Porque nasceu o mito do "Papa de Hitler"
«By the middle of 1997, I was in a state of moral shock. The material I had gathered amounted not to an exoneration but to an indictment more scandalous than Hochhuth's. The evidence was explosive. It showed for the first time that Pacelli was patently, and by the proof of his own words, anti-Jewish. It revealed that he had helped Hitler to power and at the same time undermined potential Catholic resistance in Germany. It showed that he had implicitly denied and trivialized the Holocaust, despite having reliable knowledge of its true extent. And, worse, that he was a hypocrite, for after the war he had retrospectively taken undue credit for speaking out boldly against the Nazi persecution of the Jews.» - John Cornwell
Por detrás da obra Hitler's Pope, de John Cornwell (1999) esconde-se um fenómeno cultural de grandes proporções e que se manifesta nesta e noutras muitas formas. Uma crise no seio do catolicismo, crise essa que divide uma corrente crescente e revolucionária, chamada frequentemente de "corrente liberal", de uma corrente conservadora e tradicionalista.
John Cornwell, ex-seminarista, abandonou uma possível carreira no sacerdócio em 1965 (1), tendo-se debatido deste então com a situação da Igreja Católica na modernidade, e com o rumo que ela deveria, segundo ele, tomar. Muitas das atitudes de Cornwell demonstram uma opção decidida pelas ideias ditas "liberais".
Tentemos mergulhar um pouco nestes termos polarizados: "liberal" e "conservador". São termos que provêm do mundo da política, e que, na minha opinião, são usados abusivamente quando surgem fora do seu domínio original. No presente caso, são usados no domínio da religião, um domínio no qual não deveriam ser usados. E explico porquê...
A Política regula a organização e a gestão das sociedades. Neste sentido, apesar de existir objectividade em princípios políticos quase universalmente aceites hoje em dia (como por exemplo, partindo da "Declaração Universal dos Direitos do Homem"), a aplicação destes princípios, a forma pela qual eles são instituídos, sempre foi fortemente condicionada pelo local e pelo tempo.
Cada sociedade, cada civilização, procura construir a sua forma de fazer política. E em política, faz sentido o uso de termos como "conservador" para representar aqueles que, tendencialmente, dão prioridade ao carácter perene das ideias em política, e "liberal" para representar aqueles que, tendencialmente, dão prioridade ao carácter transitório das ideias em política.
Muitos liberais poderiam contestar as minhas palavras, sobretudo aqueles que são adeptos da teoria do Progresso, segundo a qual a Humanidade tem progredido ao longo dos últimos séculos, e está neste momento a progredir, sendo que a espera um futuro que só poderá ser risonho, desde que continuem a ter espaço na sociedade as políticas liberais.
Os políticos liberais consideram que o liberalismo "liberta" progressivamente a Humanidade. Ou seja, desde que se seja "liberal", desde que se contestem ideias excessivamente perenes, a Humanidade seguirá o seu caminho de Progresso. Segundo os políticos liberais, as ideias demasiado rígidas e fixas limitam o Progresso.
É evidente que é natural e que há espaço, em Política, para a polarização nestas duas formas de pensar a organização das sociedades: uns dando primazia à manutenção de um cerne de ideias perenes e outros dando primazia à constante mudança com vista a um aperfeiçoamento que consideram inevitável e que não deve ser travado.
Contudo, em religião, estes conceitos polarizantes, quando aplicados, dão sempre resultados insatisfatórios. Ultrapassando a esfera do Ocidente e do Médio Oriente, espaço geográfico das religiões abraâmicas, e usando uma expressão mais geral como a de "doutrinas tradicionais", as sociedades nas quais a espiritualidade se revestiu da forma de uma doutrina organizada institucionalmente sempre valorizaram o carácter perene dessa doutrina. Por natureza, as grandes tradições espirituais da Humanidade são perenialistas. Sucede isto fora do espaço religioso abraâmico com o Hinduísmo, com o Taoísmo, com o Budismo, entre outras tradições. Uma ideia antiga como o Mundo é a de que uma doutrina espiritual, para ser verdadeira porque divinamente inspirada, deve ser perene. E isto porque deve vigorar sempre, independentemente do tempo e do espaço. Porque uma doutrina espiritual, sendo de origem transcendente, não deve vogar ao sabor das volições humanas. Assim, torna-se evidente que o pensamento tradicional em religião é algo de perfeitamente natural e está intimamente associado a esta ideia de "perene" de qualquer mensagem que se venera como sendo divinamente inspirada.
Por estas razões, deveria ser entendido de uma vez por todas que qualquer doutrina espiritual digna desse nome é tradicional, ou seja, apoia-se na transmissão ("traditio") idealmente inalterada de doutrinas perenes.
Contudo, e a partir dos finais do século XVIII, começou a crescer na Europa uma corrente intelectual que advogava para a Religião uma fórmula semelhante à do liberalismo político: a Religião, para progredir, ou seja, para acompanhar um Progresso que se crê imparável, deveria estar preparada para rever as suas doutrinas, para adaptá-las ao tempo e ao espaço.
É, então, a partir do desprezo da essência tradicional de qualquer religião, e do Cristianismo em particular, que nasce no Ocidente a ideia de uma "liberalização" da Religião. Esta ideia, a par com uma crescente contestação à centralização representada na figura do Papa, contestação essa que principiou com a Reforma protestante, daria lugar, no século XIX, à ideia de um "retorno às origens", a um cristianismo que fosse mais próximo do que se julgava serem os ensinamentos de Cristo, de um cristianismo que fosse despojado do peso da autoridade papal e que "aligeirasse" a doutrina do seu carácter impositivo e dogmático.
Simultaneamente, o significado atribuído pela opinião pública ao termo "dogma" também sofreu uma radical transformação, passando a ser visto como um termo pejorativo.
Na sua acepção grega original, a palavra "dogma" era usada em dois contextos diferentes: significava ora um decreto ora uma opinião. Mais tarde, já num contexto cristão, a palavra foi usada pela primeira vez para designar os decretos resultantes do Primeiro Concílio de Jerusalém (2). Para os cristãos, a palavra "dogma" tinha agora o significado de doutrina, de postulado ou axioma religioso, e era usada para fixar em conceitos sintéticos a tradição oral apostólica. Mas a bem sucedida campanha de diabolização da palavra "dogma" trá-la, em pleno século XX, para junto da opinião pública já numa forma distorcida. O "dogma" seria então o instrumento privilegiado do poder da Igreja Católica, uma organização vista como déspota, que prezaria o crente obediente e que não questiona, e que silenciaria com tirânicos "dogmas" o crente desafiador e interrogativo.
Como se vê, a intrusão desadequada do termo "liberalismo" no seio da intelectualidade católica moderna, a par com a perda do significado primevo do conceito de "dogma", tão valorizado pela patrística muito antes ainda de a Igreja de Roma se revestir do poder e autoridade de que mais tarde veio a usufruir, provocou a actual situação de evidente fractura.
Tal qual como num qualquer Parlamento, os católicos vão-se dividindo hoje em dia entre os chamados "católicos liberais", também vistos convenientemente por uma certa opinião anti-clerical como "modernos" ou "moderados", um grupo cada vez mais crescente e dominante mesmo nalgumas camadas da hierarquia da Igreja, e os chamados "católicos conservadores", que nalguns sectores violentamente anti-clericais são mesmo chamados de católicos "fundamentalistas", ou "fanáticos".
Assim, nos dias de hoje, a adesão de um católico à Tradição perene da Igreja, conforme chegou aos nossos dias através das vidas e obras de de homens e mulheres durante dois mil anos, é sinal de falta de espírito crítico, de obediência cega às hierarquias, de um receio de modernidade que só pode ser fruto da ignorância e da falta de espírito científico.
Por outro lado, aquele católico que contesta todas as principais facetas da doutrina católica é visto como alguém com maturidade intelectual, como alguém que tenta trazer a Igreja para os dias de hoje, para a modernidade.
É neste contexto que tantos católicos se sentem divididos. John Cornwell é apenas mais um desses católicos indecisos entre a atracção pela revolução doutrinal e pela contestação à hierarquia e o receio perante um evidente apodrecimento da essência do ser católico, o chamado "sensus catholicus". Na sua entrevista à Crisis Magazine, Cornwell dá já sinais claros dessa sua permanente dúvida interior, dando as suas palavras um exemplo disso mesmo quando ele fala acerca do empobrecimento crescente da liturgia nos tempos modernos:
«... é que o Missal Romano foi menosprezado de uma forma que contribui para este processo geral de Pelagianismo na Igreja, roubando-nos do nosso sentido de imerecimento e também roubando-nos, no próprio coração da Missa, do sentido da Trindade.»
Na presente situação, é normal que muitos católicos se sintam confusos como Cornwell, contudo é de censurar a atitude precipitada (presumo alguma boa fé nas suas intenções, não arriscando a tese de premeditação) do autor em escrever o grave erro histórico que é o seu livro Hitler's Pope.
Ao constatarmos que, de entre os vários nomes dos actuais críticos e detractores de Pio XII, encontramos católicos da chamada corrente "liberal", ficamos com a nítida impressão de que por detrás de uma aparente crítica académica à actuação deste Papa, está toda uma crítica macroscópica à Igreja e à forma como esta lida com a modernidade. Ao criticar o estatismo e a autoridade de Pio XII, Cornwell não está a procurar esclarecer, de modo académico, um episódio da recente história europeia mas sim a provocar um acentuar da contestação à Igreja Católica. Cornwell conseguiu com a sua obra, conscientemente ou não, motivar um grande número de católicos para a "revolução liberal". Pasmo-me ao vê-lo em 2004, apenas quatro anos volvidos da publicação da sua polémica obra, tão preocupado com questões de preservação litúrgica quando ele é o principal responsável pelo relançamento, na viragem do século XX para o século XXI, do mito do "papa de Hitler" na opinião pública.
Nas fileiras católicas "liberais" encontramos muitos dos detractores de Pio XII, e citando apenas alguns nomes referidos por David Dalin na sua recente obra The Myth of Hitler's Pope, temos: os ex-seminaristas Garry Wills (autor de Papal Sin) e John Cornwell, juntamente com o ex-sacerdote James Carroll, autor de Constantine's Sword - The Church and the Jews - a History. Une-os a vontade de promover uma agenda liberal: juntamente com a contestação à hierarquia surgem outras contestações, nomeadamente à moral sexual da Igreja e aos métodos contraceptivos, à questão da licitude do aborto, à questão da homossexualidade, da ordenação sacerdotal de mulheres, do divórcio católico, entre tantas outras questões "fracturantes".
Apesar de John Cornwell ter, em grande parte, acatado as contestações às suas premissas historicamente infundadas (3), a verdade é que toda esta campanha de "liberalismo" católico foi aproveitada, como não podia deixar de ser, pelos radicalizados sectores anti-clericais, que não perderam a oportunidade para louvar o "academicismo" do trabalho de Cornwell e a utilidade e validade do seu trabalho. Evidentemente, aos sectores anti-clericais interessará tudo o que possa dividir o universo católico. A afinidade verificada por muitos dos anti-clericais com os católicos ditos "liberais" é apenas aparente: os primeiros vêem os últimos como úteis e necessários para fazer soçobrar o que resta do edifício católico.
Como católico que seria rapidamente classificado como "fanático" por certos radicais ateus ou mesmo por católicos, escrevo estes textos como exortação aos católicos do nosso tempo, para que façam duas coisas antes de tomar uma posição considerada "liberal" ou "conservadora":
1. Em relação a cada questão fracturante, tentar estudar a fundo a questão, obter os documentos essenciais, procurar as fontes, tentar compreender ambos os lados da questão, tanto os defensores como os detractores
2. Regressar a um estudo sério do catolicismo; o "sensus catholicus" pode e deve ser nutrido com a leitura, com o aprofundamento da cultura cristã pessoal de cada católico.
Um católico consciente, nos dias de hoje, não pode tomar uma decisão pessoal contra o Papa ou contra a Igreja Católica apenas baseando-se nos "media", veículo comunicativo saturado de ruído em relação a estes temas, sem sequer dar a si mesmo a possibilidade de saber o que diz a Igreja sobre cada assunto.
O mito do "Papa de Hitler" nasceu pouco depois da morte de Pio XII. E é, embora sendo central, apenas mais uma das muitas peças de intenção anti-católica que, infelizmente, é também promovida por católicos e não só pelos anti-clericais.
É todo o viver tradicional religioso que está ameaçado pela actual "kulturkampf" anti-católica. É uma guerra silenciosa, ignorada pelos "media", considerada inexistente e exagerada pelos inimigos da Igreja. Mas é uma guerra evidente para todos aqueles que já se deram conta das ameaças de uma secularização excessivamente anti-clerical com ambições totalitárias e que visa a erradicação do viver religioso das sociedades modernas.
É por isso mesmo que o Rabi David Dalin, autor da obra The Myth of Hitler's Pope, consciente da sua responsabilidade na preservação do legado espiritual judaico, se sentiu obrigado a repor a verdade acerca do justo Eugenio Pacelli, Papa Pio XII. Também Dalin sente os efeitos desta secularização radical no seio do próprio judaísmo. Todo e qualquer homem ou mulher que sinta a profundeza espiritual da sua tradição, seja ela cristã, muçulmana, judaica, ou outra qualquer, sentir-se-á necessariamente solidário com esta urgência: deter ou tentar travar esta guerra cultural anti-católica.
Antes de a tentarmos travar, em primeiro lugar, temos que nos dar conta de que ela existe.
No decurso do estudo da História, ao procurarmos encontrar a verdade acerca de cada assunto, não devemos temer o que vamos encontrar: apenas a Verdade liberta. Para mim, esta é uma das mais importantes lições de qualquer fé: a Verdade liberta.
(1) Crisis Magazine, Interview with John Cornwell
(2) Jean Borella, Ésotérisme Guénonien et Mystère Chrétien, p. 108.
(3) "(...) I did not object to those who criticized the arguments and disputed the historical evidence. But I was dismayed by those who used ad hominem arguments, claiming that I was not a Catholic and disputing that I had started out intending to defend Pius XII.", na entrevista à Crisis Magazine atrás citada.