(publicado em simultâneo no Afixe)
Criticarei, de novo, um artigo do Diário Ateísta.
Poderão alguns questionar-se acerca do porquê deste meu interesse pelo Diário Ateísta.
O interesse é já antigo. Pessoalmente, atraem-me as questões sociológicas que a leitura deste site suscita.
Deixei de intervir há largos meses com comentários no Diário Ateísta porque o diálogo se tornou, infelizmente, numa conversa de surdos.
Mas continua a parecer-me útil criticar alguns dos textos que surgem neste site ateísta. Infelizmente, é pela mediocridade que me sinto obrigado a tecer críticas a este site ateísta. Por isso, longe de querer que as minhas críticas sejam críticas ao ateísmo, estas críticas são puramente culturais e históricas, e não incidem sobre qualquer questão pística.
Não há proselitismo católico nas minhas críticas.
Tenho apenas uma intenção didáctica. A intenção de dirigir um convite à reflexão, ao estudo, e a um aprofundamento de cultura histórica e religiosa aos membros do Diário Ateísta.
Creio que, para se combater eficazmente um adversário, é pertinente conhecê-lo bem.
Creio também que não é o que sucede com o Diário Ateísta, onde todos os dias vemos demonstrações de lacunas culturais, que a meu ver, dado o número elevado de visitas ao Diário Ateísta, prejudicam a imagem do próprio ateísmo na Internet, pelo menos aos olhos dos visitantes mais cultos.
Vamos ao teor da crítica de hoje.
André Esteves é o autor de um artigo intitulado "Doutorados e Ignorantes".
Segundo André Esteves,
"Nalgumas igrejas evangélicas e fundamentalistas americanas tornou-se um valor comum não tirar cursos universitários, ou ser-se «intelectual» porque são coisas seculares ou da carne."
O passado evangélico de André Esteves poderá, parece-me, explicar o seu interesse pelos movimentos evangélicos norte-americanos. Sou da opinião que muitos desses movimentos cristãos têm posturas fanáticas (prefiro este termo ao termo "fundamentalista", uma vez que me parece bom ter-se fundamentos). Nisto concordo com o André Esteves.
Contudo, parece-me inadequado usar estes casos de fanatismo evangélico norte-americano para extrapolar conclusões gerais relativamente ao universo dos crentes.
Assim, a frase que se segue, de André Esteves, é para mim uma generalização inaceitável:
"O medo de se tornar num «liberal» é palpável entre os jovens crentes das igrejas, para os quais uma universidade reputada ou o prosseguimento de estudos além da licenciatura, se tornaram sinónimos da perdição espiritual."
Antes de mais, faz-me especial confusão que se use o termo "liberal" para classificar a opção pela formação académica complementar à licenciatura. É um "liberal" aquele que prossegue os seus estudos após o grau de licenciatura?
Depois, a generalização. Partindo dos evangélicos norte-americanos, André Esteves partilha da opinião de que certas posturas fanáticas são para generalizar aos "jovens crentes das igrejas".
Por fim, chegamos ao ponto onde me parece se revelar com mais nitidez a lacuna cultural que me fez escrever esta crítica:
"Por cá, Deus demonstra-se complicado: a Conferência Episcopal definiu que para se ser bispo em Portugal tem que se ser doutorado. Antigamente aos desígnios de Deus para serem compreendidos bastavam a tonsura e aljubeta. Agora o capelo também se torna necessário."
É curiosa esta afirmação, que revela que André Esteves desconhece a obra e vida dos doutores da Igreja, sobretudo a de S. Tomás de Aquino. O aquinate é uma figura incontornável no reavivar da vida universitária medieval. Usando como tema central da sua actividade intelectual a conciliação entre o saber clássico grego (nomeadamente, a obra de Aristóteles) e a revelação cristã, S. Tomás de Aquino revolucionou a vida académica, dando um significado rejuvenescido e profundo ao que é o trabalho "universitário".
As "quaestiones disputatae" de S. Tomás primam por um esforço de rigor dialético e argumentativo, no qual uma tese é colocada em análise, sendo fornecidos argumentos a favor, e argumentos em contrário.
Todo o processo de uma "quaestio" é conduzido de forma a fazer surgir a conclusão de modo natural e justo, considerando todos os dados relevantes no processo.
A universidade moderna não seria igual ao que é hoje sem S. Tomás de Aquino. Parece-me pertinente conhecer apenas as linhas gerais da vida e obra desta figura chave da intelectualidade europeia, para que se possam evitar considerações destas, que revelam da parte do senhor André Esteves uma postura proselitista duvidosa, que só pode funcionar com uma audiência desprovida das mais elementares referências culturais.
Para saber mais sobre S. Tomás, recomendo vivamente o texto introdutório do professor Luiz Jean Lauand.
Bernardo
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