas segundas": a expressão "causa segunda" vem da escolástica, e designa as coisas que surgiram, não por causa imediata de Deus, mas sim por causas indirectas

b) o que, para além de considerar Deus como Criador do Universo, e de todas as coisas visíveis e invisíveis, diz ainda que Deus é o criador imediato e directo de todos os seres; necessariamente, este tipo de criacionismo rejeita a teoria científica do darwinismo; nota que eu escrevi "teoria científica do darwinismo", pois o darwinismo é uma categoria vasta que hoje em dia abrange muito mais do que a teoria científica original (entretanto, surgiu o darwinismo como filosofia materialista, o darwinismo social e cultural, etc.); este tipo de criacionismo é muito popular entre protestantes, mas nem todos os protestantes são criacionistas neste sentido, e haverá certamente alguns católicos que também se revêem neste tipo de criacionismo, sobretudo quando têm sérias dúvidas acerca do darwinismo científico

Qual é a minha posição? Sendo católico, tendo para um criacionismo de tipo a). Porque escrevi "tendo"? Porque ainda não existem dados científicos suficientes sobre a questão do surgimento da vida para que ela possa ser encerrada. Porque prefiro o tipo a)? Por uma razão simples: o conceito de liberdade criatural é intrínseco à teologia católica, e com a Escolástica, amadurecemos muito a compreensão intelectual do conceito de causa e efeito, necessária para a distinção entre causas primeiras e causas segundas: ora, estas causas segundas têm muito a ver com a liberdade intrínseca da Criação, com a noção muito católica de que Deus não é um "mestre de fantoches" a puxar os cordelinhos, manipulando a Criação como se esta fosse uma marioneta.

Para além disto, o católico é um entusiasta natural pela Ciência, o que levou a que muitos católicos se destacassem como cientistas brilhantes e tivessem inaugurado a ciência moderna. Do lado protestante, um literalismo bíblico desligado da Tradição levou, muitas vezes, a um desprezo pela Ciência. Hoje em dia, vejo que há mais do que razões para se dar crédito à teoria científica da evolução das espécies, e por isso, não sou anti-darwinista. Mas mantenho um espírito aberto acerca desta questão, pois o surgimento da primeira forma de vida está ainda por explicar, além de que o surgimento de uma espécie nova nunca foi reproduzido ou testado (uma boa razão pode ser porque tal fenómeno demora muito tempo, tempo demais para ser observado por seres humanos).

Em suma: com os dados da Ciência moderna, constato que o Universo está "afinado", e que esta afinação faz do nosso Universo uma realidade muito especial. Essa "afinação", para o cristão, resulta da vontade livre de Deus, que quis fazer o Universo deste modo. Por isso, se o nosso Cosmos está estruturado de tal forma que nele acaba por surgir vida, e vida inteligente, isso só abona em favor da inteligência do Criador. Se o Criador decidiu fazer um Universo dotado das leis e dinâmicas internas necessárias e suficientes para delas surgir vida, e vida inteligente, então posso ser um criacionista de tipo a) sem problemas nenhuns, pois o meu criacionismo, para além de consistente, é compatível com os dados da ciência e respeita a já colossal recolha de argumentos científicos a favor da teoria científica de Darwin.

No entanto, é igualmente lógica a tese (em tempos largamente aceite por todos os cristãos) de que Deus teria criado individualmente cada espécie. Aqui importa fazer outra distinção, separando a categoria b) em duas sub-categorias:

b1) Deus teria criado individualmente e instantaneamente cada espécie a partir do nada, ou seja, as espécies teriam surgido instantânea e imediatamente, sem que Deus recorresse a matéria já existente

b2) Deus teria criado individualmente e instantaneamente cada espécie a partir de material orgânico ou inorgânico pré-existente

Repito que ambas estas teses, a b1) e a b2), têm coerência interna, ou seja, são lógicas. No entanto, ambas são muito difíceis de compatibilizar com os dados científicos do darwinismo. Insisto que a minha posição é a do criacionista de tipo a), mas se eu tivesse que optar entre uma das formas b) que apresentei, preferiria a b2), pois não vejo porque razão não poderia Deus aproveitar partes do já criado para criar algo novo.

À laia de síntese, o criacionista de tipo a), categoria na qual me revejo, é sempre um criacionista, conquanto afirma que Deus é a fonte primeira e última da existência de tudo. No entanto, Deus pode ter criado um Cosmos que, por sua vez, teria as condições e os dinamismos necessários para fazer surgir vida por "causas segundas", sem intervenção directa e imediata de Deus no surgimento dessa vida.

E a Bíblia?
Necessariamente, como Cristão, vejo a Bíblia como livro de salvação, contendo sobretudo verdades doutrinais e morais. Contém ainda outras verdades menores, face ao desígnio do livro, mas que são todavia verdades presentes: verdades históricas e factuais.

O Génesis apresenta um relato da Criação. É um relato figurado, no sentido em que recorre a imagens simples, mas ao mesmo tempo muito belas, que descreve verdades objectivas e concretas.

Aceito o Génesis, e toda a Bíblia, como uma obra isenta de erro, no sentido em que nenhum leitor, entrosado na tradição cristã de leitura bíblica, vai ser induzido em erro ao lê-la. Como qualquer obra escrita, a Bíblia necessita de uma correcta leitura. Essa leitura é feita dentro da Igreja, por via da Tradição. A leitura correcta da Bíblia é a que é feita à luz do que Cristo nos revelou. Para os judeus, a leitura correcta da Bíblia é a que é feita à luz da revelação feita por Iavé aos profetas e ao povo de Israel. Nesse sentido, o Antigo Testamento é o testemunho de um povo à procura de Deus e de Deus à procura de um povo em concreto, para fazer dele "local" de surgimento do Salvador. Com o Novo Testamento, Cristo fecha e completa (não destrói nem anula) o Antigo Testamento. Cristo é a "chave dos Profetas", pois a Sua vida dá uma leitura final e definitiva a todos os anseios do Antigo Testamento. Através de Cristo, Deus dá-Se a conhecer, finalmente, ao seu Povo. E a mensagem é surpreendente: Cristo vem morrer para nos redimir dos nossos pecados, e vem para que levemos a Boa Nova da sua vitória sobre a morte a todos os cantos da Terra. Com o Novo Testamento, a mensagem de salvação sai do campo de Israel e torna-se universal.

A presença de imagens, figuras, parábolas e metáforas não implica falsidade, erro ou mentira.
Por exemplo, quando um índio Sioux ou Cherokee se referia a um comboio que tinha passado na planície como sendo um "cavalo de ferro", ele não estava a mentir. Com grande probablidade, o comboio teria mesmo passado à frente dos seus olhos. O índio estava a usar a linguagem e os símbolos ao seu dispor para relatar o que tinha presenciado.
É assim o Génesis: a verdade chega ao escriba vinda de Deus. É o Espírito Santo que inspira o escriba do Génesis a escrever. O escriba não recebe um texto inteiro, estilo ditado. Essa é a tese o Islão, que vê o Corão como texto ditado palavra a palavra a Maomé. O escriba do Antigo Testamento, o escriba do Novo Testamento, recebe ideias no seu intelecto, ideias essas que vêm de Deus. Mas escreve-as com os símbolos e as imagens do próprio escriba. Quando o autor do livro do Génesis escreve que Adão e Eva comeram da maçã da árvore do Bem e do Mal, nenhum leitor erudito da Bíblia pensou que se tratava necessariamente de um fruto físico. A leitura que sempre se fez era no sentido de que Adão e Eva tinham usado da sua liberdade para transgredir a Lei de Deus. E dessa forma, tinham pela primeira vez optado pelo Mal. A serpente simboliza o pai da mentira, o Diabo, ser que já existia antes do Homem, e que sugeriu ao primeiro casal que se autonomizassem de Deus.

Outra nota importante, relativa a uma confusão que os novos ateístas teimam em fazer. Quando o povo hebreu atribui certa vitória militar sobre os seus inimigos à acção de Deus, não temos Deus a concordar com essa leitura. A batalha militar será factual, e a vitória também, mas que sabemos nós acerca da "participação" de Deus nessa vitória? É o povo de Israel que faz essa leitura, mas não temos que aceitar essa leitura como sendo a de Deus. Dizer isto não é dizer que a Bíblia erra, pois todo o cristão (e todo o judeu) sabe que Deus não ditou a Bíblia, e que esta foi escrita por escribas humanos. Ao mesmo tempo, o testemunho de que Israel leu este ou aquele episódio histórico desta ou daquela maneira, é um testemunho vivo da procura de Deus por parte desse povo. Outra coisa óbvia: se determinada figura bíblica comete um crime (algo frequente!), é evidente que não se deve ler o texto no sentido de concordar com esse crime. Esses relatos são abundantes, contendo o ensinamento de que, após a Queda, o ser humano tem uma tendência não inata, mas adquirida com a Queda, para a asneira, e que esse caminho da asneira é o caminho oposto ao que nos leva a Deus.

Assim, o cristão fala do Génesis como o livro que relata, entre outras coisas, as verdades fundamentais de Deus Criador do Universo, da Tentação pelo Diabo, e da Queda do primeiro casal. Eu aceito necessariamente tudo isso como verdades, enquanto posso reconhecer que as palavras que são usadas constituem imagens que ajudam a aceder à verdade: a serpente, a maçã, a árvore, etc.; já Santo Agostinho, na sua obra "De Genesi ad litteram", dizia que a Criação não teria, necessariamente, que ter durado seis dias em sentido literal, ou seja, seis dias de 24 horas. No entanto, é correcta leitura do Génesis ler o texto da Criação como relatando uma sequência verdadeira e real: trevas iniciais, surgimento da luz, etc. Se notares bem, não é muito complicado (apesar de ser arriscado e ainda incerto, à luz do conhecimento actual) ver aqui vislumbres do "fiat lux" que representa o Big Bang. O relato do Génesis é gradual: primeiro, surgem as condições para a vida, e depois surge a vida. Tudo isto é lógico e faz sentido à luz do conhecimento actual.

Na visão cristã das coisas, entram sempre duas regras de ouro:

a) respeitar a tradição recebida de Cristo

b) respeitar a razão e as verdades seguras que fomos descobrindo por via racional

«Ao ler este teu post tenho a sensação que tomas o relato bíblico como real quando afirmas que Deus criou o universo, o mundo, os anjos, o Homem, etc. Ou seja, em parte alguma do teu discurso dizes que o relato da criação é uma interpretação do universo de uns quantos homens que viveram há uns bons milhares de anos atrás.»

Tens toda a razão. Eu tomo como real que Deus criou o Universo, os anjos, o Homem, etc., Mas espero ter deixado claro que há muitas nuances na palavra "criou"...

«E desculpa a minha ignorância... Como é que tu sabes? Se não for através da interpretação que homens fazem das palavras de outros homens, como é que tu podes saber?»

Toda a solidez da minha posição advém, como referi, de confiar no que a Igreja me ensina, e confiar na razão e nas certezas do meu intelecto racional. Aqui há uma hierarquia: eu creio primeiro para entender depois ("credo ut intelligam"), e não ao contrário. Também isso é a prática humana de sempre. Quando estamos na aula, acreditamos no professor antes de entendermos. Quando o nosso pai nos ensina a nadar, acreditamos primeiro nele antes de sabermos nadar. E assim por diante. Claro que podes perguntar-me: "mas como sabes tu que a Igreja ensina o que Cristo ensinou?". Aqui podemos avançar muito, e mesmo muito, com o estudo dos dados históricos, com a leitura do próprio Novo Testamento, e com a sua análise histórica e historiográfica. Com a leitura da Didaché e de outros textos em uso pelos primeiros cristãos. Com a leitura da patrologia, ou seja, dos textos dos Padres da Igreja, escritos durante os primeiros séculos de cristianismo. A doutrina cristã, quando estudada com rigor, apresenta-se completa e consistente, na sua essência, desde os primórdios do Cristianismo.

«O ser humano tem errado ao longo de toda a sua existência. Ou afirmas que os homens que escreveram, compilaram e editaram a Bíblia, não erram, ou afirmas que o texto foi escrito pela própria mão de Deus...»

O ser humano erra. Mas erra muito menos quando tenta seguir a Palavra de Deus. Logo no primeiro século de cristianismo, tens centenas e milhares de pessoas a preferirem serem mortas para não serem obrigadas a renegar a verdade da ressurreição de Cristo. Seriam loucos? Vítimas de alucinação? Conheces muitos casos de grupos organizados de pessoas que preferem serem mortos por teimarem numa ideia?

Em três séculos, essa religião de mulheres e de escravos tomou conta do Império Romano. Isso não te diz nada? Cristo disse que conheceríamos a qualidade da árvore pela qualidade dos frutos. O cristianismo inaugurou uma nova era de direitos humanos, de cultura, de ciência, de justiça. Trouxe o conceito totalmente inovador e revolucionário de caridade. Isso não vale nada? Isso não poderá indicar a origem sobrenatural da ideia cristã?

Hoje achamos banal, a ideia. Mas ela é espantosa: o próprio Deus faz-Se Homem, deixa-Se matar às nossas mãos, e tudo porque nos ama? E tudo para resgatar-nos do nosso pecado? E tudo para nos lançar numa vida nova?

Nenhuma outra religião coloca Deus no teatro humano como faz o cristianismo. Cristo não é um "avatar" como os hindus, que acham que a divindade, de vez em quando, assume uma forma humana. A teologia cristã não é uma teologia de divindades que, de tempos a tempos, visitam um corpo humano. A teologia cristã diz que Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. As regras da lógica levam-nos a ver aqui um vislumbre positivo em matéria de direitos humanos: afinal o homem até deve valer qualquer coisinha... Daqui até compreendermos a paixão cristã pela vida humana, vai um salto pequeno.

«Quando conferes autoridade absoluta aquilo que é descrito pelos autores do Novo Testamento, será que esqueces que não temos as palavras de Jesus, nem sequer dos seus discípulos directos?»

É claro que temos, Leonor. Não há consistência científica nenhuma na tese que defende que o Novo Testamento é fantasioso. O Novo Testamento tem, todo ele, uma estrutura factual e cronológica. Os Actos dos Apóstolos relatam, em primeira mão, acontecimentos presenciados pelo autor do livro. As cartas de São Paulo foram escritas pelo próprio, e enviadas a outros para serem lidas. Os autores dos Evangelhos não foram todos apóstolos directos de Cristo (João e Mateus sim, mas Marcos e Lucas não). Mas São Marcos viveu lado a lado com São Pedro durante tempo suficiente para absorver tudo dele. E São Lucas, médico companheiro de viagem de São Paulo, percorreu a viagem cristã por excelência: a missionação do Apóstolo dos Gentios, São Paulo.

«O que queres dizer, é que a Igreja, ou a tradição da Igreja diz que é assim e ponto final.»

Já terei referido que a crença em noções teológicas com base exclusiva em argumentos de autoridade é uma heresia, chamada "fideísmo". A tua frase, na sua essência, surge condenada pela própria Igreja como sendo herética. Obras imponentes como a Suma Teológica de São Tomás de Aquino são exemplos do fascínio cristão pela argumentação racional, contra posições fideístas, consideradas erradas, pelo desprezo pela razão como fonte de aferição intelectual.

Se fosse como dizes, eu teria que dizer coisas refutadas pela ciência ou pela história. Onde estão essas refutações?
Se fosse como dizes, não haveria consistência histórica no Novo Testamento. Mas há! Que pensar então disso?

Um abraço!

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Os exegetas amigos do Diabo

O padre Anselmo Borges diz-nos que o Diabo não está no Credo.

Só este título já é um sintoma. Um sintoma de que Anselmo Borges julga que a última instância em matéria de doutrina é o Credo. Ora nenhum católico diz semelhante asneira. A última instância em matéria de doutrina é o Magistério.

O Diabo pode não estar no Credo, mas está no Pai Nosso, a oração que Nosso Senhor nos ensinou, e que termina assim: "Mas livrai-nos do Mal". A oração do Pai Nosso surge no Evangelho de São Mateus. Segundo a tradição, este evangelho foi escrito inicialmente em aramaico, o chamado "Evangelho dos Hebreus", um documento que não deixou rasto. O texto de Mateus chega-nos ao presente em grego, e no texto grego de Mateus 6, vs. 9-13 temos a oração do Pai Nosso, que termina assim: "ἀπὸ τοῦ πονηροῦ" (literalmente, "de o Mal", ou "do Mal").

De forma consistente, a Vulgata traduziu a petição final para "sed libera nos a Malo". A tradição cristã sempre interpretou esta petição do Pai Nosso como sendo, ao mesmo tempo, uma petição pela libertação dos males que afligem e tentam o Homem, mas também uma petição pela libertação do Maligno, ou seja, do Diabo.

Diz Anselmo Borges, referindo-se ao exorcista espanhol, Padre Fortea, que veio recentemente a Portugal falar sobre a edição da sua valiosa "Summa Daemonologica":

«Para ele, os demónios são "seres espirituais de natureza angélica condenados eternamente"»

Anselmo Borges insere a fatal expressão "para ele", como se o Padre Fortea estivesse, nesta citação, a emitir uma opinião pessoal. Ao que parece, também é a "opinião" de Joseph Ratzinger, quando este liderava a Congregação para a Doutrina da Fé, o órgão máximo, logo a seguir ao Papa, em matéria de doutrina e de moral:

«3. Por fim, pelas mesmas razões, os srs. Bispos são solicitados a que vigiem para que - mesmo nos casos que pareçam revelar algum influxo do diabo, com exclusão da autêntica possessão diabólica - pessoas não devidamente autorizadas não orientem reuniões nas quais se façam orações para obter a expulsão do demônio, orações que diretamente interpelem os demônios ou manifestem o anseio de conhecer a identidade dos mesmos.

A formulação destas normas de modo nenhum deve dissuadir os fiéis de rezar para que, como Jesus nos ensinou, sejam livres do mal (cf. Mt 6,13). Além disso, os Pastores poderão valer-se desta oportunidade para lembrar o que a Tradição da Igreja ensina a rrespeito da função própria dos Sacramentos e a propósito da intercessão da Bem-Aventurada Virgem Maria, dos Anjos e dos Santos na luta espiritual dos cristãos contra os espíritos malignos.»


Ratzinger assina esta Instrução sobre o exorcismo, de 24 de Setembro de 1985, na qualidade de Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Terá Ratzinger perdido o juízo para falar desta maneira desse Diabo que, segundo Anselmo Borges, é apenas simbólico?

Anselmo Borges, que já nos tem habituado às suas posições heréticas, cita o Padre Carreira das Neves, que por sua vez, "massacra" o Padre Fortea, cujas únicas culpas parecem ser as da sua fidelidade a Cristo e ao Magistério (que são dois tipos equivalentes de fidelidade), e a do auxílio valioso que o Padre Fortea presta enquanto exorcista. Mas para o Padre Carreira das Neves, o "pecado" do Padre Fortea é este:

«Quem não poupou críticas foi o eminente exegeta padre J. Carreira da Neves, apresentador do livro, confessando mesmo a António Marujo: "Se tivesse lido o livro antes de aceitar o convite, não o teria feito." "A fundamentação bíblica é fortuita, muito pobre, até porque o autor não é exegeta."»

Ora cá esta: o Padre Fortea não é exegeta. Logo, os cristãos têm que deixar de seguir o Magistério da Igreja, pois em matéria de Bíblia, quem tem autoridade para ensinar é o exegeta! Grande treta, Padre Carreira das Neves! Eis o que diz o Catecismo sobre a Queda:

«391. Por detrás da opção de desobediência dos nossos primeiros pais, há uma voz sedutora, oposta a Deus (266), a qual, por inveja, os faz cair na morte (267). A Escritura e a Tradição da Igreja vêem neste ser um anjo decaído, chamado Satanás ou Diabo (268). Segundo o ensinamento da Igreja, ele foi primeiro um anjo bom, criado por Deus. «Diabolus enim et alii daemones a Deo quidem natura creati sunt boni, sed ipsi per se facti sunt mali – De facto, o Diabo e os outros demónios foram por Deus criados naturalmente bons; mas eles, por si, é que se fizeram maus» (269).» - Catecismo da Igreja Católica, Primeira Parte, Segunda Secção, Capítulo Primeiro.

Com a sua escrita redondinha, o Padre Anselmo Borges julga poder esquivar-se à justificação das suas afirmações. A primeira pergunta que qualquer católico lhe deve fazer, a ele e ao Padre Carreira das Neves, "eminente exegeta", é a incómoda pergunta do homem e da mulher comuns: "Então e o Catecismo? Estará errado?". Ou outra pergunta incómoda: "E o Santo Padre? Não acredita ele na realidade do Diabo?". E outras perguntas incómodas: "E então porque é que todos os Padres da Igreja, desde os primórdios, acreditam e defendem a existência do Diabo?". Será por não serem "eminentes exegetas"?

Mas Anselmo Borges puxa de mais uma "arma" supostamente académica:

«Já na década de 60 do século passado, um dos maiores exegetas católicos, professor da Universidade de Tubinga, Herbert Haag, escreveu uma obra justamente célebre Abscied vom Teufel (Adeus ao diabo), mostrando que não há qualquer fundamento para a crença no demónio.»

Para além do fascínio pelos superlativos elogiosos ("um dos maiores exegetas católicos"), que vincam insistentemente a ideia de que só é grande exegeta e grande teólogo aquele que rejeita a tradição cristã, o que choca é a aparente contradição, que Anselmo Borges não resolve: Ratzinger andou por Tubinga! Não terá lido ele a magnífica obra de Haag? Não terá o actual Papa compreendido a refutação definitiva do eminente Haag? Ah, é que se calhar o actual Papa não é exegeta... Nem Paulo VI, que referiu o Diabo de forma eloquente, nem João Paulo II, que fez exorcismos, nem todos os Papas da História da Igreja... Não eram exegetas!

«Por que é que Deus não acabou com o diabo?»

É a dúvida do Padre Anselmo Borges. Este tipo de dúvidas infantis são inexplicáveis. Não saberá Anselmo Borges que Deus não destrói criaturas? Que Deus não destrói a liberdade da criatura? Que Deus permite ao Diabo que este faça o mal para que Deus possa ser coerente com o seu desejo de criar criaturas livres?

Isto é teologia básica. E o livro do Padre Fortea, ainda por cima escrito sob a forma de perguntas e respostas, dá precisamente resposta às dúvidas do Padre Anselmo Borges.

E permitam-me mais uma estupefacção. Terá Anselmo Borges lido o livro do Padre Fortea? Não era mais justo e mais honesto citar o dito do livro e procurar refutá-lo? Se as respostas do Padre Fortea, que recorde-se, não é um exegeta, estão supostamente erradas, porque não as tenta refutar o académico Anselmo Borges? Porque não refuta o eminente Padre Carreira das Neves a obra desse pobre exorcista não exegeta que é o Padre Fortea?

«E há uma outra pergunta: Quem tentou os anjos, para que eles, de bons, se transformassem em demónios? Colocar o diabo ao lado de Deus, no quadro de um dualismo maniqueu, é uma contradição. O diabo não explica nada. O mal é inevitável por causa da finitude.»

Os anjos seguiram o mal porque foram livres de o fazer. O mal nasce da liberdade.
O que quererá dizer Anselmo Borges com a expressão "o mal não é inevitável por causa da finitude"? Que raio quer isso dizer?

Anselmo Borges é que não explica nada. A doutrina cristã diz que o mal resulta da acção livre de certos anjos que se rebelaram contra Deus. Não há ponta de dualismo maniqueu, e Anselmo Borges sabe bem a diferença, mas brinca com os seus leitores menos instruídos. No dualismo maniqueu, há dois princípios divinos, o Bem e o Mal. No cristianismo, Satã é uma criatura, finita e não divina. Onde está o maniqueísmo?

A explicação cristã para o surgimento do Mal sempre foi a mesma: a Queda de Satanás. O Pecado Original. A Queda do Homem. Esta explicação também é boa para explicar porque incarnou Deus em Jesus Cristo. Sem Queda, a Incarnação não faz sentido.

«É verdade que nos Evangelhos Jesus aparece a expulsar os demónios», diz Anselmo Borges.

Ah, pois é!

«Certamente participou da crença do seu tempo, que atribuía as doenças ao demónio.»

Um teólogo que se diz católico e que abandonou a crença na divindade de Cristo é uma coisa deplorável. É de se bradar aos céus! Então Cristo, Deus, Filho de Deus, engana-se no diagnóstico? Cristo engana-se, tentando exorcisar pessoas que estavam apenas psiquicamente doentes?

Depois, há a falácia: e uma pessoa não pode estar, ao mesmo tempo, possessa, ou sob influência demoníaca, e também a padecer de uma doença psicológica? Porque razão será que Anselmo Borges não respeita as regras da argumentação?

«Hoje sabemos que se tratava de pessoas com ataques epilépticos ou sofrendo de histeria, de doenças do foro psiquiátrico.»

Sabemos, sabemos. Olhámos para o passado, com a nossa máquina do tempo, e vimos. É que nós somos "exegetas modernos". Só não somos é cristãos, mas somos "exegetas modernos".

«E não se pode esquecer a linguagem simbólica.»

Anátema para aquele que se esquecer da linguagem simbólica!

Contra tudo e contra todos, Anselmo Borges proclama o impossível: «O diabo não faz parte do Credo cristão». Espantoso! Ele está a lutar contra toda a tradição cristã. Não seria mais fácil abandonar a tradição cristã de vez?

«O diabo não pode ser apresentado como concorrente de Deus, uma espécie de Anti-Deus, nem faz sentido pensar que ele se mete nas pessoas, para tomar conta delas. Não há possessos demoníacos, mas apenas doenças e doentes de muitas espécies, que é preciso ajudar.»

Mas será que ele leu os testemunhos de exorcistas como Fortea ou Amorth? Serão mentirosos, esses exorcistas?

Padre Anselmo Borges: os seus textos, salvo rara excepção, são exercícios perversos de destruição da ortodoxia cristã. Perversão involuntária? Quem sou eu para julgar os seus motivos: se calhar, escreve os erros que escreve com a melhor das intenções, mas permita-me: de boas intenções está o Inferno cheio, esse Inferno que o senhor julga ser também ele figurativo.

Os seus textos confundem os fiéis, são actos de desafio ao Magistério, são actos de insensata rebelião intelectual, são actos de desobediência, e finalmente, talvez o que mais me aflija, são actos irracionais, pois as suas posições não tem qualquer consistência intelectual. Um cristão incoerente já está errado, pois a incoerência é sinal infalível de erro. Se o que é coerente pode ser ou não verdadeiro (a coerência é condição necessária para a verdade), já o que é incoerente é sempre falso (a incoerência é condição suficiente para a falsidade).

Explique, por favor, a mim que sou simples crente, e que não tenho a sorte de ser bafejado pela gnose do exegeta, porque é que a Igreja me tem ensinado tudo mal? Tenho sido enganado pela Igreja? Não disse Cristo que a Igreja não sucumbiria? Cristo enganou-se? Outra vez? Ah, é que Cristo não é... exegeta!