terça-feira, 21 de junho de 2005

O Diabo à luz da doutrina judaica e cristã

A pedido do Pedro Fontela, eis alguns esclarecimentos rápidos e muito sucintos sobre esta questão. Como são vários os termos empregues para representar o Diabo, convém ter alguma precaução, porque cada termo possui um contexto e um significado diferentes.

Comecemos por Satanás, ou Satã.
Vem do hebreu "shatan", que significa simplesmente "adversário".
Era neste sentido que a palavra era usada vulgarmente pelos hebreus, no sentido de um adversário ou de um inimigo (pessoa individual ou colectividade).
Elaine Pagels, na sua obra The Origins of Satan, defende a tese de que o Diabo era, originalmente, apenas o inimigo.
É totalmente verdadeiro o que o Pedro Fontela afirma, a saber, que a demonologia judaica e a demonologia cristã são muito diferentes.
Uma das características mais notórias é que a demonologia do Antigo Testamento fica àquem, no que toca à complexidade e ao detalhe, de outras demonologias do Médio Oriente, como a dos Assírios, a dos Acadianos, ou a do Avestá (Iranianos).
Embora o Antigo Testamento seja rico em detalhes angeológicos (arcanjos, serafins, querubins, anjos), é pobre no que toca à demonologia.
Mas tal não significa que ela não exista. O Mal está presente na história da serpente, no Génesis. Está em Job, em Reis, no livro de Zacarias. O Levítico adverte contra bruxarias. Isaías fala em demónios (cap. 34, vs. 14). O livro de Tobias (se bem que não faça parte da Bíblica hebraica, mas sim da Cristã) fala no demónio Asmodeus. E há muito mais casos...
Por tudo isto, não me parece correcta a leitura excessivamente académica de Elaine Pagels, que simplifica uma questão complexa. É correcto que os Judeus usavam a palavra "satã" para designar os seus adversários. Mas isso não chega para afirmar que eles não possuiam uma genuína demonologia nem professavam a crença numa criatura personificadora do Mal.

Outro esclarecimento impõe-se no que toca ao termo Lúcifer, que quer apenas dizer "Portador da Luz". Lúficer é a palavra latina para o hebreu "helel", ou o grego "heosphoros". Representa quase sempre a "estrela da manhã", ou seja o planeta Vénus, que se vê logo na aurora (Job 11:17, Salmo 109:3). Lucífer é um termo teologicamente inadequado para representar o Diabo enquanto criatura caída, uma vez que a tradição sempre considerou que o termo apenas se aplicaria ao Diabo na sua condição luminosa antes da Queda (o próprio nome o indica).
Como curiosidade, o termo "Lúcifer" é também aplicado a outras personagens, como por exempo ao Rei da Babilónia (Isaías 14:12), ao Sumo Sacerdote Simão, filho de Onias (Eclesiastes 50:6), e mesmo ao próprio Jesus Cristo (Pedro II 1:19; Apocalipse 22:16). E isto porque a palavra quer mesmo dizer "o portador da Luz", e neste sentido serviu para ser usada em vários contextos.
Por esta razão, o termo correcto, na doutrina católica, para a personificação do Mal é Satã, Satanás, ou simplesmente Diabo.
Etimologicamente, a palavra "diabo" vem do latim "diabolus", que por sua vez vem do grego "diabolos", e representa o líder das hostes demoníacas.

No Novo Testamento, são mais evidentes as referências ao Diabo, como o trecho de Mateus que referi no post anterior. O Apocalipse faz também várias referências ao Diabo, e de uma grande riqueza teológica.
A doutrina católica fixou de forma bastante literal a existência do Diabo e dos demónios:

"Diabolus enim et alii dæmones a Deo quidem natura creati sunt boni, sed ipsi per se facti sunt mali." - Concílio Latrão IV

("o Diabo e os outros demónios foram criados por Deus bons na sua natureza mas eles próprios se fizeram maus.")

Tenho a perfeita noção de que aflorei apenas a ponta do icebergue. Se o Pedro quiser, poderemos ir mais ao detalhe nalguma questão.

Referências:
Catholic Encyclopedia - Devil
Catholic Encyclopedia - Lucifer
Catholic Encyclopedia - Demonology

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