Nos comentários ao texto do Bispo Tobin que publiquei há umas semanas, o Sérgio defendeu o valor positivo de uma Igreja Católica que acolhe, como católicos, pessoas de ideias muito diferentes. À partida, a ideia parece boa. Mas claramente, qualquer pessoa entende que isso depende muito de que ideias e diferenças se está a falar! Por exemplo, tenho a certeza quase absoluta de que o Sérgio rejeitaria imediatamente como católico alguém que se afirmasse católico e firmemente defendesse a escravatura!
O Sérgio deu o exemplo de Frei Bento Dominges e do Padre Anselmo Borges para vincar, segundo ele, o valor positivo de uma Igreja que os acolhe como católicos em pé de igualdade com os outros. Aqui, o Sérgio dá um passo arriscado: o de supor que a ausência de punição ou admoestação a estes teólogos, por parte da hierarquia da Igreja, implica uma aceitação das suas posições. Eu não vejo como é que o Sérgio dá este passo. Será numa de "quem cala, consente"?
Evidentemente, estes exemplos dados pelo Sérgio têm significado: ele não escolheu estes nomes à toa. É que são os nomes de dois dos mais conhecidos teólogos dissidentes aqui em Portugal. Tenho a noção do peso enorme do que digo. Eu, o leigo ignorante, a acusar estes dois professores e teólogos de dissidência! No entanto, mais não faço que constatar um facto. E posso dar um exemplo concreto, sendo certo que conseguiria encontrar inúmeros outros exemplos… Aquando do último referendo acerca do aborto, estes dois teólogos vieram a público defender o voto “sim”: Frei Bento chegou ao ponto de invocar São Tomás para defender esse sentido de voto [1]. Sendo claríssimo que a Igreja sempre condenou o aborto como crime moral, pela razão evidente de que se trata da morte de uma vida humana inocente, não há quaisquer dúvidas de que qualquer católico (mesmo que protegido pela chancela de teólogo profissional) que não aceite este ponto, está em dissidência [2]. No caso especialmente grave do aborto, a dissidência assume contornos sinistros, fazendo dos defensores do “sim” e do pretenso “direito” ao aborto, colaboradores coniventes no crime do aborto. Nem mais, nem menos…
Quem me lê, discordando daquilo que escrevo, vai quase de certeza associar as minhas ideias ao meu “conservadorismo”, esse termo de significado vazio e ilegalmente importado da política, que se tira, qual “ás” do baralho, para acabar logo com a discussão. O Bernardo é um “conservador”, assunto arrumado. Os menos simpáticos chamar-me-ão “fanático” ou “fundamentalista”. Mas, para se ver porque razão essa apreciação é injusta, gostaria de contar algo sobre o meu percurso no catolicismo.
Nem sempre me dei conta do que era isso de ser católico, e do que implicava, sobretudo em termos morais, ser católico. Por volta dos vinte e poucos anos, recordo-me do entusiasmo que sentia quando lia os textos de Frei Bento Domingues no Público.
(Um parêntesis curioso: tanto Frei Bento Domingues como Anselmo Borges têm crónicas regulares em dois dos maiores jornais portugueses – porque será que os “media” dão tanto espaço à dissidência católica? Isso daria outro debate complexo, mas é evidente que a enorme exposição mediática destes dois teólogos coloca-os numa fortíssima posição de influência, e isso deveria acarretar uma responsabilidade, pois eles são vistos, por quem lê as suas crónicas, como representantes da Igreja Católica…)
Lia os textos de Frei Bento sempre ao Domingo, quando pegava no jornal comprado pelo meu avô. Recordo-me que, assim que pegava no jornal, eu começava sempre pelas palavras de Frei Bento. Lia-as com muita satisfação. O que eu sentia, então, era que aquele homem tinha um discurso arejado e positivo, moderno e entusiasmante. De vez em quando, Frei Bento criticava a hierarquia, mas também é verdade que nem sempre o tom era esse, e seria injusto dizê-lo. Por vezes, Frei Bento questionava o Magistério, sugeria mudanças profundas. Duas coisas ficaram-me para sempre na cabeça quando eu lia essas suas crónicas mais dissidentes: uma delas, já referi, era o enorme entusiasmo que tais crónicas me provocavam. A outra era o agrado com o qual eu constatava que Frei Bento referia constantemente, para suportar as suas posições, o Concílio Vaticano II. Era a chancela de que eu precisava para aceitar Frei Bento, incondicionalmente, como fonte de autoridade.
Aos olhos de um miúdo de vinte e poucos anos, quase totalmente ignorante em matéria de eclesiologia e doutrina católica, a coisa parecia feia no que tocava ao Magistério: ficava-se com a impressão de que a hierarquia estava a tentar sufocar ou pelo menos a tentar fazer esquecer pontos centrais do último grande concílio, e que teólogos como Frei Bento estavam, não só na vanguarda do pensamento, mas também na posição de defensores da verdade do ensinamento do próprio concílio. Curiosamente, foi neste período da minha vida que menos fui à missa: não me confessava há anos, não fazia qualquer juízo moral aos meus actos e pensamentos. Procurava justificar tudo o que fazia, e encaixar isso no catolicismo que criava à minha medida.
O meu percurso de mudança de admirador inicial incondicional de Frei Bento para o extremo diametralmente oposto, pois hoje em dia tenho uma péssima opinião sobre as suas posições doutrinais, não foi percorrido de uma só vez. Precisei de anos para me dar conta de que o catolicismo era uma coisa diferente da que era retratada pelos teólogos dissidentes. E o mais curioso é que eu poderia ter-me dado conta disso numa só assentada: isso só não aconteceu porque o ser humano é muito teimoso, e a minha teimosia e casmurrice é lendária. Tão arrogante era eu acerca da minha “autonomia intelectual” de católico progressista, que achava que podia ser católico e discordar de quase tudo, desde a homossexualidade, passando pelo aborto, pelo divórcio, pela ordenação das mulheres, pela contracepção artificial, pelo celibato sacerdotal, e pelas demais causas “liberais” da dissidência, que eu demorei anos a arrumar a casa. Não foi fácil dar-me conta da minha estupidez proverbial. Os factos eram evidentes, mas a falta de cultura católica era explosiva, quando estava misturada com um feitio orgulhoso como o meu.
Mas que factos eram esses? Que factos é que se me depararam, e fizeram com que, a pouco e pouco, eu rejeitasse a dissidência e reencontrasse a minha identidade católica?
Em primeiro lugar, que o Concílio Vaticano II tinha um conteúdo muito diferente do que os teólogos “progressistas” afirmavam. Aprendi a distinguir a “letra” do Concílio do dito “espírito” do Concílio, esse cheiro pestilento que normalmente se costuma colar aos textos conciliares, fazendo-os dizer à força coisas que não dizem.
Por exemplo, nunca, em texto algum do Frei Bento que eu tenha lido, eu pude aprender o facto claro e inegável de que o Vaticano II confirmava o papel central do Magistério como agente de preservação e ensinamento da doutrina, papel esse que recebera uma formulação forte de infalibilidade no Vaticano I. Sem nunca ter lido os textos do Concílio, e pela leitura assídua dos dissidentes, fiquei com a ideia de que o Vaticano II era um momento incontornável e decisivo de ruptura. Ora nada é mais contrário à verdade dos factos. O Vaticano II deixou claro quem ensina na Igreja. Nessa e noutras matérias, o Vaticano II, longe de ser ruptura, é um concílio de continuidade, que aprofunda questões que foram trabalhadas no Vaticano I. Por exemplo, um trecho como o seguinte, retirado da Constituição Dogmática
Lumen Gentium, não deixa margens para dúvidas ou outras interpretações:
“22. Assim como, por instituição do Senhor, S. Pedro e os restantes Apóstolos formam um colégio apostólico, assim de igual modo estão unidos entre si o Romano Pontífice, sucessor de Pedro, e os Bispos, sucessores dos Apóstolos. A natureza colegial da ordem episcopal, claramente comprovada pelos Concílios ecuménicos celebrados no decurso dos séculos, manifesta-se já na disciplina. primitiva, segundo a qual os Bispos de todo o orbe comunicavam entre si e com o Bispo de Roma no vínculo da unidade, da caridade e da paz (59); e também na reunião de Concílios (60), nos quais se decidiram em comum coisas importantes (61), depois de ponderada a decisão pelo parecer de muitos (62); o mesmo é claramente demonstrado pelos Concílios Ecuménicos, celebrados no decurso dos séculos. E o uso já muito antigo de chamar vários Bispos a participarem na elevação do novo eleito ao ministério do sumo sacerdócio insinua-a já também. É, pois, em virtude da sagração episcopal e pela comunhão hierárquica com a cabeça e os membros do colégio que alguém é constituído membro do corpo episcopal.
Porém, o colégio ou corpo episcopal não tem autoridade a não ser em união com o Romano Pontífice, sucessor de Pedro, entendido com sua cabeça, permanecendo inteiro o poder do seu primado sobre todos, quer pastores quer fiéis. Pois o Romano Pontífice, em virtude do seu cargo de vigário de Cristo e pastor de toda a Igreja, tem nela pleno, supremo e universal poder que pode sempre exercer livremente. A Ordem dos Bispos, que sucede ao colégio dos Apóstolos no magistério e no governo pastoral, e, mais ainda, na qual o corpo apostólico se continua perpetuamente, é também juntamente com o Romano Pontífice, sua cabeça, e nunca sem a cabeça, sujeito do supremo e pleno poder sobre toda a Igreja (63), poder este que não se pode exercer senão com o consentimento do Romano Pontífice. Só a Simão colocou o Senhor como pedra e clavário da Igreja (cfr. Mt. 16, 18-19), e o constituiu pastor de todo o Seu rebanho (cfr. Jo. 21, 15 ss.); mas é sabido que o encargo de ligar e desligar conferido a Pedro (Mt. 16,19), foi também atribuído ao colégio dos Apóstolos unido à sua cabeça (Mt. 18,18; 28, 16-20) (64). Este colégio, enquanto composto por muitos, exprime a variedade e universalidade do Povo de Deus e, enquanto reunido sob uma só cabeça, revela a unidade do redil de Cristo. Neste colégio, os Bispos, respeitando fielmente o primado e chefia da sua cabeça, gozam de poder próprio para bem dos seus fiéis e de toda a Igreja, corroborando sem cessar o Espírito Santo a estrutura orgânica e a harmonia desta.
O supremo poder sobre a Igreja universal, que este colégio tem, exerce-se solenemente no Concílio Ecuménico. Nunca se dá um Concílio Ecuménico sem que seja como tal confirmado ou pelo menos aceite pelo sucessor de Pedro; e é prerrogativa do Romano Pontífice convocar estes Concílios, presidi-los e confirmá-los (65). O mesmo poder colegial pode ser exercido, juntamente com o Papa, pelos Bispos espalhados pelo mundo, contanto que a cabeça do colégio os chame a uma acção colegial ou, pelo menos, aprove ou aceite livremente a acção conjunta dos Bispos dispersos, de forma que haja verdadeiro acto colegial.” [3] (negrito meu)
Se o ponto 22 da Constituição Dogmática deixa claro o papel do Papa e dos Bispos, vejamos agora o ponto 25, acerca do ministério episcopal de ensinar:
“25. Entre os principais encargos dos Bispos ocupa lugar preeminente a pregação do Evangelho (75). Os Bispos são os arautos da fé que para Deus conduzem novos discípulos. Dotados da autoridade de Cristo, são doutores autênticos, que pregam ao povo a eles confiado a fé que se deve crer e aplicar na vida prática; ilustrando-a sob a luz do Espírito Santo e tirando do tesoiro da revelação coisas novas e antigas (cfr. Mt. 13,52), fazem-no frutificar e solicitamente afastam os erros que ameaçam o seu rebanho (cfr. 2 Tim. 4, 1-4). Ensinando em comunhão com o Romano Pontífice, devem por todos ser venerados como testemunhas da verdade divina e católica. E os fiéis devem conformar-se ao parecer que o seu Bispo emite em nome de Cristo sobre matéria de fé ou costumes, aderindo a ele com religioso acatamento. Esta religiosa submissão da vontade e do entendimento é por especial razão devida ao magistério autêntico do Romano Pontífice, mesmo quando não fala ex cathedra; de maneira que o seu supremo magistério seja reverentemente reconhecido, se preste sincera adesão aos ensinamentos que dele emanam, segundo o seu sentir e vontade; estes manifestam-se sobretudo quer pela índole dos documentos, quer pelas frequentes repetições da mesma doutrina, quer pelo modo de falar.
Embora os Bispos, individualmente, não gozem da prerrogativa da infalibilidade, anunciam, porém, infalivelmente a doutrina de Cristo sempre que, embora dispersos pelo mundo mas unidos entre si e com o sucessor de Pedro, ensinam autenticamente matéria de fé ou costumes concordando em que uma doutrina deve ser tida por definida (76). O que se verifica ainda mais manifestamente quando, reunidos em Concílio Ecuménico, são doutores e juízes da fé e dos costumes para toda a Igreja, devendo-se aderir com fé às suas definições (77).
Mas esta infalibilidade com que o divino Redentor quis dotar a Sua igreja, na definição de doutrinas de fé ou costumes, estende-se tanto quanto se estende o depósito da divina Revelação, o qual se deve religiosamente guardar e fielmente expor. Desta mesma infalibilidade goza o Romano Pontífice em razão do seu ofício de cabeça do colégio episcopal, sempre que, como supremo pastor dos fiéis cristãos, que deve confirmar na fé os seus irmãos (cfr. Lc. 22,32), define alguma doutrina em matéria de fé ou costumes (78). As suas definições com razão se dizem irreformáveis por si mesmas e não pelo consenso da Igreja, pois foram pronunciadas sob a assistência do Espírito Santo, que lhe foi prometida na pessoa de S. Pedro. Não precisam, por isso, de qualquer alheia aprovação, nem são susceptíveis de apelação a outro juízo. Pois, nesse caso, o Romano Pontífice não fala como pessoa privada, mas expõe ou defende a doutrina da fé católica como mestre supremo da Igreja universal, no qual reside de modo singular o carisma da infalibilidade da mesma Igreja (79). A infalibilidade prometida à Igreja reside também no colégio episcopal, quando este exerce o supremo magistério em união com o sucessor de Pedro. A estas definições nunca pode faltar o assentimento da Igreja, graças à acção do Espírito Santo, que conserva e faz progredir na unidade da fé todo o rebanho de Cristo (80).
Porém, quando o Romano Pontífice, ou o corpo episcopal com ele, define alguma verdade, propõe-na segundo a Revelação, à qual todos se devem conformar. Esta transmite-se integralmente, por escrito ou por tradição, através da legítima sucessão dos Bispos e, antes de mais, graças à solicitude do mesmo Romano Pontífice; e, sob a iluminação do Espírito de verdade, é santamente conservada e fielmente exposta na Igreja (81). Para a investigar como convém e enunciar aptamente, o Romano Pontífice e os Bispos, segundo o próprio ofício e a gravidade do assunto, trabalham diligentemente, recorrendo aos meios adequados (82); não recebem, porém, nenhuma nova revelação pública que pertença ao depósito divino da fé (83).” [4] (negrito meu)
Como se pode constatar, a
Lumen Gentium é límpida e clara, como o próprio título deixa transparecer. Como tão bem sintetizou Ralph McInerny:
“(…) while anyone is, of course, free to be Catholic or not, he is not free as a Catholic to reject what the Church teaches. To do so is to cease to be a Catholic” [5]
Ou ainda, como explica o professor de filosofia Germain Grisez:
“The thing peculiar to Catholics is that we are papists. I think that the decision is undoubtedly a very hard one, and many people will have to decide whether they want to be papists, that is, Catholic or not. If one is a Catholic, one is a papist. And if one is a papist, then one cannot say, “Rome has spoken, but the cause goes on.” One has to say, “Rome has spoken; the cause is finished.” [6]
Se eu tivesse tido acesso a esta informação valiosa, e também abertura para a receber, poderia ter “regressado a casa” mais cedo, ou seja, poderia ter reencontrado a minha identidade católica mais cedo… Citações como estas, de Ralph McInerny ou de Germain Grisez podem chocar muita gente, mesmo católicos, sobretudo os que ainda vivem sob a alçada da teologia liberal. Mas é inegável que reflectem o verdadeiro espírito do Concílio.
Mas será, realmente, chocante a ideia de que um católico é, por definição, um papista? Só chocará se alguém defender que o Papa não é uma fonte fiável em matéria de doutrina. É esse pressuposto não demonstrado e irrazoável que assumem os não papistas: eles assumem que o Papa não é fiável em matéria de moral e doutrina. E então, seria evidentemente um abuso para a boa formação da consciência ter que aquiescer a uma fonte de moral errada, ou no melhor caso, falível. No entanto, é claro que se o Papa não se engana em matéria de doutrina e de moral, então a aquiescência da nossa consciência, o nosso sim filial e incondicional, é para nós garantia segura de inerrância. Ao estarmos com Pedro, e sob Pedro, estamos na melhor situação possível. E isso é algo claro e transparente para qualquer católico que entendeu o que é ser católico. E é por isso que qualquer católico não pode deixar de olhar para o Papa como quem olha para um real e presente “alter Christus”, como um ícone e reflexo da mesma verdade de sempre que nos foi legada por Jesus Cristo Senhor Nosso, não para nossa ilustração intelectual, não para os nossos debates filosóficos, mas para a nossa salvação. Isto não resulta, é óbvio, de um “endeusamento” da figura do Papa: é apenas conclusão lógica e racional da promessa de Cristo descrita em Mateus 16, 18: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do abismo nada poderão contra ela”.
Mas então, de onde vem esta esquizofrenia pretensamente católica que consiste em querer defender a posição indefensável de que se pode ser católico e ao mesmo tempo, divergir dos ensinamentos do Magistério?
O ponto histórico central que marca esta ruptura dos teólogos liberais com o ensinamento de sempre da Igreja pode definir-se de forma clara na reacção destes à
encíclica Humanae Vitae, de Paulo VI. Os teólogos liberais ficaram duplamente “ofendidos” com esta encíclica: por um lado, durante as décadas que precederam a encíclica, eles ensinavam aos casais que a contracepção artificial era tolerável, ou mesmo louvável, no casamento católico. Por outro lado, uma comissão teológica instituída pelo Papa João XXIII, e cujos trabalhos se prolongaram até ao papado de Paulo VI, concluiu que não havia objecções à contracepção artificial, desde que usada dentro do casamento. Quando o Papa Paulo VI publica a
Humanae Vitae a 25 de Julho de 1968, indo no sentido contrário da conclusão da comissão teológica, compreende-se a situação delicada na qual o Papa deixara estes teólogos, ou melhor, a situação delicada na qual os teólogos, eles mesmos, se haviam colocado. O que já não se compreende é a reacção intempestiva destes últimos. Frei Charles Curran, professor de teologia na Catholic University of America e vice-presidente da American Theological Association, lançou um abaixo-assinado que chegou às páginas do New York Times a 30 de Julho, apenas 5 dias após a publicação da encíclica. O abaixo-assinado trazia as assinaturas de mais de duzentos teólogos (note-se a ausência de bispos). Surgia então, em 1968, este “novo magistério” alternativo e não oficial! Nos anos que se seguiram, este “novo magistério” iria ganhar aderentes e espalhar-se por todo o mundo católico, entrando em seminários, em universidades, nas catequeses, nas paróquias, em casas de retiro, e nos jornais e publicações católicas. Aos fiéis, cabia-lhes escolher de que lado ficariam. Os teólogos dissidentes deixavam os fiéis numa situação horrível…
O que isto deixa claro, nesse ano já remoto de 1968, era que se estava perante um problema novo, criado pelos teólogos liberais: estes procuravam promover uma nova visão do que era a Igreja Católica, e mais do que isso, queriam ser vistos como dotados de uma real vocação para o ensino de doutrina e moral em pé de igualdade com o Magistério. Claramente, estavam contra os ensinamentos de sempre, incluindo evidentemente o Concílio Vaticano II, que não mudou, nem podia mudar, a natureza da Igreja Católica. Veja-se, a título de exemplo da inicial “solidão” destes teólogos dissidentes, a posição clara tomada pelos bispos norte-americanos, que no dia 31 de Julho de 1968, pela voz do presidente da Conferência Episcopal dos Estados Unidos, o Arcebispo John Dearden de Detroit, tornou pública a posição oficial dos bispos norte-americanos, totalmente alinhada com Paulo VI.
Surge a questão central: então, como é que a posição isolada dos teólogos dissidentes se massificou nas décadas seguintes? A resposta não é fácil de dar. Certamente, inúmeras razões podem e devem ser apontadas para esta disseminação generalizada, que fez de uma posição extremista de teólogos a posição assumida por um enorme número de fiéis nos anos seguintes. É inegável que uma das razões está na maior facilidade em aceitar esta nova “moralidade” dos teólogos dissidentes. É agradável para o ouvido humano a defesa da “maturidade” dos fiéis católicos modernos, a defesa da irrelevância do sacramento da confissão, a promoção da prática de um “juízo interior” no qual o crente “maduro” avalia sozinho a sua consciência. Para mais, a “nova moral” proposta pelos teólogos dissidentes rivalizava com a moral católica de sempre com uma força desequilibrada. Não só esta “nova moral”, muito menos exigente, era mais apelativa e fácil de ser aceite, como evidentemente, caiu em cheio na mentalidade moderna da altura.
Em 1968, o mundo recebeu de braços abertos a nova teologia dissidente. Os inimigos da Igreja regozijaram-se com esta nova fissura na muralha. Os que, não sendo inimigos da Igreja, não a conheciam nem a compreendiam, ficaram satisfeitos com esta nova “adaptação” da doutrina da Igreja à cultura moderna. Na sociedade moderna, a fronteira entre católico e não católico diluiu-se: afinal, podia-se ser católico e ter uma moral muito mais relaxada e ao gosto da época. Esta atitude fracturante abriu caminho para o surgimento de pequenas facções dissidentes, como o movimento
We Are Church (em Portugal,
Nós somos Igreja), cuja visão da Igreja Católica está totalmente em contra-ciclo com o Vaticano II (apesar de os seus líderes dizerem precisamente o contrário). Estas facções, que passados vários da sua fundação continuam marginais e sem bases de apoio, culpam a hierarquia pelo insucesso das suas iniciativas revolucionárias, em vez de verem as coisas como elas são: o tal "povo de Deus", dos quais estes movimentos se julgaram porta-vozes, não ligou nenhuma a este convite à dissidência.
Os teólogos dissidentes tornaram-se, hoje em dia, figuras do passado. A teologia dissidente está a definhar. É que, quatro décadas de teologia dissidente deixaram claras quais são as consequências de seguir esse caminho da asneira: seminários vazios, igrejas a esvaziar de forma sistemática, desenraizamento das novas gerações da cultura e da doutrina católicas, desorientação e desânimo dos fiéis, e sensação permanente de desunião.
Olhando para o papado de João Paulo II e de Bento XVI, fica evidente, para qualquer observador atento, que o tempo da dissidência já lá vai. A Igreja recupera, de novo, a sua identidade, enquanto tenta sarar as feridas da dissidência. Muitos teólogos dissidentes ainda estão vivos e falantes. Ainda dão palestras, ainda dirigem cursos de teologia, ainda influenciam as novas gerações. Mas é uma questão de tempo: eles defendem uma ideologia “datada” dessa década de sessenta, uma ideologia que quis promover um catolicismo de ruptura. A Igreja existe há 2.000 anos. Irá, certamente, sobreviver aos teólogos dissidentes que montaram o “Maio de 68” (para usar
uma expressão de Massimo Introvigne) da Igreja Católica…
Ainda há poucos anos, enquanto me dava conta dos meus erros de juventude, e da imoralidade que lhes estava associada, cheguei a sentir genuína antipatia por estes teólogos dissidentes, que foram os meus ídolos do catolicismo da minha juventude. Via-os como os únicos culpados: responsabilizava os seus escritos por me terem enganado, a mim e a muitos, acerca do real significado da Igreja, e por me terem mantido longe do verdadeiro catolicismo durante muito tempo. Mas a verdade é que eu próprio fui conivente, preferindo lê-los e ouvi-los como “progressistas” e ignorando os muitos que, realmente dentro do espírito católico, diziam o contrário. É que abandonar o “catolicismo liberal” em favor do catolicismo de sempre não é uma decisão fácil: obriga a mudar toda a nossa vida, a começar pelos nossos actos, pela nossa moral.
O tempo passou, e se ainda sinto repulsa intelectual pelas posições dos teólogos dissidentes, hoje olho para eles com outros olhos. De certa forma, é complicado para a maioria das pessoas escapar ao “espírito dos tempos”, sobretudo àquele final da década de sessenta, que foi tudo menos tranquilo. Não movo nenhuma guerra pessoal contra Frei Bento ou contra outros teólogos liberais. Tal atitude não seria cristã, e hoje tenho a certeza de que não se deve mover tal guerra no plano pessoal. No entanto, algumas das suas ideias erradas continuam vivas e espalhadas por aí. E essas ideias devem ser combatidas. Penso que, como em tudo, o tempo será um valioso ajudante, à medida que progredimos e ultrapassamos a atitude adolescente de dissidência (e o espírito de “Maio de 68” que tanto marcou as últimas décadas do catolicismo) e entramos na maturidade da fé católica.
[1] "Por opção da mulher", jornal Público, Fevereiro de 2007. Ver artigo
aqui.
[2] Para que não restem dúvidas de que votar "sim" no referendo ao aborto implicava dissidência, bastaria ter-se consultado o documento da Congregação para a Doutrina da Fé, de 24 de Novembro de 2002, que deixava a questão bem esclarecida:
«Neste contexto, há que acrescentar que a consciência cristã bem formada não permite a ninguém favorecer, com o próprio voto, a actuação de um programa político ou de uma só lei, onde os conteúdos fundamentais da fé e da moral sejam subvertidos com a apresentação de propostas alternativas ou contrárias aos mesmos.»,
Nota doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política.
[3]
Constituição Dogmática Lumen Gentium, ponto 22.
[4]
Constituição Dogmática Lumen Gentium, ponto 25.
[5] McInerny, Ralph,
What went wrong with Vatican II - The Catholic Crisis explained, Sophia Institute Press, 1998, p. 81.
[6] Ibidem, pp. 81-82.