quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A irreverência solvente

No vampiresco blogue Jugular, atirou-se recentemente, à queima-roupa, contra o uso de títulos honoríficos.

Isto vem a propósito de mais uma mania dos nossos tempos, mania essa popularizada pelo uso "ad nauseam" das palavras "irreverente" ou "irreverência". Sabe-se lá porque voltas maradas, essas palavras ganharam estatuto. Porque raio seria bom ser-se "irreverente"?

Trata-se de mais um exemplo do uso da distorção de certas palavras para provocar distorções mentais. Do mesmo modo que se chama "homossexualidade masculina" à sodomia, ou "interrupção voluntária da gravidez" ao abortamento, chama-se "irreverente" ao mal educado.

A irreverência, como a palavra indica, é a atitude que consiste em recusar, ou não demonstrar, reverência para com alguém. Usada pontualmente, para com uma pessoa que manifestamente não a merece, a irreverência pode ser justificada. No entanto, elevar a irreverência a filosofia de vida é uma estupidez: é advogar a falta de respeito. É ser-se mal educado.

A autora do texto mostra-se muito perturbada com o uso do título "Dom" para Bispos, juntamente com outros títulos usados, desde sempre, para com figuras eclesiásticas: "Sua Eminência" (só para Cardeais, Eng. Sócrates, só para Cardeais!) ou "Sua Santidade". Claro está que a autora é anticatólica, pois este tipo de guerrilha ideológica traz a marca do anticatolicismo.

Mas, para tentar disfarçar o seu anticatolicismo primário, a autora ataca também o uso de "Dom" para o representante da Casa Real de Portugal, D. Duarte de Bragança.

Segundo a autora, quando uma pessoa faz uso destes títulos honoríficos isso implica "a sua fidelidade e obediência a essa confissão". Logo, quem trata D. Duarte por "D. Duarte" teria que ser monárquico. Ou quem trata D. Manuel Clemente por "D. Manuel Clemente" teria que ser católico.

Ora isto é absurdo. A irracionalidade é proferida pela própria autora do texto: "os títulos religiosos só fazem sentido no contexto da confissão em causa e da respectiva hierarquia". Em que ficamos?

1) Ou os títulos "fazem sentido", pois são bem aplicados, ou seja, a pessoas que os merecem

2) Ou os títulos "não fazem sentido", pois a distinção que eles implicam é artificial ou falsa

A autora não se decide.
Prefere a via irracional do relativismo. Para a autora, o cristão faz bem em tratar com reverência a figura eclesiástica, pois vê nela algo de distinto e dotado de valor.
Mas já o não cristão faz bem em não tratar com reverência a figura eclesiástica, pois não vê nela nada de distinto ou dotado de valor.

Isto é contraditório. Ou a pessoa tem algo de distintivo e de valor, ou não tem. Para ser coerente, a autora deveria dizer que é absurdo um cristão tratar uma figura eclesiástica com reverência. Pois, em coerência, a autora deveria negar a razoabilidade dessa reverência.

Há também, na autora, uma confusão fatal entre Estado e Sociedade. A Sociedade não é o Estado, nem o Estado determina o que é a Sociedade. Essa confusão fá-la pensar que a adopção pública dos títulos honoríficos de algum modo comprometeria a laicidade do Estado (no caso da reverência a figuras da Igreja) ou o seu republicanismo (no caso da reverência à Casa de Bragança).

Ora é importante afirmar que, se o Estado é laico e não confessional, a Sociedade não tem que o ser. Está por demonstrar (boa sorte...) de que forma é que a sociedade portuguesa é laica, no sentido de não cristã.

Para além de serem um sinal de educação, de respeito, de dignidade, os títulos honoríficos fazem parte ainda do protocolo. Um exemplo basta: em linguagem diplomática, um Papa trata-se sempre, mas sempre, por "Sua Santidade", e isso não compromete, de forma alguma, a pessoa que o faz com o catolicismo. Para ser coerente, a autora deveria pedir a revogação imediata das ordens honoríficas portuguesas, sobretudo das "infames" (porque de origem cristã) Ordens de Avis, Cristo e Santiago e Espada. Achará a autora, em coerência com a sua posição, que estas três ordens honoríficas em particular, pela sua matriz cristã, denigrem o laico e republicano Estado Português?

Nas ideias da autora existe ainda, latente, mais uma distorção ideológica. A autora pretende defender uma visão anti-hierárquica da sociedade, mas isso é absurdo. Sem beliscar a inerente igual dignidade de todo o ser humano (dignidade que a autora contesta, ao defender o aborto, por exemplo), a sociedade humana é hierárquica. É a única forma de ser estruturada. Um juiz tem autoridade. Um médico também. Nas várias áreas de competência, a própria idade da pessoa serve como medida de autoridade. Regra geral, numa mesma área de competência, uma pessoa com mais idade deverá ter mais autoridade, sustentada na sua experiência de vida. Independentemente da sua profissão ou formação, todas as pessoas de idade avançada merecem o respeito e a reverência das pessoas mais novas.

Isto chama-se educação.
E idealmente recebe-se em casa, desde o berço.
É na família, estrutura eminentemente hierárquica (será que as filhas da autora mandam na mãe?), que tudo começa. Isso não implica, de forma alguma, que um pai é um ser humano de maior valor que o seu filho. Implica apenas que há uma ordem, uma estrutura, uma hierarquia.

A autora defende a irreverência solvente. A igualdade artificial que tudo destrói e que deixa a sociedade em cacos. Defende que a falta de educação deve ser elevada a qualidade, a algum tipo bizarro de imparcialidade. É a abolição da ordem.

Em relação às figuras eclesiásticas, elas merecem todo o respeito, consideração e reverência, por parte de qualquer pessoa bem educada. Qualquer ateu português bem formado, bem educado e patriota (esse pecado moderno), reconhecerá na Igreja Católica uma das mais enérgicas forças da formação da portugalidade, e uma coluna inabalável da cultura nacional. Não precisa de ser católico. Basta ser bem formado. Qualidade que, é certo, escasseia a olhos vistos...

A destruição da reverência terá como consequência a destruição da ordem.
A dinâmica é semelhante à da oferta-procura na economia de mercado. Um bem muito procurado ganha valor. Um bem pouco procurado deprecia-se. Se buscarmos a reverência, teremos uma sociedade melhor, mais educada, mais civilizada, mais respeitadora. Se buscarmos a irreverência termos a anarquia.

Mas, se tivesse que apontar o erro mais perigoso do texto em questão, seria o erro da confusão entre Sociedade e Estado. É típico das derivas totalitaristas o fazer desta confusão. Não creio que a autora a faça de forma consciente. Mas certamente que a sua "ética de esquerda" ficaria abalada se a dita autora se desse conta do totalitarismo que está, na prática, a advogar, ao querer, coercivamente, igualar a sociedade (longe de ser laica) ao Estado, ou seja, impor à sociedade (longe de ser laica) o laicismo de Estado.

12 comentários:

António Parente disse...

Muito bem.

Espectadores disse...

Obrigado, António!
Bom Ano!

Ricardo Silvestre disse...

"Em relação às figuras eclesiásticas, elas merecem todo o respeito, consideração e reverência, por parte de qualquer pessoa bem educada."

Sim, principalmente aquelas que abusam do poder que têm, que cometem crimes, que manipulam os outros para ganho pessoal, que espalham dogmas e fantasias. Essas então, temos de usar "as suas iminências".

Anónimo disse...

«Em relação às figuras eclesiásticas, elas merecem todo o respeito, consideração e reverência, por parte de qualquer pessoa bem educada.»

Não estou a imaginar o Bernardo a sentir-se confortavel enquanto trata um bipo da IURD por "vossa reverendissima eminencia", ou coisa que o valha.

Darius disse...

«Em relação às figuras eclesiásticas, elas merecem todo o respeito, consideração e reverência, por parte de qualquer pessoa bem-educada.»

D. Corleone e outros que tais, também ostentavam e ostentam tal “título”. Talvez por uma questão de educação e patriotismo ou pela forma enérgica e fé inabalável com que resolvem determinadas situações.

A atitude reverencial não é educação, é subserviência.

Anónimo disse...

"Não estou a imaginar o Bernardo a sentir-se confortavel enquanto trata um bipo da IURD por "vossa reverendissima eminencia", ou coisa que o valha."

"Para a autora, o cristão faz bem em tratar com reverência a figura eclesiástica, pois vê nela algo de distinto e dotado de valor.
Mas já o não cristão faz bem em não tratar com reverência a figura eclesiástica, pois não vê nela nada de distinto ou dotado de valor. [...] Ou a pessoa tem algo de distintivo e de valor, ou não tem. Para ser coerente, a autora deveria dizer que é absurdo um cristão tratar uma figura eclesiástica com reverência."

Um bipo da IURD ou tem distintivo de valor ou não.

Espectadores disse...

Ricardo,

Viva!
Bem-vindo!

«Sim, principalmente aquelas que abusam do poder que têm, que cometem crimes, que manipulam os outros para ganho pessoal (...) Essas então, temos de usar "as suas iminências".»

Não, é claro que não.
Eu deixei isso claro:

«Usada pontualmente, para com uma pessoa que manifestamente não a merece, a irreverência pode ser justificada.»

Como é evidente, não assinei de baixo a tua fantasia acerca de espalhar "dogmas e fantasias". Sei que falas também contra o cristianismo, e nesse contexto, não faz sentido criticar dogmas (porque são bons e válidos) nem criticar fantasias (porque inexistentes).

Um abraço!

PS: Mesmo assim, faz sentido, nalgumas situações menos extremas, recorrer ao título para respeitar o cargo, "in extremis", mesmo quando o seu ocupante não o merece. Por exemplo, tratando por "Sua Santidade" o Papa Alexandre VI (que nada teve de santo), ou um caso ainda mais extremo, tratando por "Sua Excelência" o Sócrates. Neste último caso, mesmo que isso fira a língua e provoque suores frios, há que manter o respeito a Portugal, e temos que pensar, com muita, muita força, que quando dizemos "Sua Excelência o Primeiro Ministro José Sócrates" estamos, na verdade, a amar Portugal. A reverência ao cargo deve prevalecer, mesmo quando o ocupante do cargo é um traste.

Espectadores disse...

Caro Darius,

«A atitude reverencial não é educação, é subserviência.»

Pode dar muito gozo, assim de repente, escrever umas frases curtinhas e que deixam um eco bonito para trás. Até parece que acabámos de dizer uma verdade, não é?

Mas, antes de escrevermos frases dessas, convém ver se não são asneiras pegadas.

Não tem V. Exa. reverência para com o Senhor, seu Pai, ou para com a Senhora, sua Mãe? Eu, pelo menos, procuro ter... Isso é subserviência ou respeito? Educação? Princípios?

Espectadores disse...

Caro CSousa,

«Um bipo da IURD ou tem distintivo de valor ou não.»

O que é um "bispo da IURD"?
Desconheço qualquer aplicação legítima do título de Bispo a um elemento dessa organização.

Cumprimentos

Anónimo disse...

Tem razão :X

Cumprimentos

Darius disse...

Caro Bernardo
(ou deverei dizer D. Bernardo)

«A atitude reverencial não é educação, é subserviência.»

O problema do Bernardo, além dos preconceitos, está em confundir o significado e “sentido” das palavras. Pode-se ser educado sem ser reverente ou subserviente, basta assumir determinados princípios e valores.

“… educação / reverência …”

Ser educado é respeitar os outros, as suas ideias, ideais, opções e convicções. É, sendo coerente com as nossas ideias, tolerar e criticar, de forma racional, o que cremos estar errado.

Ter reverência é ser submisso, é “curvarmo-nos” pelo que é proposto. É estar condicionado à partida por preconceitos que rejeitam o pensamento livre e o respeito por algo que possa contrariar determinada crença.

“… sodomia / homossexualidade …”

Segundo o dicionário Priberam, sodomia é a prática do coito anal.

Sodomia é a “ferramenta” utilizada por (demasiados) clérigos para trucidarem a auto-estima e o amor-próprio de (demasiadas) crianças inocentes. Quiçá em nome de uma qualquer divindade, já que, terão sido protegidos por uma dita “eminência”.

Homossexualidade é, segundo parece, algo mais que isto, algo que ultrapassa a nossa compreensão (minha e do Bernardo) mas que, apesar disso, deve ser respeitada como uma opção válida por se tratar de um direito legítimo de qualquer cidadão. Além de que não prejudica nem ameaça o que quer que seja.

Darius

PS.: Para sermos respeitados temos que respeitar os outros. Caso contrário, só podemos exigir, à semelhança do que faz o Bernardo, uma atitude reverencial ou de subserviência.

Espectadores disse...

Caro Darius,

«(ou deverei dizer D. Bernardo)»

Não, não deve.
Não tenho esse título.

«Pode-se ser educado sem ser reverente ou subserviente, basta assumir determinados princípios e valores.»

O Darius usa a palavra "reverente" como sinónimo de "subserviente". Não sei que dicionário usou, mas não são sinónimos. Não estou a misturar reverência com subserviência.

«Ter reverência é ser submisso, é “curvarmo-nos” pelo que é proposto.»

Não, não é.
O seu problema parece ser um problema de dicionário. Ter reverência é ter respeito, ter consideração. É precisamente nesse sentido que um ateu pode ter respeito e consideração para com um sacerdote da Igreja Católica sem ter que lhe ser subserviente (ou sequer crente).

«Segundo o dicionário Priberam, sodomia é a prática do coito anal.»

Sem dúvida! Essa é a prática óbvia dos homens homossexuais.

«Sodomia é a “ferramenta” utilizada por (demasiados) clérigos para trucidarem a auto-estima e o amor-próprio de (demasiadas) crianças inocentes.»

Não entendo este seu "à parte". Está a alegar que eu concordo com a sodomia praticada por alguns clérigos sobre crianças? Para que serviu esta sua frase? Se critico a sodomia, é por demais evidente que a critico também (e até mais) quando é praticada por clérigos.

«Homossexualidade é, segundo parece, algo mais que isto, algo que ultrapassa a nossa compreensão (minha e do Bernardo)»

Não tenho grandes dificuldades em compreender a homossexualidade. Trata-se da atracção desordenada, de cariz sexual, por alguém do mesmo sexo.

«deve ser respeitada como uma opção válida»

Não misture as coisas. Eu respeito a pessoa com tendências homossexuais enquanto pessoa, e não tenho que respeitar a sua opção. A opção pela homossexualidade não tem nada de respeitável e não é nada válida.

Uma comparação: eu posso respeitar um alcoólatra enquanto pessoa sem ter que respeitar a sua opção desregrada pelo consumo exagerado de álcool.

«por se tratar de um direito legítimo de qualquer cidadão.»

Esta sua frase não faz qualquer sentido. Aplique-a ao caso do alcoólatra ou do toxicodependente em geral: a auto-destruição de uma pessoa pode ser retratada como "um direito legítimo de qualquer cidadão"?

Ou seja, uma pessoa opta por um estilo de vida errado e destrutivo. Deve a sociedade assobiar para o lado, dizendo que se trata de um seu direito legítimo?

«PS.: Para sermos respeitados temos que respeitar os outros»

Se me apontar uma só falta de respeito, serei o primeiro a corrigi-la.

Cumprimentos