Na perpétua saga de tentar explicar que a minha oposição ao aborto se baseia em argumentação racional e científica, e não em argumentação religiosa, deparei-me há umas semanas atrás com um argumento novo, em contrário, que me foi referido pelo Ricardo Silvestre, do Portal Ateu.
Ao que parece, eu estaria a basear-me na presença do genoma humano no zigoto para daí fazer derivar o direito à vida, pelo facto de esse zigoto ser humano. O Ricardo avançou então com este argumento pela redução ao absurdo: se a presença do genoma humano estabelece a presença de um ser humano e do respectivo direito à vida, então qualquer célula do nosso corpo, dotada de ADN humano, teria que ser reconhecida como ser humano e receber o decorrente direito à vida.
Ora o argumento não colhe.
Em primeiro lugar, não é dito que a mera presença de ADN humano permita aferir a presença de um ser humano completo e do respectivo direito à vida. Na verdade, a argumentação que defendo não parte daí. Parte da constatação de que, na fertilização do ovócito pelo espermatozóide, há uma mudança substancial, que deriva da recombinação genética. O genoma do zigoto, mantendo-se todavia humano, é substancialmente diferente do genoma do seu pai ou da sua mãe: é, na verdade, a recombinação de 23 cromossomas do pai com 23 cromossomas da mãe. Ora esta mudança substancial é concomitante com a activação de um organismo novo, independente, autónomo e auto-regulado. Por independente, quero dizer que durante o resto da sua vida, o zigoto não receberá novo material genético: é um ser vivo individual e distinto dos outros.
Por isso, as primeiras constatações são: a) mudança substancial na fertilização, que distingue radicalmente o par espermatozóide/óvulo do zigoto unicelular; b) presença de um novo organismo vivo auto-regulado.
É só no passo seguinte do raciocínio que, atendendo à sua estrutura genómica, se vai aferir que essa nova vida individual e autónoma é humana, e não qualquer outro tipo de vida animal.
Daqui decorre que não é por ter genoma humano que o zigoto tem direito à vida: é, em primeiro lugar, por estar vivo e ser autónomo, por ser distinto das células zigóticas do seu pai e da sua mãe. Este é o ponto de partida, mas não basta: não consideramos que todos os seres vivos têm direito à vida. Então acrescenta-se o facto essencial de que esse ser vivo, individual e autónomo pertence à espécie Homo Sapiens, logo, beneficiará dos direitos universais que reconhecemos aos da nossa espécie.
Em segundo lugar, toma-se o caso da clonagem. Como no caso do gémeo verdadeiro (monozigótico), também o clone tem exactamente o mesmo genoma que o clonado. No entanto, ninguém discorda de que, em ambos os casos, estamos perante seres distintos, apesar de possuírem genomas idênticos.
Mas vejamos o argumento avançado pelo Ricardo: se eu posso, alegadamente, vencendo barreiras técnicas, criar um clone de um ser humano a partir de uma qualquer célula, mesmo não zigótica, do seu corpo, então deveria reconhecer a essa célula um estatuto especial de ser humano com direito à vida?
Claramente não: pegando no que se disse atrás, é a presença de um organismo inteiro, individual e autónomo que é o ponto de partida. Ora, uma célula do nosso corpo é parte de nós, é parte do indivíduo autónomo e inteiro que somos. Nenhuma célula nossa constitui um novo indivíduo com direito à vida.
O essencial está em analisar o que se faz na clonagem com base em células não zigóticas: retira-se o núcleo cromossomático de uma célula do clonado, esvazia-se o núcleo de um zigoto monocelular, e coloca-se no seu lugar o núcleo extraído da célula do clonado. Depois, activa-se, mediante técnicas adequadas, o processo de desenvolvimento embrionário do clone.
Ora esta activação é essencial: deixada entregue a si mesma, nenhuma célula do nosso corpo, nem mesmo as zigóticas, tem a capacidade para se desenvolver num indivíduo novo e autónomo. Por essa razão, a reprodução na nossa espécie é sexuada e não assexuada: é necessária a conjugação de gâmetas femininos com gâmetas masculinos. O processo da clonagem introduz aqui a "batota" que inviabiliza o argumento avançado pelo Ricardo: o clone só se começa a desenvolver porque, para além da manipulação da troca dos núcleos (manipulação artificial e voluntária), o zigoto monocelular ainda será activado de forma artificial e voluntária.
Essa activação corresponde a uma mudança substancial, para todos os efeitos análoga à que se dá com a fertilização. E é por essa razão óbvia que o clone se desenvolve à semelhança de um zigoto obtido por fertilização natural.
A clonagem não muda uma vírgula à argumentação racional jusnaturalista, que afirma que o aborto provocado é um crime pelo facto de constituir a destruição desejada de um ser humano com direito à vida.
1 comentário:
Excelente Post.
Acho que toda a argumentação dos "pró - aborto" esbarra contra esta dura realidade, aqui bem explícita:
”o aborto provocado é um crime pelo facto de constituir a destruição desejada de um ser humano com direito à vida.”
Apenas acrescentaria que se torna hediondo por ser pago com o dinheiro de quem defende a vida.
Enviar um comentário