segunda-feira, 11 de julho de 2005

Sincrético, José? Eu?

Meister José, um velho amigo destas andanças blogosféricas, honrou-me na semana passada com esta menção, num artigo intitulado Música celestial:

O Bernardo Motta, outro indivíduo de mistério, autor publicado, vindo das trevas do esoterismo e chegado à claridade do Catecismo, católico tradicionalista mas sincrético, atento leitor de René Guénon mas também de Ananda Coomaraswamy.

Como diria o outro, olha que não, José, olha que não!
É, de facto, bem feito para mim que o José me chame de sincrético. E, não fosse eu estar agora aqui prontinho para tentar fugir com o rabo à seringa, estaria tudo dito! Mas vou tentar safar a minha pele...
Meu caro José, na parte do católico tradicionalista acertas em cheio, se bem que a expressão é perigosa, uma vez que permitiria supor que eu tenho alguma coisa a ver com os católicos também ditos "tradicionalistas" que não reconhecem nenhum papa como válido desde o Concílio Vaticano II. Não é o meu caso. Por isso, deixando bem claro que me sinto plenamente integrado na Igreja Católica, não deixo de ser profundamente tradicionalista.

Agora vamos à questão do esoterismo e do sincretismo, que é bem mais espinhosa.
Tal como o dia é luminoso e a noite é escura, eu tenho a minha fé católica como a parte segura, luminosa, "diurna" da minha personalidade.
Por outro lado, a parte "noctura" de mim procura incessantemente tudo o que se mexe espiritualmente. Sou um curioso nato, e é algo que tenho em comum contigo, José. Mas a minha curiosidade leva-me a sair, à noite, da segurança da Cidade de Deus para os terrenos inexplorados onde há tanta coisa para descobrir.
Fora da cidade, também haverá profetas?
Penso que sim, e é isso que me faz sair, por vezes, da segurança das fronteiras bem definidas. Serei esoterista? Acho que não, sou apenas um curioso destas temáticas. Serei sincrético? Julgo que não, porque dos esoterismos retiro, sobretudo, interesse intelectual, e não opção religiosa ou pística. Seria sincrético se, paralelamente à fé católica, eu mantivesse crenças e convicções de fé externas a ela. Não é o caso.
Contudo, pela maneira como escrevo, ou quando defendo a qualidade que existe, inegavelmente, em certos esoterismos, é natural que eu pareça sincrético. René Guénon, e Ananda Coomaraswamy são os exemplos que levantas, José, e são bons exemplos. São exemplos do esoterismo sério e culto. Não os ler é, a meu ver, perder um manancial de intelectualidade. Isso não quer dizer que eu adira à totalidade (ou a grande parte) das suas ideias. René Guénon é um autor com imenso para ensinar a católicos, mas a sua obra contém também uma série de ideias incompatíveis com a fé católica.
Discernir é difícil, mas sabes bem que isso me diverte imenso.
Somos muito parecidos em termos de fé, José, e ambos tivemos uma conversão tardia (eu sempre fui "formalmente" católico, mas só me converti de facto já em idade adulta, quando finalmente pude pensar de forma madura sobre estes assuntos). Dizem que os que se convertem tardiamente se tornam fanáticos. Espero que isso não esteja a acontecer comigo. Para combater isso é que eu sou, como tu, intelectualmente irrequieto e inquieto. Isso é bom. Desde que seja temperado com bom senso!
Um abraço,
Bernardo

domingo, 10 de julho de 2005

Desabafos

Depois de ler a animada troca de comentários entre o Machogrosso e o CA relativamente ao meu último post, apeteceu-me escrever estes desabafos. Peço a quem me lê que veja isto como meros desabafos, cujo reduzido valor serve como boa desculpa para a linguagem ligeira por mim utilizada.
Agradecendo a ajuda do Machogrosso, meu amigo transatlântico, que muitas vezes por cá passa para me demonstrar que eu não estou louco, e que, graças a Deus, ainda há pessoas a tentar pensar e a colocar questões com clareza, queria tecer alguns comentários, à laia de desabafo, depois de ter lido o que escreveu o CA.
O CA recorda-me uma fase da minha vida, na qual eu também diabolizava as "estruturas" do Vaticano, e procurava colocar todas as minhas ignorâncias dentro dessa grande caixa negra de "futilidades vaticanas". Assim, nessa óptica, eu era um protestante sem o saber. Era um protestante que ia à missa, convicto de que não precisava de toda aquela "tralha" inventada por um Vaticano "burocrático" e "déspota".
Mas caramba, eu tinha então vinte anos e era muito ingénuo!
Estava profundamente formatado pela opinionite inculcada pelos mass media.
Desde essa altura, tenho feito um esforço considerável para me instruir em doutrina católica, para aprender o máximo que posso sobre a História da Igreja Católica, para esclarecer as minhas inúmeras dúvidas junto de fontes sérias e credíveis.
Faz-me uma imensa confusão que se considerem as ilacções doutrinárias da Congregação para a Doutrina da Fé como coisas acessórias para a fé do católico.
E porquê?
Porque, do meu estudo das heresias e da história agitada dos primeiros séculos de cristianismo, recordo-me dos excessos de certas seitas que, detestando todo o tipo de estrutura hierárquica, procuravam, numa quase anarquia, o que eles achavam que era "cristianismo original".
A hierarquia foi estabelecida, à luz da doutrina, pelo próprio Jesus Cristo, que escolheu a figura de Pedro como cabeça do seu movimento:

Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam

Não poucas vezes, vejo crentes católicos repudiarem dogmas como o da Infalibilidade Papal, ou o da Imaculada Conceição de Maria, só porque são, para eles, "invenções modernas". Estes dogmas, mesmo surgindo na era moderna, são os frutos da tradição apostólica, do desabrochar das potencialidades da fé crística. Será a maçã, recentemente formada, de natureza diferente da árvore que a gerou?
A tradição apostólica faz da Igreja Católica um dos mais complexos, mas também dos mais coerentes, movimentos que a Humanidade já conheceu.
É da mais simples e discreta humildade que o crente, perante uma naturalíssima dúvida, dê o benefício a uma doutrina com dois mil anos de tradição.
Por outro lado, é da mais abjecta arrogância recorrer à diabolização do Vaticano (transformado em máquina infernal de fúteis invenções doutrinárias) para tentar ocultar atrás de uma opinionite aguda graves deficiências de cultura católica.
Como é possível que um crente, profundamente desconhecedor das questões fundamentais do cristianismo, seja tão egocêntrico ao ponto de achar que a sua opinião ignorante, puro flatus voci, vale alguma coisa contra a solidez de temas tratados durante milénios pelas mais brilhantes cabeças que o Ocidente conheceu?
Usa-se, hoje em dia, e abusa-se, de termos como "tolerância", ou "liberdade de expressão", ou ainda "liberdade de opinião".
Nada tenho a opor-me a estes termos, nem às liberdades por eles defendidas. Contudo, ninguém me poderá negar o direito a expor este vício moderno, a opinionite, pela qual a ignorância pretende subir ao palanque para arrancar à força os louros que antes cabiam à sabedoria.
Opiniões, todos as podemos ter.
Contudo, evitemos confundir opiniões com factos.
É um facto que a doutrina católica professa a existência do Diabo, dos seres intermédios (vulgo "anjos" e "demónios"), bem como usa rituais adequados para lidar com certas situações de real possessão demoníaca.
A opinionite dos católicos "modernistas", cuja intelectualidade está já irremediavelmente materialista, positivista e empirista, nada poderá fazer contra este facto, mesmo que hoje em dia poucos sejam aqueles que o reconhecem como facto.
Ajudados como estão por, também eles "modernos" e "progressistas", teólogos que hoje em dia já são sobretudo "kantianos", "hegelianos", "schopenauerianos", "cartesianos", "jamesianos", teólogos que já não se interessam pela santa doutrina que herdaram dos nossos antepassados na fé, os modernos crentes católicos tentam transformar o catolicismo numa grande tenda, onde cabem todos, bem ao estilo dos tempos modernos.
No que me toca, da minha miserável condição de ser humano que nunca poderá evitar a "marcha do mundo", não me calarei e não prescindirei da denúncia dos vícios modernistas, que se infiltram ininterruptamente e subrepticiamente na doutrina católica.
Os católicos "modernistas", não se dão conta que, de facto, são meros instrumentos nesta marcha inexorável em direcção à dissolução do temporal. Lêem, entusiasmados, um Teilhard de Chardin (criador da excentricidade do "deus evolutor"), com o fascínio com que deveriam ler um São Tomás de Aquino!
O que quererá isto dizer sobre o catolicismo moderno, e sobre o destino que muitos lhe querem imprimir?

sexta-feira, 1 de julho de 2005

Instrução sobre o Exorcismo

SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ

INSTRUÇÃO SOBRE O EXORCISMO

24 de Setembro de 1985

Excelentíssimo Senhor,

Há alguns anos, certos grupos eclesiais multiplicam reuniões para orar no intuito de obter a libertação do influxo dos demônios, embora não se trate de exorcismo propriamente dito. Tais reuniões são efetuadas sob a direção de leigos, mesmo quando está presente um sacerdote.

Visto que a Congregação para a Doutrina da Fé foi interrogada a respeito do que pensar diante de tais fatos, este Dicastério julga necessário transmitir a todos os Ordinários a seguinte resposta:

1. O cânon 1172 do Código de Direito Canônico declara que a ninguém é lícito proferir exorcismo sobre pessoas possessas, a não ser que o Ordinário do lugar tenha concedido peculiar e explícita licença para tanto (1º). Determina também que esta licença só pode ser concedida pelo Ordinário do lugar a um presbítero dotado de piedade, sabedoria, prudência e integridade de vida (2º). Por conseguinte, os srs. Bispos são convidados a urgir a observância de tais preceitos.

2. Destas prescrições, segue-se que não é lícito aos fiéis cristãos utilizar a fórmula de exorcismo contra Satanás e os anjos apóstatas, contida no Rito que foi publicado por ordem do Sumo Pontífice Leão XIII; muito menos lhes é lícito aplicar o texto inteiro deste exorcismo. Os srs. Bispos tratem de admoestar os fiéis a propósito, desde que haja necessidade.

3. Por fim, pelas mesmas razões, os srs. Bispos são solicitados a que vigiem para que - mesmo nos casos que pareçam revelar algum influxo do diabo, com exclusão da autêntica possessão diabólica - pessoas não devidamente autorizadas não orientem reuniões nas quais se façam orações para obter a expulsão do demônio, orações que diretamente interpelem os demônios ou manifestem o anseio de conhecer a identidade dos mesmos.

A formulação destas normas de modo nenhum deve dissuadir os fiéis de rezar para que, como Jesus nos ensinou, sejam livres do mal (cf. Mt 6,13). Além disso, os Pastores poderão valer-se desta oportunidade para lembrar o que a Tradição da Igreja ensina a rrespeito da função própria dos Sacramentos e a propósito da intercessão da Bem-Aventurada Virgem Maria, dos Anjos e dos Santos na luta espiritual dos cristãos contra os espíritos malignos.

Aproveito o ensejo para exprimir a Vossa Excelência meus sentimentos de estima, enquanto lhe fico sendo dedicado no Senhor.

Joseph Card. Ratzinger
Prefeito


Retirado de Instrução sobre o Exorcismo - Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, do site oficial do Vaticano.

Posto isto, com um texto tão claro como este, como é possível que tantos católicos ainda considerem que a existência do Diabo e dos demónios é matéria opcional de fé?
E como é possível que tantos católicos não entendam a necessidade do rito de exorcismo, mesmo que ele apenas tenha que ser usado raríssimas vezes?