Preâmbulo
Ensina a escolástica que a "alma humana" é a "forma substancial" do ser humano.
A palavra "alma" tornou-se, nos dias de hoje, num alçapão linguístico. Não por culpa do termo em si, certamente, mas devido à ignorância filosófica. Crentes usam-na sem conhecer as suas raízes filosóficas, não crentes repudiam-na como se se tratasse de jargão supersticioso e obscuro. A ignorância está na base destas atitudes erradas.
É, por isso, cada vez mais premente a recuperação das bases filosóficas do conceito, a defesa da justeza dessas bases, e o vincar da importância do mesmo, sobretudo no diálogo entre filosofia e ciência.
Filosofia e Ciência
A filosofia e a ciência são companheiras no eterno trabalho de estudo do mundo natural. Uma não serve para nada sem a outra.
A base da ciência é empírica: está no uso dos sentidos para obter informação sobre a realidade sensível que nos rodeia. A evolução tecnológica tem permitido levar as fronteiras dos sentidos do ser humano para limites surpreendentes, sendo hoje possível descobrir com os mesmos cinco sentidos aspectos da realidade que desconhecíamos por completo. No entanto, a evolução tecnológica não altera em nada o carácter empírico da ciência.
A base da filosofia é intelectual: está no uso da razão humana para compreender, compilar, unificar e estruturar o conhecimento científico.
Certos cientistas trabalham sem se darem conta de que, no dia-a-dia, filosofam (bem ou mal) sobre dados empíricos.
Por outro lado, certos filósofos especulam "ad libitum" sem se preocuparem com o confronto das suas teorias com os dados empíricos.
Este "divórcio", na prática, entre os dois pilares do conhecimento humano tem gerado dissabores, equívocos e atrasos no seu desejável progresso.
A alma e os seus vários tipos
Antes de passarmos à questão filosófica da forma substancial, há que fazer alguns esclarecimentos sobre terminologia, no âmbito do quadro filosófico que defendemos (que é o da filosofia clássica tomista-aristotélica).
Como se disse, a alma humana é a forma substancial do ser humano. Mas a alma, em geral, é a forma substancial dos seres vivos.
O termo "alma" vem do latim "anima". Todo o ser vivo tem alma, porque todo o ser vivo está animado por definição (está vivo). A alma distingue o ser vivo da matéria inanimada. No entanto, há diferenças importantes nos vários tipos de alma, consoante as faculdades que esta apresenta em cada classe de ser vivo.
Há seres vivos cuja actividade fisiológica apenas consiste na nutrição e na reprodução: é o caso dos membros do reino vegetal.
Há seres vivos cuja actividade fisiológica, para além da nutrição e da reprodução, inclui ainda a locomoção e a sensação (o uso dos sentidos): é o caso dos membros do reino animal. Alguns dos membros deste reino têm ainda faculdades de memória, que lhes permitem armazenar no seu sistema neuronal determinados padrões obtidos por via sensorial. O chamado "instinto" impele estes animais a executar certas acções quando um determinado padrão sensorial se lhes apresenta, sem que no entanto exista intelecção e compreensão desses padrões.
Por fim, há seres vivos que, para além de tudo isto, ainda apresentam actividade intelectiva e racional: é o caso (único) dos seres humanos. São os únicos seres capazes de abstracção intelectual, ou seja, de formar ideias abstractas que transcendem os dados empíricos.
Forma substancial e alma
A forma substancial, termo filosófico, designa a forma (composição, arranjo, estrutura) única e irrepetível de um dado agregado material. Na tradição filosófica clássica, a forma substancial dos seres vivos recebe o nome de "alma".
A forma substancial é uma realidade indetectável pelos sentidos, ou seja, só é "detectada" com o raciocínio filosófico próprio do intelecto humano. Por isso, a forma substancial não é um termo científico, mas sim filosófico. Não pode ser provada pelo método científico, mas é demonstrável como necessária e essencial para o pensamento humano.
Estamos em crer que o equívoco fatal do Intelligent Design, não obstante tratar-se de uma sugestão interessante e merecedora de atenção, está em procurar provas empíricas para a realidade filosófica que é a forma substancial das coisas (neste caso, dos seres vivos).
Forma substancial como princípio da individuação
A noção filosófica de individuação está em crise na filosofia moderna, mas não há razões de fundo para tal, senão a incompreensão de muitos filósofos modernos.
1. É possível individuar alguma entidade? Por exemplo, um átomo de Hidrogénio?
Não só é possível como é forçoso. A actividade intelectiva do ser humano está dependente da sua capacidade inata para distinguir coisas, mesmo quando pertecem a uma mesma categoria (real ou artificial). Uma certa corrente filosófica, bem antiga mas que costuma ressurgir de tempos a tempos com novas vestes, quis afirmar que as distinções eram todas artificiais, e que as coisas que nos pareciam diferentes eram, afinal, parte de um mesmo Todo indistinto.
Ora, isto é um absurdo: é razoável defender a distinção das coisas como uma realidade concreta, que o nosso intelecto é capaz de apreender, contra quem defende que as distinções são subjectivas, ou seja, são criações do nosso intelecto subjectivo. No entanto, é inegável que este trabalho de distinção, apoiando-se nos sentidos, é um trabalho filosófico.
É possível falar de uma entidade, enquanto tal, atendendo aos conceitos de "coesão" e de "estabilidade". Se uma dada entidade permanece estavelmente coesa, por muito ou por pouco tempo, mesmo usando o actual sentido da palavra "estabilidade" na moderna Teoria do Controlo, então essa entidade tende a realimentar negativamente toda e qualquer perturbação externa até certo limite. Por exemplo: nos animais ditos de "sangue quente", uma perturbação como a descida ou subida da temperatura ambiente é compensada por mecanismos internos de regulação térmica, que permitem que a temperatura do corpo não saia do seu valor estável. É através da compensação de perturbações que o ser vivo consegue resistir, coeso, a factores exteriores que o poderiam destruir. Algo de análogo sucede com a estabilidade de entidades inanimadas: é pela força da atracção gravítica gerada pelo campo gravítico da Terra que esta se mantém coesa e não se desfaz no vazio do espaço. É essa capacidade de auto-preservação que marca a fronteira entre uma entidade e outra, e que nos permite que as consigamos distinguir.
É evidente que tanto o ser vivo, como a Terra, como o átomo de Hidrogénio, todos têm um tempo de existência finito, seja ele pequeno ou grande. Enquanto um determinado átomo de Hidrogénio mantiver estável a sua coesão, poder-se-á falar "nesse átomo", ou "desse átomo": ele está individuado.
2. Como se individua um determinado átomo de Hidrogénio perante outros átomos de Hidrogénio?
Não pode ser com base apenas na sua posição no tempo ou no espaço. Isso não basta. Suponhamos que fixamos a nossa atenção numa zona limitada do espaço. Um observador que vigie esse espaço num instante t1 e lá veja um átomo de Hidrogénio poderia depois fechar os olhos e vigiar o mesmo espaço mais tarde no instante t2. Se visse de novo um átomo de Hidrogénio, estaria a ver o mesmo, mas noutra posição (ou na mesma), ou estaria perante um átomo diferente do que viu no início?
Poderíamos dizer que, com a precisão suficiente, seria possível diferenciar os átomos: afinal, poderíamos usar, para os distinguir, factores de medida como a distância do electrão ao núcleo, ou a evolução temporal da trajectória do mesmo. Mas, por muito improvável que tal seja, poderia dar-se o caso de tais factores serem idênticos nos dois casos. Em todo o caso, tais distinções, à escala atómica, são muito difíceis, entre outras razões, por causa do princípio da incerteza de Heisenberg, e à nossa escala, são também muito difíceis pela complexidade material das coisas que nos rodeiam. Sabemos distinguir uma maçã de uma pêra. Mas, perante maçãs idênticas, com a mesma cor, com o mesmo peso, sem diferenças macroscópicas, temos um problema: só uma análise mais detalhada permite uma distinção segura. E o problema não é apenas distinguir, mas saber que a maçã A, aqui e agora, será reconhecida como a mesma maçã A, noutro local e noutro tempo. Atrelado ao problema da distinção, costuma vir o da correlação.
É por isso que a simples observação, por muito sofisticada, precisa e potente que seja, não chega para a individuação. A observação tem limites. Duas coisas distintas podem ser tão parecidas entre elas que iludem as nossas faculdades de observação. Deve-se defender, em filosofia, um realismo moderado, no qual as coisas tenham existência real, independentemente de nós as conseguirmos observar, bem ou mal, ou de nós as conseguirmos distinguir, bem ou mal. Mesmo que tivéssemos maus aparelhos de medida, uma maçã que fosse metida num navio de Lisboa para Nova Iorque seria a mesma maçã em Nova Iorque que era em Lisboa, mesmo que lá ninguém a conseguisse identificar como a maçã que saiu de cá.
O que distingue um átomo de Hidrogénio de outro átomo de Hidrogénio, ou o que distingue uma maçã de outra maçã, é a forma substancial. A forma substancial é o princípio da individuação. É a causa filosófica que faz uma coisa ser única e individual, mesmo que essa coisa possa pertencer a uma classe ou categoria de coisas com uma ou mais propriedades comuns.
Estamos a entrar na crítica questão filosófica dos "universais". Categorias como "maçãs" ou "pêras" são categorias reais ou são meras convenções humanas? Não falamos dos nomes que damos às categorias, mas sim das próprias categorias. Se aceitamos os "universais" como categorias de coisas com propriedades em comum, então é fundamental que tomemos algum princípio de individuação das várias instâncias dentro de uma categoria. Esse princípio é que nos salva de não confundir, filosoficamente, uma maçã com outra parecida, dentro da categoria das maçãs.
Conclusão
Vimos como a forma substancial é o conceito filosófico chave que permite individuar coisas materiais. E vimos que a forma substancial não é perceptível pelos sentidos (apesar de estes "alimentarem" a sua "detecção" intelectual). Por esta razão, a necessidade das formas substanciais (já vimos que são necessárias) serve como argumento anti-materialista. Se há certas coisas reais (como as formas substanciais) que não se percepcionam de forma suficiente pelos sentidos, ou seja, se a interacção física entre os nossos sistemas sensoriais e as coisas físicas não é suficiente para percepcionarmos as formas substanciais, então estas são imateriais, e o materialismo está errado.
Vimos também que as coisas são, elas mesmas, individuais, independentemente de nós as conseguirmos individuar através dos nossos sentidos e intelectos. E vimos ainda que certas coisas podem estar naturalmente correlacionadas em categorias de propriedades que partilham entre si, independentemente dos nomes que os seres humanos dão a tais categorias ou às propriedades partilhadas.
No caso concreto do ser humano, é o conceito de forma substancial que "salva" a eventual confusão entre gémeos verdadeiros que possuem códigos genéticos idênticos. Se a simples manifestação de um dado código genético fosse suficiente para individuar o ser humano, então os gémeos verdadeiros seriam um mesmo indivíduo, e o mesmo sucederia com um dado ser humano e um seu clone. E, como já vimos, as coordenadas que um ser humano ocupa, ao longo da sua vida, no tempo e no espaço, não servem como factor decisivo na individuação.
Assim, mesmo perante clones, ou mesmo perante gémeos verdadeiros, estamos perante dois indivíduos distintos: não o sabemos graças aos sentidos, ou aos instrumentos científicos, ou ao método científico. É graças ao raciocínio filosófico, que percepciona intelectualmente a forma substancial (partindo de dados empíricos, é certo), que sabemos com segurança que cada ser humano, mesmo que seja um clone de outro ser humano, é sempre único e irrepetivel.
2 comentários:
Espero que este seja um regresso em força. Grande abraço.
Obrigado, Miguel!
Vamos ver se tenho inspiração e tempo, duas coisas fundamentais!
Um grande abraço!
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