terça-feira, 9 de março de 2010

Somos nómadas e peregrinos...

“…Somos nómadas e peregrinos. É assim que devemos entender a Terra, a nossa vida, a forma de nos relacionarmos uns com os outros. Somos apenas hóspedes na Terra; mas isto também nos faz recordar a nossa peregrinação mais profunda e misteriosa, faz-nos lembrar que a Terra não é a nossa meta definitiva, que estamos a caminho de um mundo novo e que também as coisas da Terra não são as derradeiras e definitivas. Mal ousamos dizê-lo, porque somos censurados por aqueles que alegam que os cristãos não se preocupam com as coisas terrenas e descuram a edificação da cidade nova neste mundo, porque julgam ter sempre o pretexto de se refugiarem no outro. Mas isto não é verdade. Aquele que se lança de cabeça no mundo e para quem a Terra é o único céu transforma a Terra num inferno, porque faz dela o que ela não pode ser, porque quer ter nela o que é definitivo…”


Neste pequeno excerto da extraordinária reflexão Pascal “Mistério Pascal”, o então Cardeal Joseph Ratzinger, agora o nosso Papa Bento XVI, exorta-nos a viver como nómadas, como peregrinos que buscam uma chegada, mas cientes que o seu caminho não está traçado, cientes que o caminho se faz andando. Não se trata de profetizar uma forma de vida inconsequente, leviana ou irresponsável; pelo contrário, trata-se de anunciar a vida como ela é e assim descobrir como viver na plena consciência da nossa condição. E é a consciência desta condição de nómadas que somos na Terra que nos liberta e nos leva aos outros, com a simplicidade de quem busca e de quem leva tudo o que possui no coração.

Deus fez-Se homem em Jesus Cristo, desceu à nossa condição e entrou no tempo e no espaço. Foi verdadeiramente homem, igual a nós, no sofrimento, na exposição à tentação, na dor, no medo, foi igual a nós em tudo excepto no pecado. Foi através do amor infinito que se esgota e renasce no próximo que Deus feito homem salvou a humanidade, que a libertou do pecado anunciando o mandamento novo, “Que vos ameis uns aos outros, como Deus vos Ama”. Acabaram-se as trevas, o medo, o sofrimento eterno.

Jesus Ressuscitado mostrou-nos que o Amor vence a morte e nos transporta para a dimensão da vida eterna. Mas só quem vive como nómada nesta Terra pode descobrir esse amor extraordinário que Jesus anuncia no mandamento novo. Quem, por seu turno, procura na “Terra o seu único céu transforma a Terra num inferno”.

Nesta altura em que nos preparamos para a festa da Páscoa, lembremos a partida de Jesus para o deserto, onde jejuou durante quarenta dias e foi tentado três vezes por Satanás. De todas as vezes que o Diabo tentou Jesus, começou sempre da mesma forma, “Se Tu és filho de Deus…”. Tal como nos lembra o Papa Bento XVI no seu livro Jesus de Nazaré, os soldados romanos, quando jogavam sortes sobre as vestes de Jesus, repetiam esta mesma frase, “Se és filho de Deus, desce da cruz”. Esta frase tão típica da humanidade tem, como podemos constatar ao ler os Evangelhos, origem no Diabo, fonte de todo o mal e de todo o pecado. E é uma frase do Diabo porque, de facto, a sua essência nega Deus, ou seja, limita a nossa capacidade de amar porque procura condicionar o Amor e a verdade de Deus à nossa lógica.

Na Carta Encíclica Spe Salvi o Santo Padre abordou as principais correntes ateístas que marcaram profundamente a história dos últimos séculos da sociedade ocidental (a Revolução Francesa, o Marxismo, entre outras) e constatou que todas elas, sucessivamente, se revelaram falsas, sobretudo porque procuraram obter da Terra algo que ela não lhes podia dar, ou seja, “o seu único céu”, aquele que é definitivo. Este abandono de Deus, que tem levado a humanidade a tanto sofrimento, consubstancia-se na incapacidade de amar o outro pelo outro. Porque quando amamos o outro apenas por aquilo que ele é, descobrimos nele algo de extraordinário, algo de divino, descobrimos nele o milagre da criação de Deus. Mas se retiramos Deus das nossas vidas deixamos de ter a capacidade de amar o outro pelo outro e passamos a amá-lo em função de nós próprios, das nossas necessidades, desejos, projectos e aspirações... Deixa de ser um amor gratuito e passa a ser um amor que cobra. Deixamos de cumprir o Mandamento Novo e tornamo-nos seres que, em lugar de viver para servir, vivem para ser servidos. E assim conhecemos o frio da noite e o horror do penhasco porque estamos irremediavelmente sós.

É este ateísmo que se enraíza na tentação, porque como lembra o Papa Bento XVI, mais uma vez no seu livro Jesus de Nazaré, “Faz parte da natureza da tentação a sua aparência moral: não nos convida directamente a realizar o mal, seria demasiado grosseiro. Finge que indica o melhor: abandonar finalmente as ilusões e empregar eficazmente as nossas forças para melhorar o mundo. Além disso, apresenta-se com a pretensão do verdadeiro realismo. O real é o que se constata: poder e pão. Comparadas com isto, as coisas de Deus aparecem irreais, um mundo secundário de que verdadeiramente não há necessidade”, que guiou a humanidade à encruzilhada onde se encontra:

- Colonizações e descolonizações absolutamente desregradas que foram e são fonte de tanta angústia, sofrimento e morte;

- Guerras e acções terroristas que devastam a humanidade;

- Metade do mundo a viver abaixo do limiar da pobreza, numa situação de total falta de dignidade, sem acesso aos bens mais básicos como a água potável e a alimentação;

- Em contra-ciclo, a outra metade do mundo vive na sociedade da abundância, na era dos direitos que ignoram os deveres: reclama para si todos os direitos, mesmo os supérfluos, e ignora de uma forma fria e insensível o sofrimento dos seus irmãos que nada têm;

- A economia mundial que se desliga progressivamente da política e passa a olhar o lucro como o fim último de toda a sua actividade, esquecendo que a razão da sua existência é o desenvolvimento da humanidade;

- A imoralidade que se confunde com a moralidade, o ataque à família, o aborto, a droga...

Tudo isto nos revela dois mundos distintos; um mundo de pessoas que vivem sem as condições mínimas, mesmo sem que aquelas que a dignidade humana pressupõe; e um outro mundo que vive centrado no conforto, mas que dá mostras de sofrer de uma doença maligna: basta olhar para o aumento das taxas de suicídio, para o disparo do consumo dos anti-depressivos, para a solidão que ataca sem remorso.

Tudo isto se consubstancia na ausência de Deus.
Tudo se consubstancia na procura do único céu, do céu definitivo, aqui na Terra.

Contudo, como peregrinos que somos, fazemos a nossa caminhada para a Páscoa. Tal como Jesus, passamos agora pelo deserto; mas, também como Jesus, depende de nós resistir à tentação. Jesus veio anunciar-nos a boa nova do perdão e da esperança. Basta que coloquemos Deus no centro das nossas vidas para podermos edificar na Terra a Civilização do Amor. Como dizia S. Paulo “Agora vemos por um espelho, e de maneira obscura, o que depois veremos face a face. Agora conheço apenas uma parte, mas não conhecerei conforme também sou conhecido. Agora permanecem fé, esperança, amor, todos juntos. Mas o maior de todos é o amor.”

Tal como Cristo Crucificado, façamos também nós com que o mundo fique suspenso pelo nosso amor e assim descobriremos a beleza da nova civilização, a civilização do amor, que a Ressurreição de Jesus anunciou.

Uma Santa Páscoa,
Duarte Macieira Fragoso

3 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom post. Bem estruturado, construtivo, a tocar na ferida mas de uma forma redentora. É gratificante saber que há mais quem esteja "acordado" para a verdadeira necessidade de seguir a Deus, de mudar o mundo, de procurar através do Amor a redenção. É exactamente isso que a ressurreição de Cristo anunciou. Aliás esse abandono de Deus eu diria mais, é um abandono da própria essência do Homem através da perda de valores e na procura de uma Ilusão qualquer no mínimo obscura. No fundo o ateismo é esse, não é não ter iconografia ou não ir à missa aos domingos, é perder-se na vida por não lhe encontrar mais o significado, é não deixar entrar Deus na nossa vida.

Uma Santa Páscoa também e obrigado pela mensagem

Duarte

O Insuspeito disse...

Muito belo, este post!

Subscrevo-o inteiramente.

Uma Santa Quaresma e um abraço aos administradores do "Espectadores"!

Jose disse...

Com todo o respeito, a mim parece-me um texto de conteúdo demagógico e contraditório e explico:
1º "Somos nómadas e peregrinos..."
Somos, quem? Apenas conheço os miseráveis.Sendo assim, não reconheço à Hierarquia da Igreja, a moral para esta pregação...
2º"os cristãos não se preocupam com coisas terrenas..."
Haja pachorra!
3º "Aquele que se lança de cabeça no mundo..."
Se for pela implantação da liberdade, da compaixão, da solidariedade, do AMOR, pela "vida para todos e vida em abundância", esse, transforma a Terra num inferno, mas para os "sepulcros caiados de branco" e acaba em geral, espetado numa cruz qualquer!