domingo, 3 de janeiro de 2021

Gnadentod

Este texto vem a propósito da "legalização" da eutanásia, algo que será feito em breve por iniciativa de "católicos" como Pureza e com o beneplácito provável de "católicos" como Marcelo. Algo que será feito à bruta e pela calada, apesar do esmagador repúdio dos juristas, dos constitucionalistas e, mais importante, dos profissionais de saúde. Algo que será feito enquanto o povo se distrai a contar os mortos Covid-19, iludidos pelos "media" supervisionados pelo Estado.
É mais fácil fazer passar uma lei iníqua se primeiro se fizer a adequada conversão de um vocábulo com conotação negativa para o respectivo vocábulo na novilígua, substituindo-o por um vocábulo doce e amanteigado.
Por isso, os defensores do aborto (que consiste na morte de seres humanos por nascer) sempre exibem com orgulho o vocábulo em novilinguês "IVG", ou "Interrupção voluntária da gravidez". Note-se que a palavra "interrupção" é uma fuga lexical, para evitar conjurar imagens inerentes ao acto de matar. "Interromper" já não será matar. Por outro lado, "voluntária" é uma palavra útil para vincar a liberdade absoluta de quem decide. Foi assim, entre outras tácticas, que se edulcorou uma população anestesiada para a fazer aceitar essa coisa hedionda chamada aborto, um crime condenado pela esmagadora maioria dos nossos antepassados.
Estes estratagemas não são de agora, como dizia.
Vale a pena recordar, em vésperas de mais uma imoralidade legislativa, como Adolf Hitler (esse humanista) também usava os eufemismos de forma eficaz e elegante.
Com este documento, Hitler "legaliza" a eutanásia, a doce morte:
“BERLIM, 1 de Setembro de 1939
O reichsleiter Bouhler e o Dr. Brandt são responsáveis por expandir os poderes dos médicos, a serem determinados pelo nome, para que, de acordo com o julgamento humano, pacientes incuráveis ​​possam receber morte graciosa se sua condição for avaliada criticamente. - A. Hitler"

 

Veja-se a elegância:

- "expandir os poderes dos médicos": desta forma, faz-se a violência lógica de enquadrar o homicídio na esfera de Hipócrates, na esfera dos actos e dos poderes médicos, conseguindo-se ocultar a contradição inerente: matar passa a ser um acto médico

- "de acordo com o julgamento humano", "avaliada criticamente": linguagem escolhida para dar um ar científico e racional ao crime

- "morte graciosa": esta é a minha expressão preferida; quanta elegância no original alemão "Gnadentod": o vocábulo "gnade" remete para "ajuda", "misericórdia", "graça", "clemência"

Tenho a certeza de que a lei a ser carimbada em breve por Marcelo não será escrita de forma tão elegante, mas mais ao estilo burocrático dos analfabetos que escrevem as nossas leis.

Mas lá encontraremos certamente vocábulos que, ao bom estilo hitleriano, vão remeter para uma tentativa de legitimar o homicídio dos doentes e dos idosos como sendo um acto médico, muito sério e científico, e feito com a melhor das compaixões e misericórdias pelo doente e pelo idoso. Afinal, somos governados por humanistas ou não? Não é humanista aceitar que uma pessoa gravemente doente ou muito idosa é uma vida indigna de ser vivida (ou como diziam os nazis, "Lebensunwertes Leben")?

PS: Original em alemão:

„BERLIN, DEN 01. Sept. 1939
Reichsleiter Bouhler und Dr. med. Brandt sind unter Verantwortung beauftragt, die Befugnisse namentlich zu bestimmender Ärzte so zu erweitern, dass nach menschlichem Ermessen unheilbar Kranken bei kritischster Beurteilung ihres Krankheitszustandes der Gnadentod gewährt werden kann. -- A. Hitler“

domingo, 14 de abril de 2019

Conferência NEC: " Progresso da Ciência - O fim da Fé?" (Parte II)


Parte II - Notas sobre Curas em Lourdes



As aparições a Bernardette Soubirous (1844-1879) decorreram entre 11 de Fevereiro e 16 de Julho de 1858, em Lourdes, nos Pirinéus franceses, quando Bernardette tinha 14 anos.

Uma pequena amostra da sua personalidade:
  • Quando o Padre Corbin lhe perguntou: “O que dirias se o Bispo de Tarbes julgasse que estavas enganada?”, ela respondeu: “Eu nunca seria capaz de dizer que não não vi [o que vi] e que não ouvi [o que ouvi].”
  • Quando um intelectual a pressionou com dúvidas acerca das visões, Bernardette respondeu: “É meu dever falar-lhe delas, [mas] não é o meu dever fazê-lo acreditar nelas.” 
  • Extremamente humilde: Bernardette não chegou a assistir à consagração da Basílica de Lourdes  em 1876, pois seguiu a vida religiosa junto com as Irmãs da Caridade em Nevers; a dada altura da sua vida religiosa, comentou desta forma as aparições da qual ela foi a protagonista: “A Virgem usou-me como uma vassoura para varrer o pó. Quando o trabalho está terminado, a vassoura é colocada de novo atrás da porta”
  • Morreu aos 35 anos de tuberculose
Primeiros relatos de curas surgem logo em 1858.
Primeiros atestados médicos em 1873.
Médicos-residentes em Lourdes:
  • G. F. Dunod de Saint-Maclou, 1883–91
  • Gustave Boissarie, 1891–1917 (assistido por Pierre Cox)
  • Edouard Le Bec (1919–23)
  • A. Marchand e M. Petitpierre
  • Auguste Vallet (1927 a 1947)

O Bureau Médico de Lourdes terá registado entre 1858 e 1976 uma estimativa de 4.516 curas.

Apenas 68 curas foram reconhecidas como milagres pela Igreja Católica (1,5% das curas):
  • 7 milagres em 1862
  • 33 milagres entre 1907 e 1913
  • 22 milagres entre 1946 e 1965
  • 5 milagres entre 1976 e 2005

A cura de Maire Bailly

A cura de Marie Bailly não faz parte da lista de curas milagrosas reconhecidas pela Igreja Católica, mas é interessante na medida em que foi atestada por um médico muito famoso.


Testemunha principal: o médico francês Alexis Carrel (1873-1944), que recebeu o Prémio Nobel da Medicina em 1912 pelo seu trabalho pioneiro em técnicas de sutura vascular e no transplante de vasos sanguíneos e órgãos.

Acompanhou e documentou o processo de cura de Marie-Louise Bailly (23 anos), quando esta estava num estado terminal de peritonite tuberculosa. 

Marie nasceu a 29 de Janeiro de 1879, em Lyon. Os seus pais morreram ambos por volta dos 50 anos com tuberculose pulmonar. Um dos seus irmãos morreu também de tuberculose. Marie contraiu tuberculose pulmonar em 1898, com apenas 9 anos de idade. A situação evoluiu para meningite tuberculosa. Quando estava às portas da morte, ter-lhe-á sido aplicada água de Lourdes, e os sintomas desapareceram (não conheço testemunhos médicos relativos a esta cura), e não é desta primeira cura que vou falar. 
A segunda cura está bem documentada e atestada por vários médicos. Marie contraiu peritonite tuberculosa em 1901. O seu abdómen ficou cada vez mais distendido, e cada vez consumia menos alimentos, muitos dos quais vomitava. Foi considerada pelo Dr. Roy, do Sanatorium de Lyons, como inoperável. Marie estava convencida de que seria curada por um milagre, pois dizia ter tido uma locução interior de Nossa Senhora, com estas palavras: “Je guérirai”. 
De forma mais intrigante, Marie dizia que Nossa Senhora lhe daria uma cura milagrosa para obter a conversão de um descrente. À data, ela não conhecia ainda Alexis Carrel, que só se converteria à Fé católica por volta de 1942, dois anos antes de morrer. Toda a vida, Carrel procurou uma explicação natural para a cura que ele presenciou em 1902, em Lourdes.

As notas que o Dr. Carrel recolheu sobre essa cura estão no Dossiê 54 dos Arquivos de Lourdes.
Em 1949, Carrel escreveu o relato da cura de Marie Bailly sob forma literária: “Le Voyage de Lourdes”. O que se segue foi retirado desta obra, bem com dos depoimentos de Carrel que se encontram nos Arquivos de Lourdes.

Marie estava decidida a ir a Lourdes para obter o milagre que esperava, apesar do estado terminal da sua doença.
Carrel cruza-se pela primeira vez com Marie Bailly a bordo do comboio de Lyons para Lourdes, que partiu à uma da tarde de 26 de Maio de 1902.
Marie já não comia há 4 dias, e foi com a ajuda da enfermeira Gabrielle Goirand que ela se conseguiu esgueirar para dentro do comboio, contra todas as indicações médicas de que não poderia viajar. 
A meio da madrugada, Carrel é chamado pela enfermeira para acorrer a Marie, que estava no compartimento 56 e tinha entrado em coma.

Sigamos o relato literário de Carrel (o autor usa o nome “Marie Ferrand” para Marie Bailly, e usa consigo mesmo o pseudónimo “Lerrac”, o inverso de “Carrel”):
“A noite parecia demasiado longa. Para todos os desafortunados, para os doentes que tremem e sofrem assim como para os que deles cuidam, as três horas da madrugada - aquela hora mesmo antes que o dia venha substituir a noite - é uma hora de medo, angústia e desespero. Quando o comboio entrou na próxima estação, a enfermeira que estava a tomar conta de Marie Ferrand [Bailly] toda a noite, assustada quando a sua paciente entrou em coma, foi a correr chamar Lerrac [Carrel].Marie Ferrand [Bailly] estava deitada no seu colchão, meia vestida, a sua cara estava verde, mas tinha recuperado a consciência. Só havia uma luz ténue no compartimento. O calor era abrasador. Lerrac [Carrel] baixou a janela e a corrente de ar fresco trouxe-lhe os sentidos de volta.“Nunca chegarei a Lourdes”, suspirou ela angustiada.De cada vez que o longo comboio se detia numa paragem, os passageiros chocavam uns contra os outros e estes choques repetidos infligiam um sofrimento inimaginável nos doentes.“Ela parece agonizante”, disse a enfermeira, “de cada vez que o comboio entra numa estação. Estou sempre a pensar que ela vai desmaiar e não sei o que fazer por ela”.“Vamos dar-lhe uma injecção imediatamente”, disse Lerrac [Carrel].A enfermeira puxou a manga descobrindo o braço macerado de Marie Ferrand [Bailly]. Lerrac [Carrel] encheu a seringa hipodérmica Pravaz com uma solução de morfina, e, dado que não tinha uma lâmpada a álcool, colocou a seringa contra a luz de um fósforo aceso; depois enfiou a seringa sob a pele branca, e a seringa manchada de fumo deixou uma pequena mancha preta [na pele].“Daqui a cinco minutos a dor terá desaparecido”, disse ele. “Entretanto, deixe-me olhar para o abdómen e aplicar-lhe algum láudano”.Com destreza, a enfermeira destapou a barriga distendida de Marie Ferrand [Bailly]. A pele reluzente estava esticada e dos lados as costelas apareciam salientes. O inchaço era aparentemente causado por massas sólidas, e havia uma bolsa de fluido sob o umbigo. Era um caso clássico de peritonite tuberculosa. Lerrac [Carrel] tocou no abdómen com as costas dos seus dedos indicador e médio. A temperatura estava acima do normal. As pernas estavam inchadas. Quer o batimento cardíaco quer a respiração estavam acelerados.”
O comboio chegou a Lourdes ao meio-dia do dia 27. Marie estava então inconsciente. Só recuperou a consciência à noite e passou-a no Hospital. Entretanto, o Dr. Carrel conversa com um colega acerca do caso de Marie:
“Esta infeliz rapariga está no estágio final de uma peritonite tuberculosa. Conheço a história dela. A família toda morreu de tuberculose. Ela teve lesões tuberculosas, lesões nos pulmões, e desde os últimos meses uma peritonite diagnosticada quer por um médico de clínica geral quer pelo bem conhecido cirurgião de Bordeaux, Bromilloux. A sua condição é muito grave; tive que lhe dar morfina durante a viagem. Ela pode morrer a qualquer momento (…). Se um caso como o dela fosse curado, seria sem dúvida um milagre. Eu nunca mais duvidaria; tornar-me-ia num monge!”
No dia seguinte, dia 28, a enfermeira Goirand pediu a Marie, às portas da morte, que escrevesse uma última carta para a sua família. Ela recusou, dizendo que só escreveria uma carta à família depois de curada. A enfermeira Goirand, pressentindo um milagre, pede uma maca e com ajuda, leva Marie para os banhos de Lourdes. No seu testemunho posterior, Marie diz que não se lembra de ser levada para as águas de Lourdes, mas lembra-se de uma forte dor ardente abdominal quando lhe despejaram água de Lourdes sobre o abdómen. Por causa dos seus gritos, pararam de lhe aplicar a água, mas pouco depois, aliviada a dor, e com a concordância de Marie, voltaram a despejar água sobre o abdómen. Marie disse que, da segunda vez, a água de Lourdes já não provocou dor, nem ardor, mas sim “doçura”. Nesse momento, começou a respirar normalmente (o que antes não era possível). Perante isto, várias pessoas aproximam-se de Marie, incrédulas.
À terceira vez que se aplicou água sobre o abdómen, a distensão abdominal começou a diminuir. Ela levantou-se da maca e pediu que a levassem à igreja. Muitas pessoas, perante estes factos, começaram a rezar e a cantar. Marie foi levada ao Bureau Médico e foi analisada por vários médicos que lhe disseram que ela estava francamente melhor.

Assim a encontrou Carrel:
Marie Ferrand [Bailly], num casaco branco, estava sentada na cama. Embora a sua cara estivesse ainda cinzenta e emaciada, estava iluminada com vida; os seus olhos brilhavam, uma cor ténue tingia as suas bochechas. As linhas nos cantos da sua boca, marcadas pelos anos de sofrimento, ainda se viam. Mas uma indescritível serenidade emanava da sua pessoa que parecia iluminar aquela triste ala [de hospital] com alegria.

“Doutor”, disse ela, “eu estou completamente curada. Sinto-me muito fraca, mas acho que até consigo andar.”
Lerrac [Carrel] colocou a sua mão no pulso dela. A pulsação estava calma e regular, oitenta vezes por minuto. E todavia apenas poucas horas atrás estava tão acelerada, tão trémula, que ele mal a podia medir. A sua respiração tinha-se também tornado completamente normal; o seu peito subia e descia com uma regularidade lenta. (…)
A pele [do abdómen] estava macia e branca. Acima das costelas estreitas estava o pequeno, achatado e ligeiramente côncavo abdómen de uma jovem rapariga mal nutrida. Levemente, ele colocou as suas mãos nas paredes do abdómen e pressionou; estava macio, flexível e extremamente fino. Sem lhe causar qualquer dor, ele conseguiu palpar o abdómen, os lados, a pélvis, à procura de vestígios da distensão e das massas duras que ele tinha antes encontrado. Tinham desaparecido como se fossem um sonho mau. Toda a região do abdómen parecia completamente normal. Apenas as pernas estavam inchadas. Ela estava curada. No espaço de poucas horas, uma rapariga com a face já azul, um abdómen distendido, e um coração fatalmente acelerado estava agora recuperada, excepto pela sua fraqueza e emaciação. (…)
Ele não tinha ouvido os Doutores J. e M. a entrarem (…). Subitamente, deu por eles, de pé ao seu lado.
“Ela parece curada”, disse ele. “Não encontro nada de mal. Por favor examinem-na vós mesmos.”
Enquanto os seus dois colegas palpavam cuidadosamente o abdómen de Marie Ferrand [Bailly], Lerrac [Carrel] pôs-se de lado a vê-los com olhos cintilantes. Não podia haver dúvida alguma de que a rapariga estava curada. Era, obviamente, a coisa mais portentosa que ele alguma vez vira. Era ao mesmo tempo assustador e maravilhoso ver a vida a voltar a um organismo que estava praticamente destruído por anos de doença. (…)
Virando-se para M., que ainda palpava o abdómen de Marie Ferrand [Bailly], Lerrac [Carrel] perguntou se encontrara alguns sintomas.
“Absolutamente nenhum”, respondeu M. “Mas eu quero auscultar a sua respiração”.
Ele encostou o seu ouvido ao peito de Marie Ferrand [Bailly]. Ao mesmo tempo, o Dr. J. estava a medir a pulsação. (…)
Finalmente, os dois médicos terminaram o seu exame.
“Ela está curada”, disse o Dr. J., profundamente comovido.
“Não encontro nada”, disse M. “A sua respiração é normal. Ela está boa. Ela pode-se levantar.”
“Não há nenhuma explicação para esta cura”, disse o Dr. J.
“É um milagre”, disse C. “Eu rezei por si, Dr. Lerrac [Carrel]. Talvez isto o traga de volta para a Igreja?”
“É certamente um milagre”, disse Lerrac [Carrel] em voz baixa, “a não ser que eu me tenha enganado no meu diagnóstico”. (…)
“O que é que vai fazer”, perguntou Lerrac [Carrel] a Marie Ferrand [Bailly], “agora que se sente curada?”
“Vou juntar-me às irmãs de São Vicente de Paula, e tratar dos doentes”, respondeu ela.

Para esconder a emoção, Lerrac [Carrel] saiu do quarto.” 
No dia seguinte, 29 de Maio, Marie vestiu-se. Já se conseguia levantar e sentar sem dores. Nesse dia, quis mergulhar por inteiro nas águas de Lourdes. Fê-lo sem qualquer dor.
Marie fez a viagem de volta para Lyons, uma viagem de 24 horas, e saiu pelo seu pé do comboio para a estação. Escreveu ela: “Apanhei o eléctrico, o que não me cansou, e corri em lágrimas para os braços da minha família que nem me reconhecia”. 

Em Lyons, o Dr. Roy, bem como o próprio Carrel, acompanharam-na nas semanas seguintes. Das notas do Dr.  Roy a 15 de Julho: “A cura parece completa. O seu peso aumenta um quilograma por semana. A condição geral é excelente. Examinámos o seu estado psicológico. Ela parece normal. Uma jovem senhora muito modesta e calma. Razoavelmente inteligente. Memória muito lúcida. Sem misticismo. Tímida e discreta. Fala da sua cura apenas quando lhe perguntam. Aparenta não ter desequilíbrio mental.”

A 5 de Setembro, o Dr. Roy parece procurar despistar perturbações do foro psicológico, mas encontra tudo normal: “A paciente está alegre. Fala prontamente. Inteligência normal. Memória perfeita. Nada perturbada pelo interrogatório, olha na cara sem insistência ou reserva excessiva”. O Dr. Roy estava convencido de que Marie teria um relapso no espaço de um ano.

A 6 de Agosto foi aceite como postulante pelas Irmãs da Caridade de Lyons. Em meados de Novembro tinha recuperado 16 quilogramas. A 29 de Novembro foi para Paris, seguir vocação religiosa no convento da Rue du Bac. Foi lá visitada pelo Dr. Boissarie, do Bureau Médico de Lourdes, em Fevereiro de 1903. Em 1905, três anos depois da cura, Marie continuava a receber, e a responder a, pedidos periódicos de análises à urina e ao sangue por parte do Dr. Boissarie. Marie fez os votos a 8 de Dezembro de 1907, e antes de os fazer, foi pedido um parecer médico que refere: “a sua força física não lhe falha. Ela tem força para lavar a roupa e engomar”. Morreu de morte natural em Montolieu, a 22 de Fevereiro de 1937, com 58 anos de idade.

Depoimento do Dr. Carrel - 28 e 29 de Maio de 1902
14:20: parece que apenas o abdómen foi tocado por uma pequena quantidade de água. A sua aparência não mudou. A sua respiração está talvez menos rápida. Ela é agora levada para a frente da Gruta para a primeira fila reservada para os doentes. Poucas pessoas ainda se encontram no local. As cerimónias religiosas ainda não começaram. Ela está perfeitamente visível. Fácil de ser observada.
14:30-14:40: O ritmo da respiração abrandou e torna-se mais regular. A sua face muda um pouco. Um leve toque de cor-de-rosa espalha-se sobre a pele. Ela parece ligeiramente melhor. Ela reconhece a enfermeira e ri-se para ela.
14:55: O perfil do corpo modifica-se e a protuberância do abdómen parece achatar-se um pouco. O seu estado geral melhora e de forma visível.
15:10: As mãos, as orelhas e o nariz estão quentes. A respiração abrandou para cera de 40 por minuto. O batimento cardíaco, muito rápido a 140 por minuto, está mais forte e regular. A nossa paciente diz-me que se sente melhor. A enfermeira tenta levá-la a beber um pouco de leite. Ela bebe-o. Não vomita.
15:20: Ela levanta a cabeça de forma espontânea e olha à volta. Ao nível do abdómen, a manta está achatada. As pernas movem-se e o corpo vira-se a partir da direita. A face tornou-se calma e rosada.
15:45: A paciente é levada, ainda deitada na maca, até à Igreja do Rosário
16:15: A melhoria é ainda mais marcada e torna-se óbvia para pessoas à volta que não estão familiarizadas com assuntos médicos. Ela ainda está deitada de costas. A respiração é calma. A face um pouco rosada. A protuberância no abdómen desapareceu completamente. Ela diz-me que se sente muito bem e, se tivesse coragem, levantar-se-ia. A sua aparência mudou tanto que toda a gente repara. No meio do entusiasmo delirante da multidão ela é levada para o Bureau Médico do Dr. Boissarie.
19:30: A parede abdominal é flexível, elástica, e com uma ligeira depressão normal para uma senhora de 22 anos de idade e muito magra. Esta depressão permite uma exploração minuciosa dos órgãos sob [a pele]. A aorta bate sob o dedo. O cólon é investigado. Algumas bolas de matéria fecal no cólon sigmoidal estão a descer. Do lado direito, na profundidade do abdómen, há uma massa dura que ocupa a cavidade abdominal inferir e chega à região lombar. Encontro, usando as duas mãos, um nódulo muito duro mas não doloroso, do tamanho de um antebraço, encaixado contra a parede posterior do abdómen que não se move durante a respiração. Os rins não estão caídos. Nenhumas fezes desde a partida de Lyons. Nenhuma descarga urinária. Micturição normal. 
29 de Maio, 6:30: Condição geral perfeita. A paciente levanta-se sozinha e toma o pequeno almoço. Respiração 18 [vezes] por minuto, batimento cardíaco 88 [vezes por minuto]. O abdómen está absolutamente normal. A massa dura, observada ontem na região ilíaca lombar, desapareceu completamente. Existe ainda alguma tumefacção na cavidade abdominal inferior.

Depoimento do Dr. Paul Geoffray, natural de Rive-de-Gier, no Loire
“O abdómen era uma massa hemisférica enorme e muito dura e formava um só bloco muito sensível à qualquer palpação. A paciente perguntou-nos, através das suas enfermeiras, se estava proibida de ir à Gruta. É claro que a deixámos em completa liberdade, embora receássemos que o desfecho pudesse ser fatal e iminente. Mademoiselle Bailly foi levada à Gruta num estado de total prostração. Encontrei-a a caminho. À noite, a caminho do Hospital, encontrei-a, para meu espanto, com a sua cabeça levantada, respondendo às minhas questões com um sorriso e respirando facilmente. Eram cerca de 7 horas da noite. Não a examinei pois estava apertado de tempo. Admito que esperava apenas uma melhoria fictícia, causada pelas emoções. O meu espanto foi profundo esta manhã, Quinta-feira, 29 de Maio de 1902, quando eu me aproximei da cama da Mademoiselle Bailly, ao ver, atrevo-me a dizer, a mudança visível que tinha tido lugar em alguém tão doente na véspera. A respiração e a pulsação quase normais. Em relação ao abdómen, nada restava daquela enorme massa dura registada ontem. O abdómen recuperou o seu [estado] normal, absolutamente normal, flexibilidade. Total ausência de dor sob qualquer palpação. Medi o pulso na aorta abdominal. Do enorme tumor registado ontem só um pequeno nódulo resta, não maior do que um pequeno rim, situado no hipocôndrio direito, sem causar dor alguma. A paciente sente-se tão bem que quer caminhar até à Gruta, o que não está autorizada a fazer devido à sua fraqueza. Ela diz-me que se levantou de manhã sozinha por poucos momentos. Este atestado médico que eu assino é a pura verdade. Devo dizer ainda que nunca uma peritonite tubercular foi curada, por meios humanos, em poucas horas, como aconteceu aqui? Lourdes, 29 de Maio de 1902. [assinatura] Dr. Geoffray (Paul).”

Conversão de Carrel
  • Foi um processo muito longo, o da conversão de Carrel, durou quase a vida toda
  • Em 1902, Carrel chegou agnóstico a Lourdes, e depois de ver a cura de Marie Bailly, regressou a casa agnóstico, embora certamente abalado e perplexo com o que viu, sem saber explicar a cura
  • Teve ainda mais uma oportunidade de presenciar outro milagre em 1910, durante a sua terceira viagem a Lourdes: uma criança de 18 meses que nasceu cega e recuperou a visão, mas também não foi desta vez que Carrel se converteu; o bebé curado estava nos braços da enfermeira Anne-Marie de la Motte, com quem Carrel se casou no Natal de 1913
  • Quase até ao fim da vida, Carrel estava convencido de que a oração e a religião abriam as portas para uma parte desconhecida da Natureza, que devia ser estudada cientificamente, procurando talvez de forma subconsciente uma explicação “cientifica” para os milagres que presenciou, mas sem aceitar um Deus pessoal a quem se pode rezar
  • Em 1942, encontramos no seu diário as seguintes palavras, sinal de uma mudança grande: “Acredito na existência de Deus, na imortalidade da alma, na Revelação e em tudo o que a Igreja Católica ensina, na sua admirável doutrina de sacrifício que é o seu cerne”.
  • Em 1943, sofre um ataque cardíaco pouco grave, seguido de outro mais grave em 1944
  • Por volta de Outubro de 1944, já tinha regressado em força à Igreja Católica da sua infância e juventude
  • Poucos dias antes de morrer, diz a um Padre seu amigo (Monsenhor Hamoyon): “Quando nos aproximamos na própria morte, apercebemo-nos do nada de todas as coisas. Ganhei fama. O mundo fala de mim e das minhas obras, e no entanto eu sou uma mera criança perante Deus, e uma pobre criança ainda por cima.”
  • Morreu na madrugada de 5 de Novembro

Estatísticas de curas em Lourdes (1909-1914, 1947-1950, 1950-1976)





Fontes:

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Conferência NEC: " Progresso da Ciência - O fim da Fé?" (Parte I)

O Núcleo de Estudantes Católicos da Nova Medical School organizou, na passada Terça-feira dia 9 de Abril, uma conferência intitulada "Progresso da Ciência - O fim da Fé?", para cujo painel fui convidado, juntamente com o Rev. Padre Hugo Santos e a Prof. Doutora Ana Félix.

O vídeo da conferência pode ser visto aqui:



Neste primeiro "post" de uma série de três "posts", partilho as notas que levei para a conferência, que são um pouco mais extensas em termos de conteúdo do que eu acabei por apresentar durante a sessão.


Parte 1 - Notas sobre Milagres e Leis da Natureza

  • Qual é a filosofia que está na base da Ciência moderna?
  • Livro da Sabedoria (Antigo Testamento), cap. 11, vs. 9, “Tu, porém, [Senhor] regulaste tudo com medida, número e peso”
  • Os judeus e os cristãos esperam um Cosmos racional, ordenado, inteligível: não é por acaso que a Ciência moderna nasce na Europa cristã
  • O que é uma “lei da natureza”?
    • É uma regularidade natural que pode ser representada matematicamente por uma ou mais equações
  • A expressão “lei da natureza” data do período da chamada “revolução científica” (séculos XVII e XVIII), que foi feita sobretudo por filósofos e cientistas cristãos (Bacon, Newton, Boyle, Descartes, Lavoisier, e outros)
    • Mas séculos antes, já os medievais, guiados pela forte convicção de que o Cosmos era racional, tinham descoberto várias “leis naturais”, por exemplo:
      • Explicação do arco-íris primário e secundário: Teodorico de Friburgo (séc. XIII)
      • Princípios básicos do magnetismo: Pierre de Maricourt (séc. XIII)
      • Leis do movimento, fenómeno do ímpeto: Jean Buridan, Nicole Oresme, Alberto da Saxónia, e o grupo dos “calculadores de Merton College”, em Oxford (activos no século XIV)
  • “Lei” implica um “legislador”: Isaac Newton, por exemplo, o “pai” da lei da gravitação universal, era cristão e via Deus como o “legislador cósmico”
  • Não é óbvio que existam leis universais, nem em Física, nem em Química, nem em Biologia, e assim por diante; essas leis foram descobertas porque eram esperadas, porque os cientistas que as descobriram eram cristãos ou pelo menos viam o Cosmos pelo prisma de uma cultura cristã
  • Ainda hoje, mesmo o cientista ateu entra no laboratório convicto de que há regularidades cósmicas por descobrir, e não duvida de que as fórmulas matemáticas mais elegantes saídas da sua cabeça serão bem-sucedidas na compreensão, quer das partes mais distantes do Cosmos, quer das mais microscópicas
  • As leis científicas não são como as leis da Lógica, que são absolutamente verdadeiras e inevitáveis e são conhecidas há séculos
  • As leis científicas podiam ser diferentes do que são, pelo simples facto de que a Natureza podia ser diferente do que é:
    • Por exemplo, Newton descobriu que corpos com massa atraem-se na proporção directa das suas massas, e inversa do quadrado da distância entre elas
    • Mas a intensidade dessa força também de depende de uma constante na equação, chamada “constante gravítica”, que podia ser diferente do que é
  • Sabemos hoje, graças aos avanços em Cosmologia e em Física, que vivemos num Universo incrivelmente afinado para haver vida, e vida inteligente (nenhum cientista o nega)
    • As próprias leis são “afinadas”
    • As constantes que figuram nas equações que representam essas leis estão “afinadas”
    • Até as quantidades iniciais de matéria-energia e de entropia, do Universo estão “afinadas”
    • Vivemos num Universo repleto de leis muito especiais, e que se mantêm válidas ao longo do tempo e através do espaço: porquê?
    • Não são apenas os milagres que são difíceis de explicar: porque é que há leis tão “afinadas”?
  • Citação de George Gabriel Stokes (séc. XIX), físico britânico, cristão:
    • «Admita-se a existência de um Deus, de um Deus pessoal, e a possibilidade de milagres decorre imediatamente. (...) se as leis da natureza são mantidas de acordo com a Sua [de Deus] vontade, Aquele que as quis pode querer a sua suspensão.» - Stokes, Natural Theology
    • Coisa espantosa: para o cristão, a possibilidade de milagres baseia-se na mesma vontade divina que explica a existência de leis naturais
    • Outro ponto importante: o conceito de milagre depende logicamente da existência de um Deus pessoal, um Deus dotado de vontade livre:  
      • Mas será que Deus existe?
      • A Igreja Católica ensina, no Concílio Vaticano I, que a existência de Deus pode ser conhecida com certeza à luz da razão partindo da observação da Criação
        • Dito de outra forma, a existência de Deus, para o católico, não é um artigo de Fé, mas sim um facto demonstrável
      • Para não me desviar demasiado no que vou dizer aqui esta noite, e para poder falar sobre milagres, vou partir do princípio de que a existência de Deus é aceite
      • É que não faz sentido discutir a possibilidade de milagres partindo do ateísmo:
        • Se o ateu diz que Deus não existe, então por definição não pode aceitar nem um só milagre, se estes dependem de Deus como causa principal
        • Mas um cristão pode discutir milagres com outras pessoas que acreditam que Deus existe, e até com agnósticos, para quem um milagre atestado e credível pode ajudar a aceitar a existência de Deus; esta noite vou falar de um caso desses, de um médico agnóstico que presenciou uma cura milagrosa
  • Um milagre é então a suspensão, temporária e num determinado local, de uma ou várias leis naturais por parte de quem as assim determinou (“Deus”); um milagre não tem que ser entendido como uma “violação” de leis conhecidas
    • Por exemplo, lá em minha casa, há uma regra simples: em época de exames não há jogos de computador
    • Eu e a minha mulher estipulámos essa regra, mas somos livres de criar excepções se quisermos, que não são “violações” dessa regra universal, mas sim suspensões pontuais e eventuais (e sublinho “pontuais” e “eventuais”) dessa regra, se assim o decidimos
    • As crianças é que violam a regra, se se atreverem a jogar em época de exames sem a nossa permissão 
    • O legislador é livre de suspender as leis que ele mesmo determinou
    • Se isso acontece nas coisas humanas, mais ainda sucede com a vontade libérrima de Deus
  • As “leis da natureza” representam matematicamente regularidade naturais que resultam da “criação contínua”, o acto pelo qual Deus mantém o Cosmos em existência a cada momento, com todas as suas entidades e forças regulares, com todos os seus processos naturais que a Ciência estuda
  • Na teologia cristã, o milagre é uma decisão livre e voluntária de Deus, não é um mecanismo nem um processo cuja causa principal seja “analisável” pela Ciência, embora a Ciência possa analisar os seus efeitos empíricos
  • A explicação principal para um milagre está num agente livre, que é Deus: é Ele Quem decide se faz ou não um milagre
  • Por definição, um milagre, da palavra latina “miraculum”, é algo de “admirável” e que pode ser verificado pelos sentidos;
    • Tem uma primeira causa sobrenatural, Deus
    • Mas tem efeitos naturais (verificados pelos sentidos); isto quer dizer que a Ciência pode analisar as causas secundárias (ou “instrumentais”) de um milagre; por exemplo, se Deus opera a cura de uma pessoa, Deus pode recorrer de forma instrumental a processos naturais (fisiológicos, químicos, etc.) para obter a cura desejada
  • A Igreja Católica tem critérios muito apertados para atestar eventuais milagres
  • Por exemplo, no caso específico das aparições e dos milagres marianos, ou seja, atribuídos a Nossa Senhora, o panorama é muito variado:
    • As aparições de Guadalupe, La Salette, Lourdes, Fátima, Akita, por exemplo, foram reconhecidas integralmente pela Igreja
      • Todavia, estas aparições não “obrigam” um católico, ou seja, não fazem parte da doutrina católica nem é obrigatório aceitá-las, embora não seja sensato rejeitá-las, pois foram consideradas dignas de crédito depois de uma longa e rigorosa averiguação
    • Já as aparições de Garabandal (Espanha) e Medjugorje (Bósnia-Herzegovina), por exemplo, até o momento não receberam reconhecimento oficial por parte da Igreja
    • Outras mesmo foram declaradas falsas pelas autoridades: por exemplo, as do movimento Mariavita na Polónia (Feliksa Kozłowska), as em Palmar de Troya em Espanha (Andaluzia), várias nos E.U.A.: Wisconsin (Mary Ann Van Hoof), Ohio (Maureen Sweeney Kyle) 
    • Um detalhe mais técnico: uma aparição será miraculosa apenas na medida em que for visível pelos sentidos externos, pois por definição, um milagre é algo empírico, capturável pelos sentidos; já uma visão interior, ou seja, que não envolva interacção entre radiação no espectro visível e o sistema visual humano, não consiste num milagre, embora possa ter origem divina

Em resumo, quando falamos de explicações miraculosas…
  • Não se trata de “provar” cientificamente que Deus é a causa de um fenómeno cientificamente inexplicável, o que seria um contra-senso
  • Trata-se de aceitar que, em certos e determinados casos, Deus pode ser a explicação derradeira mais racional para um fenómeno que a Ciência não explica inteiramente (embora possa explicar parcialmente)
  • Assim, um cristão deve partir para a análise racional de um alegado milagre ou aparição de mente aberta, disposto a seguir as evidências
    • Ao contrário do ateu, o cristão não está obrigado a descartar Deus do leque de explicações possíveis
    • Ao contrário da pessoa crédula e supersticiosa, o cristão não quer ter nada a ver com pseudo-milagres nem com falsos fenómenos sobrenaturais

Termino esta introdução citando o Padre Stanley Jaki, Físico e Historiador de Ciência, que morreu exactamente há 10 anos atrás (7 de Abril de 2009):

«Um mistério que seja lógico deve ser grandemente preferido face a um que seja ilógico.»

PS: No caso das curas milagrosas, é expectável que muitos rezem pela cura mas poucos a obtenham: Deus é soberano, e não está obrigado a atender aos nossos pedidos, sobretudo porque Deus está “fora do tempo” e no Seu “eterno presente” tem a visão de conjunto, e quem pede uma cura não tem essa visão de conjunto; rezar por uma cura não é uma qualquer “técnica” de manipulação de forças, analisável empiricamente e que se possa “dominar”; rezar é pedir algo a alguém em concreto, a Deus, que é livre de nos dar ou não o que Lhe pedimos; não podemos dizer que Deus é cruel só porque não cura quem lhe pede, pois não temos toda a informação nem beneficiamos do ponto de vista ilimitado de Deus 


Anexo: Critérios da Igreja Católica para validar aparições e revelações

Fonte: “Normas para proceder no discernimento de presumíveis aparições e revelações”, Congregação para a Doutrina da Fé, 25 de Fevereiro de 1978.

A) Critérios positivos:

a) Certeza moral, ou pelo menos grande probabilidade da existência do facto, adquirida por meio de uma investigação séria.

b) Circunstâncias particulares relativas à existência e à natureza do facto, ou seja:

  1. Qualidades pessoais do sujeito ou dos sujeitos (em particular, o equilíbrio psíquico, a honestidade e a rectidão da vida moral, a sinceridade e a docilidade habitual para com a autoridade eclesiástica, a predisposição para retomar um regime normal de vida de fé, etc.);
  2. No que diz respeito à revelação, doutrina teológica e espiritual verdadeira e isenta de erro;
  3. Devoção sadia e frutos espirituais abundantes e constantes (por exemplo, espírito de oração, conversões, testemunhos de caridade, etc.).

B) Critérios negativos:

a) Erro manifesto acerca do facto.
b) Erros doutrinais atribuídos ao próprio Deus, ou à Bem-Aventurada Virgem Maria, ou a algum santo nas suas manifestações, considerando todavia a possibilidade de que o sujeito tenha acrescentado – também inconscientemente – a uma autêntica revelação sobrenatural, elementos puramente humanos, ou então algum erro de ordem natural (cf. Santo Inácio, Exercícios, n. 336).
c) Uma procura evidente de lucro, ligada estritamente ao facto.
d) Actos gravemente imorais realizados no momento ou por ocasião do facto pelo sujeito ou pelos seus seguidores.
e) Doenças psíquicas ou tendências psicopáticas no sujeito, que com certeza tenham exercido uma influência sobre o presumível facto sobrenatural, ou então psicose, histeria colectiva ou outros elementos deste género.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Deus existe?

O vídeo da minha conferência "Deus existe?", feita na passada Quinta-feira, 5 de Novembro de 2015.
Apresento três argumentos em defesa do teísmo: o argumento cosmológico de Leibniz, o argumento cosmológico "kalam" do William Lane Craig, e o argumento teleológico, na modalidade defendida por Robin Collins. Muito obrigado ao José Maria Coelho pelo convite, e a todos os que estiveram presentes e participaram no debate que se seguiu!

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

In memoriam - Stanley Jaki (1924-2009)

Hoje faria 91 anos Stanley Jaki (1924-2009), Padre beneditino e Professor de Física na Universidade de Seton Hall, em New Jersey. Duplamente doutorado em Teologia (Instituto Pontifício de Santo Anselmo, em Roma, 1950) e em Física (Fordham, 1958), o Padre Jaki deixou uma vasta e indispensável obra em História da Ciência e Filosofia da Ciência.

O seu primeiro livro em inglês, “The Relevance of Physics” (1966, University of Chicago Press), continua a ser hoje um insuperado “tour de force” de História da Ciência. Nesse livro, que contém uma impressionante recolha de citações pouco conhecidas dos principais cientistas da História, o leitor fica esmagado pela profundidade da pesquisa histórica feita pelo Padre Jaki, e pelo seu domínio interpretativo dos acontecimentos.

O Padre Jaki veio a Portugal algumas vezes, quer para investigar os acontecimentos de Fátima, com vista à publicação da sua obra de referência sobre o milagre do Sol (“God and the Sun at Fatima”, 1999), quer para fazer três conferências em 2001. Nessa altura, eu nunca tinha ouvido falar dele. Lamento não o ter conhecido pessoalmente. Comecei a ler vorazmente os seus livros quando ele já estava no fim da sua vida terrena. Devo-lhe imenso. Sei que vou usar os livros dele para aprender até morrer. A sua escrita é densa. Não porque Jaki utilize palavras eruditas naquela típica atitude de arrogância intelectual. Nada que se pareça. Mas porque condensa muita informação em poucas palavras, o que obriga a uma leitura muito atenta. Todo o tempo investido na obra de Jaki traz retorno, e multiplicado.

Aqui fica um exemplo: o artigo “The Physicist and the Metaphysician”, no qual o Padre Jaki comenta o diálogo pouco conhecido entre o físico Pierre Duhem (1861-1916) e o metafísico Réginald Garrigou-Lagrange (1877-1964). 

(Duhem foi o historiador de Ciência cuja obra-prima “Le Système du Monde - Histoire des doctrines cosmologiques de Platon à Copernic” - dez volumes editados entre 1913-1959 - desenterrou o edifício da ciência medieval, mostrando as raízes medievais da Ciência moderna com base em documentação de primeira mão, arrancada arduamente do esquecimento com o trabalho de uma vida inteira. Esta sua incómoda obra, fatal para a “tese do conflito” entre a Igreja Católica e a Ciência, só estaria finalmente editada na sua totalidade em 1959, 43 anos depois da sua morte, graças ao esforço incansável da sua filha Helène. O dominicano Garrigou-Lagrange, por seu lado, é um colosso do tomismo do século XX: um dos melhores expositores e defensores da filosofia e da teologia de São Tomás de Aquino.)

Jaki analisa a correspondência entre Duhem e Garrigou-Lagrange acerca do tema do movimento inercial. Duhem explica o ponto de vista físico. Garrigou-Lagrange explica o ponto de vista metafísico. Essa correspondência mostra o valor do diálogo humilde entre dois especialistas.
Eis a conclusão do artigo do Padre Jaki:
“For physics after all deals with reality. Its different aspects can be separated in a conceptual way but they remain inseparable from one another in their actual existence. Things as far as they exist certainly witness to their being and becoming which are not quantitative notions as such. But any physical being and becoming is known through sensory perception which is never without quantitative contents. There is no purely ontological realm as far as material things are concerned, nor can their quantitative features be consistently spoken of as if they were not embedded in a broader and more fundamental kind of reality, the reality of being and becoming. 
Therein lies the source of the perplexity or uneasiness of Garrigou-Lagrange, the metaphysician. He did not display sufficient awareness of a fundamental problem as he dealt with the question posed by the principle of inertia for the proof of the existence of God from motion. This is the perennial problem of the one versus the many, in the sense that one and the same thing or process has multiple aspects that are conceptually irreducible to one another. 
Distinguishing them we can, but separate them we cannot. Unite them we must, for knowledge is a quest for unitary understanding. Yet that quest is always fraught with the risk that fusion becomes confusion. That there is no escape from this predicament is probably the deepest lesson to be drawn from the exchange of ideas between a great physicist and a great metaphysician on a basic question of physics which is also a basic question for metaphysics.”
O movimento inercial é uma só realidade, como explica o Padre Jaki. Mas que, para ser compreendida, tem que ser analisada com competência sob os distintos aspectos da física e da metafísica. Isto implica, naturalmente, que o movimento não tem apenas um aspecto físico (quantitativo, científico), mas também um aspecto metafísico, relacionado com o "ser" (o que o corpo em movimento inercial é em cada instante) e com o "devir" (as sucessivas mudanças de posição no corpo que se move com movimento inercial). Só assim se recupera uma compreensão una do mesmo fenómeno real.

Fonte: Stanley Jaki, “The Physicist and the Metaphysician”, em: http://www.u.arizona.edu/~aversa/scholastic/The%20Physicist%20and%20the%20Metaphysician%20(Jaki).pdf

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Debate "Deus (não) existe?"

O debate da passada Quinta-feira, 21 de Novembro, na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, colocou-me frente a frente com o Ricardo Silvestre. Eu defendi a existência de Deus usando argumentação científico-filosófica, enquanto que o Ricardo procurou defender a inexistência de Deus. Os meus "slides" podem ser encontrados aqui.
(este ficheiro PDF contém mais "slides" do que os que eu usei: na minha primeira parte, usei todos os "slides" até ao 19, mas saltei o slide 12; os restantes "slides" eram de reserva, e só mostrei alguns deles na minha segunda parte, quando foi necessário)

Na minha primeira intervenção, apresentei dois argumentos filosófico-científicos a favor da existência de Deus:

A1: Argumento Cosmológico (versão de Leibniz):
Demonstrei existir uma entidade:
  • Que tem em si mesma a sua razão de existir
  • Que não poderia não existir, e portanto é eterna (ou pelo menos perpétua)
  • Que é imaterial: não é feita de massa / energia

A2: Argumento Teleológico (versão de Robin Collins):
  • Apresentei diversos exemplos de que o nosso Universo está afinado para existir vida, e em alguns casos, está afinado para haver Química elementar (uma tabela de elementos suficientemente variada) e afinado para termos estabilidade atómica, essencial para toda a Química (e portanto, para a existência de qualquer forma de vida conhecida ou desconhecida):
    • Que as leis da Natureza estão afinadas
    • Que as constantes que figuram nas equações das leis da Natureza estão afinadas
    • Que as condições iniciais do nosso Universo estavam afinadas
  • Mostrei que a afinação do Universo é muitíssimo mais expectável dado o teísmo do que dado o ateísmo, e por isso, perante essa afinação, a atitude racional é acreditar que Deus existe
  • Expliquei que este argumento A2 aponta para a inteligência da entidade que o argumento A1 demonstrou existir, pela razão de que o nosso Universo está minuciosamente estruturado e afinado de forma inteligente
Perante estes argumentos, o Ricardo tinha que fazer duas coisas:
  1. Refutar os argumentos que apresentei em defesa da existência de Deus
  2. Apresentar argumentos seus em defesa da inexistência de Deus
Na sua primeira intervenção, o Ricardo colocou as seguintes objecções aos meus argumentos:

A1: Argumento Cosmológico de Leibniz: o Ricardo criticou a necessidade de terminar a regressão infinita de explicações / causas, alegando que era arbitrário fazer parar a regressão num primeiro ente, ou seja, numa "causa primeira".

A2: Argumento Teleológico: o Ricardo sugeriu o multiverso como a melhor explicação para a afinação do nosso Universo.

Na minha segunda intervenção, respondi da seguinte forma às objecções do Ricardo:

A1: Argumento Cosmológico de Leibniz
Este argumento parte de duas premissas:
  • Que é válido o Princípio da Razão Suficiente (PRS), que diz que toda a coisa C existente é explicada:
    • ou por algo já existente, e que explica a coisa C
    • ou pela própria coisa C, caso essa coisa C tenha em si mesma a sua razão de existir (C teria existência obrigatória)
  • Que o nosso Universo existe
Aceites as duas premissas, a conclusão segue-se inevitavelmente, se eu não tiver cometido erros de encadeamento lógico. O Ricardo não negou o PRS, nem negou que o nosso Universo existe. O Ricardo apontou para um eventual erro no meu raciocínio, dizendo que a regressão de explicações / causas poderia ser infinita, e que não é necessário parar numa explicação ou causa primeira.

Em resposta a esta objecção, regressei ao esquema do "slide" 8 e expliquei que, mesmo que existam várias coisas encadeadas entre o Universo e uma primeira coisa, uma primeira coisa tem que existir, e tem que ter em si mesma a explicação para a sua existência, ou seja, tem mesmo que ser uma "primeira" coisa, e não podemos ter uma regressão infinita de explicações / causas.

Aviso: o argumento de Leibniz também se aplica caso o Universo fosse eterno: as explicações para a existência do Universo fazem sempre falta, mesmo que o Universo seja eterno, porque se o Universo podia ser diferente do que é, então não tem existência obrigatória (não tem em si mesmo a sua razão de existir) e por isso requer uma explicação distinta dele mesmo. Por isso, quando digo "primeira coisa", falo em "primeira explicação", uma explicação fundamental que não requer mais explicações.

Vamos ver porquê, supondo que o Ricardo tinha razão. Vamos supor que há uma cadeia infinita de explicações das explicações das explicações, e assim por diante, cadeia essa que numa das direcções termina no Universo, mas que na outra direcção não tem fim: regride infinitamente. Se assim fosse, aplicaríamos o PRS a essa cadeia infinita para perguntar: porque é que existe esta cadeia infinita, em vez de nada? Porque é que esta cadeia infinita existe, e porque é que ela é como é? Como o Universo faz parte dessa cadeia, e o Universo podia ser diferente do que é, então a cadeia como um todo, mesmo sendo infinita, poderia ser diferente do que é. Então, a cadeia infinita não teria em si mesma a sua própria explicação para existir. Então, como vemos, a cadeia infinita necessitaria de uma explicação distinta dela mesma. Logo, caímos sempre na necessidade de uma primeira explicação, na necessidade de existir uma primeira coisa que tem em si mesma a sua razão de existir.

Sugerir uma cadeia infinita de explicações, como fez o Ricardo, é tentar fugir do PRS, para acabar por ter que voltar a recorrer ao PRS para confirmar que é forçoso existir uma "primeira coisa" de existência obrigatória. Uma primeira coisa distinta do Universo, que existe por si própria, que tem existência obrigatória, e que é imaterial, porque tudo o que é feito de matéria ou energia podia ser diferente do que é.

A2: Argumento Teleológico: o Ricardo sugeriu o multiverso como a melhor explicação para a afinação do nosso Universo. Contra esta resposta, argumentei:
  • Que o multiverso é ainda especulação sem suporte experimental
  • Que o multiverso não resolve a afinação das leis da natureza: apenas "transporta" o problema da afinação do nosso Universo para o patamar mais fundamental do multiverso
  • Que um eventual multiverso no qual são gerados os inúmeros universos teria que ser muito especial e afinado para produzir universos afinados para a existência de vida 
Em suma
  1. O Ricardo não conseguiu refutar os meus argumentos, pelo que eles permaneceram válidos durante todo o debate e até ao final da noite
  2. O Ricardo fez uma série de críticas à ideia de existir Deus, sobretudo à ideia de existir um Deus Bom, levantou várias questões, e eu apenas respondi a algumas delas
Uma das principais (e importantes) críticas que me fizeram, no rescaldo do debate, foi a de eu ter deixado sem resposta uma série de questões levantadas pelo Ricardo durante o debate. Na verdade, na fase de perguntas e respostas, pude interagir com algumas delas e refutá-las. Mas é verdade que várias questões do Ricardo ficaram sem resposta da minha parte. Na minha segunda intervenção da noite, optei por aprofundar a defesa dos dois argumentos que tinha levado, respondendo às objecções que o Ricardo levantou de forma pertinente contra esses argumentos. Poderia ter usado a minha segunda intervenção para responder às questões do Ricardo, mas optei por me manter no tema da noite: os melhores argumentos a favor da (ou contra a) existência de Deus.

Respostas às questões e objecções do Ricardo

Aproveito agora para deixar respostas resumidas e breves às questões e objecções importantes levantadas pelo Ricardo durante o debate, para as quais não dei resposta na altura, ou então respondi de forma incompleta por falta de tempo. Como se pode ver abaixo, a grande variedade de questões que o Ricardo levantou durante as suas comunicações mostra bem que, caso eu tivesse optado por responder ponto por ponto, o debate teria claramente descarrilado para fora do tema central.
  1. Há provas científicas de que Deus existe?
  2. O conhecimento científico de São Tomás de Aquino está ultrapassado.
  3. Porque não uma regressão infinita de explicações ou causas?
  4. Porque não uma regressão circular de explicações ou causas?
  5. Porque é que o multiverso não explica as evidências de afinação do nosso Universo?
  6. Porque é que o Universo é tão grande? Para quê?
  7. Porque é que há mal no Universo? Imperfeições? Doenças? Desastres naturais?
  8. Poderá Deus ser Bom? Paradoxo de Epicuro.
  9. Todas as alegações de milagres têm sido cientificamente refutadas.
  10. O livre-arbítrio é uma ilusão.
  11. A Igreja Católica limita a investigação científica com os seus dogmas morais.
  12. A alma é uma ficção.
  13. Uma pessoa de outra religião que teve o azar de não nascer na religião "certa" não se vai salvar?
  14. Se a mensagem do cristianismo é assim tão importante, porque é que Deus a não a torna mais óbvia? Porque é que Deus não se torna mais óbvio?
  15. Onde está a "assinatura" de Deus?
  16. Porque é que Deus deixou o Universo ao acaso?

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Objecções ao Argumento Cosmológico "Kalam"

Os argumentos cosmológicos constituem uma categoria de argumentos que pretendem demonstrar a existência de Deus "a posteriori", partindo da observação de certos aspectos do Cosmos. Estes argumentos têm uma longa tradição: Platão elaborou um argumento cosmológico, Aristóteles aperfeiçoou este tipo de argumentos (derivando um primeiro "motor imóvel" a partir da constatação de movimento no Cosmos), os filósofos árabes também (Avicena, Averróis, Algazel, entre outros), assim como o filósofo judeu Maimónides, São Tomás de Aquino (das suas cinco "vias" para demonstrar a existência de Deus, as primeiras três são argumentos cosmológicos), John Locke, Samuel Clarke, entre outros, até aos nossos tempos, sendo hoje o filósofo norte-americano William Lane Craig o mais proeminente defensor do argumento cosmológico dito "kalam" (que parte da finitude do passado cósmico). Recentemente, deram-me conhecimento deste vídeo que apresenta o Argumento Cosmológico "Kalam" em linguagem bastante acessível:

   

Ao divulgar este vídeo no Facebook, recebi como resposta este outro vídeo, um excerto do debate entre William Lane Craig e Peter Millican na Universidade de Cambridge, em Outubro de 2011, mas contendo apenas alguns minutos com as objecções de Millican ao Argumento Cosmológico "Kalam", conforme defendido por Craig:

   
(o debate completo pode ser visto aqui)

Em primeiro lugar,  e antes de comentar as objecções de Millican, é importante começar por louvar a presença e a atitude deste filósofo ateu, que cedo se prontificou para debater com Craig, representando e defendendo o ateísmo, ao se constatar que não seria possível ter Richard Dawkins presente para debater com Craig. O notório promotor do ateísmo não se mostrou disponível para enfrentar Craig, porventura temendo um vexame, e coube a ateus mais corajosos a responsabilidade de defender o ateísmo e criticar os argumentos de Craig. Só por isso, mas também pelo seu civismo e cordialidade durante o debate, Millican merece todo o respeito e consideração.

No trecho acima, que alguém disponibilizou no Youtube com o epíteto optimista de "Debunking the Kalam Cosmological Argument", vemos apenas os minutos da intervenção de Millican nos quais este filósofo levanta objecções ao argumento defendido anteriormente por Craig. É importante saber que Craig respondeu a todas as objecções de Millican, e olhando para todo o debate, é difícil defender que Millican o ganhou.

Craig apresentou assim o Argumento Cosmológico "Kalam":
Premissa 1. Tudo o que começou a existir tem uma causa
Premissa 2. O Universo começou a existir
Conclusão: Por "modus ponens" das premissas 1 e 2, o Universo tem uma causa.
Propriedades da causa do Universo: Craig prossegue com uma análise conceptual das propriedades que esta causa terá que ter. Não irei comentar essas propriedades, ou defender a análise de Craig, ou comentar as objecções de Millican a estas propriedades, mas apenas cingir-me às objecções que Millican levanta às duas premissas do argumento.

Neste trecho, Millican levanta as seguintes objecções às duas premissas do Argumento Cosmológico "Kalam" (a numeração é minha, e as respostas são da minha responsabilidade, se bem que inspiradas nas respostas dadas pelo próprio Craig durante o debate):

Objecções à Premissa 1

1. Temos experiência de mudanças que observamos no dia-a-dia, e essas mudanças têm causas, mas são apenas re-arranjos de coisas existentes, nunca vemos algo surgir do nada, pelo que não é razoável, com base na nossa experiência quotidiana, esperar encontrar a criação do Universo a partir do nada; e se esta ocorreu, não é razoável esperar que a essa criação se aplique o mesmo tipo de causalidade.

Resposta: Esta não parece ser uma objecção à Premissa 1, mas uma objecção baseada na experiência quotidiana para criticar a ideia de criação do Universo a partir do nada. Mesmo quando Millican admite, "ex suppositione", que a criação a partir do nada ocorreu, ele apenas critica que esta tenha que envolver o mesmo tipo de causalidade que vemos nas coisas do dia-a-dia, pelo que ele não está ainda a negar que o surgimento do Universo tenha uma causa. Está apenas a dizer que a criação a partir do nada é contra-intuitiva, e que se ela ocorreu, poderá ter sido através de um outro tipo de causalidade. Estou de acordo com ambas as ideias, mas não vejo como estas ideias possam enfraquecer a Premissa 1. 

2. Todavia, partículas quânticas parecem surgir aleatoriamente do nada, e são evidências em segunda mão de que algo pode surgir do nada, de forma não-causal.

Resposta: Este é um erro frequente: tomar a materialização de partículas subatómicas a partir do vácuo quântico como um exemplo de algo surgir do nada. Acontece que o vácuo quântico não é "nada", mas sim uma realidade física concreta e estruturada, dotada de campos electromagnéticos e contendo partículas virtuais. Em resposta a esta objecção, Craig cita o filósofo de ciência Bernulf Kanitscheider, que acerca dos ditos eventos quânticos diz que estamos a lidar com "um processo causal que parte de um substrato primordial com uma rica estrutura física para um substrato materializado do vácuo. Admitidamente, este processo não é determinístico, e inclui aquele tipo fraco de dependência causal peculiar a todos os processos mecânicos quânticos" (Bernulf Kanitscheider, "Does Physical Cosmology Transcend the Limits of Naturalistic Reasoning?" in Studies on Mario Bunge's "Treatise," ed. Weingartner and G. J. W. Doen [Amsterdam: Rodopi, 1990], pp. 346-74).

É simplesmente absurdo defender que algo pode surgir absolutamente do nada. Ou seja, que algo pode começar a existir sem uma causa pré-existente que explique esse início de existência. Negar o princípio da causalidade é uma atitude irracional. Mais sobre isto na resposta à objecção seguinte.

Nota: Craig não está, na Premissa 1, a dizer que todos os eventos têm causa(s). Até poderia ser verdade (mas não é) que o exemplo quântico representaria um tipo de evento sem causa. A Premissa 1 diz que tudo o que começou a existir tem uma causa, e não que todos os eventos têm causas.

3. Todas as coisas que vemos a mudar têm causas físicas para essas mudanças. A nossa experiência diz-nos que tudo o que começou a existir tem uma causa física, e se o Universo inclui todas as coisas físicas, então parece óbvio que, no seu todo, o Universo não pode ter uma causa física; será então válido aplicar o princípio da causalidade a todo o Universo sem cometermos a falácia da composição (aplicar ao todo o que só é válido para a parte)?

Resposta: Curiosamente, Millican vem aqui em auxílio de Craig, dizendo precisamente que o Universo não pode ter uma causa física. Essa é uma das conclusões do argumento cosmológico defendido por Craig. Todavia, Millican erra ao afirmar que devemos duvidar da universalidade do princípio da causalidade, que pode não ser válido aplicar o princípio da causalidade a todo o Universo. 

Primeiro, algumas palavras sobre a falácia da composição. Um silogismo por composição, que argumenta da parte para o todo, pode ser falacioso ou não ser falacioso. Por exemplo, este silogismo opera da parte para o todo e, todavia, é perfeitamente válido:

P1) Esta parede é constituída por tijolos

P2) Todos esses tijolos são de betão

C) Logo, esta parede é de betão

Por isso, argumentar da parte para o todo pode ter os seus riscos, e podemos em certos casos cair na falácia da composição, mas também é possível argumentar validamente da parte para o todo. Não é evidente, como pretende Millican, que estamos a argumentar de forma falaciosa ao querer estender a todo o Universo o princípio da causalidade que constatamos no interior do Universo.

Mas o ponto mais importante é este: será que é razoável questionar a universalidade do princípio da causalidade? Não é difícil ver que o princípio da causalidade é universal e aplicável, não só a tudo o que conhecemos, mas também ao que ainda não conhecemos.

Podemos começar por reconhecer que todo o conhecimento científico e filosófico parte de dois axiomas, não demonstrados, que todos tomamos como verdadeiros sem provas:

a) toda a realidade é racional, tem uma estrutura regular assente em "leis" (regularidades) universais, ou seja, que são válidas em toda a parte e em todo o tempo

b) o intelecto humano é capaz de inteligir essa racionalidade da realidade; dito de outra forma, toda a realidade é inteligível, acessível ao nosso intelecto

Antes que alguém objecte que, ao presente, a Mecânica Quântica ainda não foi compatibilizada com a Relatividade Geral (o que é um facto), há que ter presente que todos os cientistas trabalham sob a hipótese de que essa compatibilização é possível, na esperança de que haja uma super-teoria que seja válida, quer na escala microscópica dos fenómenos quânticos, quer na escala macroscópica dos fenómenos cósmicos. Claramente, os cientistas trabalham com base nos axiomas acima referidos, que são aceites sem provas.

Ora, aceitar o princípio da causalidade implica o mesmo tipo de atitude perante os axiomas acima referidos. Aceitar que todos os fenómenos têm causas, que tudo o que muda, mudou por causa de algo que despoletou mudança, ou seja, que há sempre uma ou mais causas para explicar toda e qualquer mudança, é uma atitude perfeitamente compatível com esses axiomas porque tal atitude assume a racionalidade de toda a realidade. Tal atitude rejeita a possibilidade de fenómenos irracionais. Rejeita a possibilidade de contradições lógicas e também de contradições físicas. Toda a pessoa que considera racionais os axiomas acima referidos tem que, coerentemente, aceitar também a universalidade do princípio da causalidade.

Mas talvez o mais importante seja compreender, em termos metafísicos, o que está em jogo no princípio da causalidade. Toda a mudança implica o desaparecimento de algo e o aparecimento de algo novo. Quando uma coisa X muda para Y, X deixa de existir e Y passa a existir. 

(Evidentemente, este raciocínio só é válido para quem defende uma teoria A do tempo (segundo a nomenclatura de McTaggart). Está fora do âmbito deste texto defender a teoria A do tempo, mas para já, basta explicar que de acordo com a teoria A, o fluir do tempo é um fenómeno real, ou seja, o passado já não existe e o futuro ainda não existe. Nessa teoria, a mudança é um fenómeno real: quando X muda para Y, X deixa de existir eY passa a existir. De acordo com a teoria B, o fluir do tempo é uma ilusão, ou seja, o passado, o presente e o futuro existem sempre: então, a mudança não é um fenómeno real: X nunca deixa de existir e Y nunca começa a existir: X e Y são apenas "regiões" distintas de um mesmo objecto-bloco eternamente presente.)

Ora, o que é que explica que, a determinado momento, X mude para Y? O que explica é a causa, ou causas. Vamos supor que, como pretende Millican, certos fenómenos seriam não-causais... Isso quereria dizer que, em certos casos, X pode mudar para Y sem causa. Vejamos o que isso implica:

a) que X deixa de existir sem razão alguma, num momento específico (e não noutro momento)

b) que Y começa a existir sem razão alguma, num momento específico (e não noutro momento)

c) que X e Y estão sequenciados no tempo (Y surge quando X desaparece), sem razão alguma

Negar o princípio da causalidade equivale a "desligar" os eventos X e Y. Eles apenas surgem sucessivamente no tempo, mas nada os liga para além disso. Nada explicaria o desparecimento de X e o aparecimento de Y. A mudança seria inexplicável porque seria não causal. Esta manobra é anti-científica, ao pretender que certos fenómenos são essencialmente inexplicáveis (porque não causais).

Vejamos ao detalhe o caso do aparecimento "mágico" de Y, sendo que um mesmo raciocínio pode ser feito para o desaparecimento "mágico" de X. Mais, o aparecimento de Y nem sequer é "mágico", porque pelo menos para aqueles que acreditam em magia (eu não acredito em magia) existe o mago a operar a magia. Acreditar no aparecimento de Y sem causa é o mesmo que acreditar que Y começou a existir sem razão alguma. Mas se, obviamente, Y não existia antes de existir, porque é que começou a existir em determinado momento? Porque não cinco minutos antes? Porque não meia-hora depois? Negar o princípio da causalidade implica afirmar que o aparecimento de certa coisa Y (sem causa) é um fenómeno inteiramente desligado da realidade na qual essa coisa surge, de forma mágica e inexplicável, num certo instante inexplicável (e não noutro). Negar o princípio da causalidade implica postular eventos que estão como que "desligados" da teia de causas e efeitos que constitui a realidade, e então estaremos a atacar a estrutura racional da realidade, estrutura essa que não provámos, mas que todos tomamos como um axioma verdadeiro. Há quem tente ancorar o surgimento não causal de uma coisa Y nessa própria coisa Y, mas isso é irracional: se Y começa a existir, Y não pode ser a causa do começo da sua própria existência, senão Y teria que existir antes de começar a existir, o que é irracional. Por esta razão, se o Universo começou a existir, o Universo não pode ser a causa da sua própria existência. 

Em resumo...
Negar o princípio da causalidade em certos fenómenos é exactamente o mesmo que, perante as questões científica do "como" e filosófica do "porquê" de certos fenómenos, responder de forma anti-intelectual: "sem razão alguma"! Note-se que a resposta que se está a dar a essas questões nem sequer é apenas um modesto "não sabemos", ou um temporário "ainda não sabemos". É uma resposta absurda: "não há razão"! E assim, negar o princípio da causalidade é uma atitude literalmente irracional: negar a existência de razões para certos fenómenos, ou seja, afirmar a irracionalidade de certos fenómenos. 
E é fundamental, para responder às objecções de Millican, reparar que isto é também válido para a negação do princípio da causalidade em fenómenos não-físicos. Se o surgimento do Universo é, admitidamente, um fenómeno não-físico, pretender que esse surgimento é um processo não-causal implica a atitude irracional de negar toda e qualquer explicação para esse surgimento. Dizer que o Universo surgiu sem causa é abandonar os axiomas da racionalidade e da inteligibilidade da realidade. Dizer que o Universo surgiu sem causa é manifestamente não querer explicar esse surgimento. 
Se queremos continuar a acreditar que toda a realidade (mesmo não física) é racional e inteligível, então o princípio da causalidade tem que ser válido mesmo para fenómenos não físicos, ou seja, fenómenos em operação "fora" da realidade espácio-temporal do nosso Universo.

4. De acordo com a Relatividade Geral de Einstein, espaço e tempo fazem parte do nosso Universo; todas as causas, mesmo as inteligentes, actuam no tempo; se o tempo não existe "antes" do Universo, é difícil imaginar como é que a noção de causalidade se pode aplicar ao surgimento do Universo.

Resposta: Dado que, como vimos, não é razoável questionar o princípio da causalidade, resta apenas recordar o que o próprio Millican disse no início das suas objecções à Premissa 1: que o tipo de causalidade envolvido no surgimento do Universo pode ser diferente da causalidade que observamos nos processos a decorrer dentro do Universo. Será, certamente, outro tipo de causalidade, isso ninguém discute. Deverá ser um tipo de causalidade que não depende do tempo, visto que o tempo parece ser estrutural ao Universo e portanto, o tempo apenas existe quando o Universo já existe. A causa que opera o surgimento do Universo estará então a operar "fora" dos ditames do tempo. Isso significa que temos que admitir um âmbito maior ao conceito de causalidade, distinguindo pelo menos dois tipos de causalidade: processos causais temporais (os que vemos no dia-a-dia) e processos causais atemporais. Negar isto implica negar a universalidade do princípio da causalidade, e como vimos, isso é irracional.
Uma forma de tornar esta conclusão mais intuitiva é vermos que o próprio tempo é uma realidade dependente da existência de mudança física. O tempo está dependente da realidade da mudança física. Se o Universo não existisse, não haveria realidade física que pudesse mudar, e por isso, sem Universo não se pode falar propriamente do "passar do tempo". E, todavia, como vimos, ainda seria racional falar de causas a operar "fora" do tempo, dado o carácter universal do princípio da causalidade.

Objecções à Premissa 2

1. Há que distinguir o Universo local (que terá tido início no Big Bang) do Universo global (todas as coisas físicas); há cosmólogos que especulam acerca da existência de múltiplos universos: há diversas teorias que os prevêem, bem como modelos oscilantes ou evolutivos, com múltiplos Big Bangs; por isso, mesmo que o nosso Universo local tenha começado a existir com o Big Bang, pode haver uma causa física no Universo global que explique o início do nosso Universo local.

Resposta: O Teorema de Borde-Guth-Vilenkin também se aplica em Universos n-dimensionais, bem como a vários dos modelos oscilantes, desde que em média a taxa de expansão seja positiva:

"Our argument can be straightforwardly extended to cosmology in higher dimensions. For example, in the model of Ref. [15] brane worlds are created in collisions of bubbles nucleating in an inflating higher-dimensional bulk spacetime. Our analysis implies that the inflating bulk cannot be past-complete.
We finally comment on the cyclic universe model [16] in which a bulk of 4 spatial dimensions is sandwiched between two 3-dimensional branes. The effective (3+1)-dimensional geometry describes a periodically expanding and recollapsing universe, with curvature singularities separating each cycle. The internal brane spacetimes, however, are nonsingular, and this is the basis for the claim [16] that the cyclic scenario does not require any initial conditions. We disagree with this claim.
In some versions of the cyclic model the brane space-times are everywhere expanding, so our theorem immediately implies the existence of a past boundary at which boundary conditions must be imposed. In other versions, there are brief periods of contraction, but the net result of each cycle is an expansion. For null geodesics each cycle is identical to the others, except for the overall normalization of the affine parameter. Thus, as long as Hav > 0 for a null geodesic when averaged over one cycle, then Hav > 0 for any number of cycles, and our theorem would imply that the geodesic is incomplete."

2. O Universo global pode ser infinito no passado (não há nenhuma contradição nessa possibilidade).

Resposta: É verdade que, em si mesma, a afirmação de que o Universo (local ou global) é infinito no passado é uma afirmação que não contém contradição intrínseca. Todavia, surgem inúmeros problemas de postular um passado eterno para o Universo. Craig apresenta esses problemas no seu debate com Millican. Um dos problemas mais importantes é o de que postular a existência de quantidades infinitas de coisas ou de eventos leva a contradições. Por isso, as contradições não são intrínsecas à tese do Universo eterno, mas surgem naturalmente assim que começamos a pensar acerca de como seria um Universo eterno.

3. Pode-se evitar a conclusão do Teorema de Borde-Guth-Vilenkin alegando que o Universo não esteve sempre em média em expansão, e que esteve em contracção até certo momento antes do Big Bang.

Resposta: Sim, é verdade que basta a taxa média de expansão (Hav) não ser positiva para o teorema de Borde-Guth-Vilenkin não se aplicar. Todavia, Millican nem sequer se dá ao trabalho de discutir os problemas dessa hipótese. Vejamos como Vilenkin explica estes problemas, lendo a seguinte sequência de perguntas feitas por Victor Stenger e respostas do próprio Vilenkin:

Mr. Stenger asked Mr. Vilenkin the following question,

Does your theorem prove that the universe must have had a beginning?

Vilenkin replied,

No. But it proves that the expansion of the universe must have had a beginning. You can evade the theorem by postulating that the universe was contracting prior to some time.

Vilenkin added,

This sounds as if there is nothing wrong with having contraction prior to expansion. But the problem is that a contracting universe is highly unstable. Small perturbations would cause it to develop all sorts of messy singularities, so it would never make it to the expanding phase. That is why Aguirre & Gratton and Carroll & Chen had to assume that the arrow of time changes at t = 0. This makes the moment t = 0 rather special. I would say no less special than a true beginning of the universe.

(Fonte: William Lane Craig's Arguments for God Refuted, o negrito é meu)

4. No estado actual do conhecimento cosmológico, é impossível ter qualquer confiança na informação que as nossas teorias possam dar acerca do que se passou "para lá" do Big Bang.

Resposta: E, no entanto, é bizarro que Millican tenha decidido usar este argumento, ao mesmo tempo que argumenta que existe um Universo global "para lá" do nosso Universo local. Ou usa o argumento do Universo global, defendendo-o o melhor que puder, ou então usa este argumento pela ignorância acerca do que se passa "para lá" do Big Bang. Não é coerente usar ao mesmo tempo dois argumentos contra a Premissa 2 que são mutuamente incompatíveis.
Tomada em si mesma, esta objecção também é estranha, quer em termos de Ciência quer em termos de Filosofia. Não faz sentido dizer que é impossível ter qualquer confiança na informação que as nossas teorias nos dão. As teorias não são perfeitas, mas também não são tão más ao ponto de não lhes podermos dar nenhuma confiança. Se não temos confiança no que nos dizem as nossas teorias, então não podemos usá-las para nada, incluindo para argumentar contra a Premissa 2.

5. Incompatibilidade entre a Relatividade Geral e a Mecânica Quântica; tudo o que sabemos acerca da física contemporânea nos sugere que nas escalas muito grandes e muito pequenas, as nossas intuições acerca do que faz sentido são guias pouco fiáveis para chegarmos à verdade.

Resposta: Este argumento é bastante vago. Em primeiro lugar, não se entende qual é o alvo da crítica de Millican: quando, e de que forma, é que Craig usou intuições para defender o seu argumento? Em segundo lugar, apesar de ser verdade que a Relatividade Geral e a Mecânica Quântica continuam a não estar unificadas numa teoria "macro", Millican não explica em que é que isso afecta a Premissa 2. Uma leitura atenta do artigo de Borde, Guth e Vilenkin mostra bem em que é que este artigo é diferente de tentativas anteriores para demonstrar a finitude do passado do Universo:

"In such spacetimes, it is natural to ask if the Universe could also be past-eternal. If it could, eternal inflation would provide a viable model of the Universe with no initial singularity. The Universe would never come into existence. It would simply exist. 
This possibility was discussed in the early days of inflation, but it was soon realized [6, 7] that the idea could not be implemented in the simplest model in which the inflating universe is described by an exact de Sitter space. More general theorems showing that inflationary space-times are geodesically incomplete to the past were then proved [8]. One of the key assumptions made in these theorems is that the energy-momentum tensor obeys the weak energy condition. Although this condition is satisfied by all known forms of classical matter, subsequent work has shown that it is likely to be violated by quantum effects in inflationary models [9, 10]." (artigo completo aqui)

Borde e Vilenkin já tinham demonstrado em 1994, que espaços-tempo inflaccionários são geodesicamente incompletos no passado (ver nota de rodapé 8 no artigo referido), mas os autores tinham partido então de um pressuposto importante: o de que a condição de energia fraca não era violada. Mas à escala quântica, em modelos inflaccionários, essa condição poderia ser violada por efeitos quânticos. Ora o teorema de 2001 não usa esse pressuposto, pelo que não se vê de que forma é que a incompatibilidade entre a Relatividade Geral e a Mecânica Quântica poderá afectar as conclusões do teorema de 2001:

"Our argument shows that null and time- like geodesics are, in general, past-incomplete in inflationary models, whether or not energy conditions hold, provided only that the averaged expansion condition Hav > 0 holds along these past-directed geodesics. This is a stronger conclusion than the one arrived at in previous work [8] in that we have shown under reasonable assumptions that almost all causal geodesics, when extended to the past of an arbitrary point, reach the boundary of the inflating region of spacetime in a finite proper time (finite affine length, in the null case)."