Denis Dutton (1944-2010) era professor de Filosofia na Universidade de Cantebury, Christchurch (Nova Zelândia). Ouvi falar dele pela primeira vez há umas semanas atrás, ao ver na Internet o vídeo de uma conferência TED por ele proferida no ano passado, intitulada A Darwinian theory of beauty. Quando assisti ao vídeo no início de Janeiro deste ano, não sabia que Dutton tinha acabado de morrer de cancro a 28 de Dezembro de 2010. Dei-me conta disso agora mesmo, ao começar a escrever este texto. Fiquei sinceramente triste com a notícia. Quem vir o vídeo da conferência TED entenderá o que eu quero dizer. É impossível não simpatizar com este senhor: basta ouvi-lo a falar e fica-se com a clara sensação de que a Humanidade ficou mais pobre sem Denis Dutton.
Enquanto ouvia, pela primeira vez, a conferência A Darwinian theory of beauty, o meu pensamento vagueava constantemente, pois começava já a imaginar escrever este texto, apontando uma série de discordâncias e de protestos face à opinião de Dutton. Mas estava dividido: dividido entre uma simpatia instantânea para com um orador tão empático e uma repulsa visceral que sentia pelas ideias que tal orador estava a defender.
Essas ideias têm um eixo claro, que está patente no título da palestra: a beleza, a criação de beleza, a apreciação da beleza, quer natural quer artificial, segundo Dutton, são realidades que têm uma derradeira explicação darwinista. Temos que nos dar conta do que está aqui em jogo: segundo Denis Dutton, a beleza é uma realidade cuja causa última é puramente naturalista: mutação, cruzamento, selecção natural.
Por um lado, a teoria de Dutton, e sem menosprezar o mérito da sua fundamentação e formulação, é a consequência lógica de um darwinismo que é filosoficamente interpretado de forma materialista, ou naturalista. É verdade que o darwinismo, como teoria científica, tanto pode ser defendido por uma pessoa com uma visão filosófica materialista como por uma pessoa com uma visão diametralmente oposta ao materialismo, como a visão cristã. Assim, há que distinguir entre teoria científica darwinista e teoria filosófica materialista. Dutton, nesta palestra, não faz apenas uma defesa do darwinismo científico. Isso seria incontroverso, algo que transformaria a palestra num evento para especialistas de Biologia, e não em algo que realmente mexe com o comum dos mortais. Dutton faz uma defesa do darwinismo materialista, ou seja, da combinação da teoria científica do darwinismo com a teoria filosófica do materialismo.
Quando um orador apresenta o darwinismo materialista a uma plateia, desde que mantenha o tema no abstracto, a coisa até pode correr bem, ou seja, a percentagem de espectadores chocados pode ser muito baixa ou mesmo nula. Mas Dutton arriscou apresentar o seu darwinismo materialista sob o ponto de vista da beleza, o que dá à sua palestra uma amplitude tal que equivale a envolver toda a humanidade.
Será mesmo verdade? Será a beleza o produto final de um processo cem por cento natural de selecção natural darwiniana com genética mendeliana?
Uma repulsa instintiva
A razão da minha repulsa explica-se facilmente. A repulsa começou por ser instintiva, e só depois tentei articular uma repulsa mais racional. Instintivamente, lembrei-me de um dos inesgotáveis exemplos de beleza com os quais nos deparamos durante a nossa vida. Neste caso em concreto, lembrei-me do notável Concerto para Violino e Orquestra (Op. 47) em Ré Menor, de Jean Sibelius (1865-1957), e de uma execução magnífica do mesmo, que vi no Youtube, pelas mãos de Ida Haendel, sob a direcção do maestro Franz Paul Decker.
Todas as notas emanadas do violino de Ida Haendel refutam, na prática, a teoria da origem darwiniana da beleza, que é defendida por Dutton. Aliás, basta uma só nota para se obter esse efeito. Dutton dá-nos explicações darwinianas ("survival of the fittest") para o surgimento e para o aperfeiçoamento do sentido estético da Humanidade. Dutton explica-nos que quando gostamos de uma paisagem com o verde da vegetação e com o azul da água, ou com a presença de animais nas imediações, isso acontece porque há genes evoluídos que nos fazem apreciar esse tipo de paisagens. Segundo Dutton, nas paisagens que hoje apreciamos há um eco das savanas do Plistocénico. Alguns dos nossos genes evoluíram porque a procura da proximidade desses locais dava aos seres humanos vantagens competitivas. A beleza é reduzida a um produto de uma luta pela sobrevivência. Para que compôs Sibelius o seu Concerto para Violiono e Orquestra? Que savana do Plistocénico imaginava ele, ao escrever a cadenza do violino? Quando se tenta aplicar a teoria de Dutton a uma peça musical como esta, fica patente a insuficiência da teoria. Ida Haendel recebeu do próprio Sibelius estes elogios, após ouvi-la tocar o seu Concerto: "[Ida Haendel] played it masterfully in every respect. I congratulate myself that my concerto has found an interpreter of your rare standard". Ida comentou, acerca deste Concerto: "The Sibelius Violin Concerto is one of the most exciting, emotionally and technically, in the entire repertoire for my instrument". Deveras! Este Concerto é uma vertigem emocional e intelectual. É um feito notável do génio humano. Não pode ser produto apenas da matéria. E a beleza desta peça apresenta, como sucede em toda a música, uma simetria entre compositor e executante. A beleza da composição de Sibelius alinha-se com a beleza da execução de Ida Haendel. E tudo isto, todo este hino à beleza, receberia uma explicação naturalista? Evolucionista? Darwinista? Pergunta: serão as geniais faculdades musicais de Sibelius puramente genéticas? O Concerto é bom porque os genes são bons? Outra pergunta: será que essas faculdades musicais deram a Sibelius alguma vantagem darwiniana? Irão os descendentes de Sibelius presentear a Humanidade com mais peças destas? Era bom...
Veja-se ainda, no terceiro andamento, o momento (por volta dos 5'13'') em que Ida Haendel toca quatro compassos em trémolo, seguidos de uma belíssima linha melódica com harmónicos oitavados: é de se ir às lágrimas! Eu não sei explicar o que pretende Sibelius com este trecho: apenas sei que é fenomenal. Diz o materialista, em jeito de explicação: o cérebro humano adaptou-se à interpretação de estímulos sonoros como forma de diferenciar ameaças, ou como forma de comunicação com os da sua espécie, com vista à sobrevivência do grupo. E porque não? Mas isso explica este troço fenomenal de Sibelius? Explica a forma visceral como Ida Haendel se entrega à execução desta peça, como se empregasse toda a sua existência na execução deste Concerto? Aos 5 minutos e 20 segundos do primeiro andamento, Ida Haendel verte uma lágrima. É a intérprete musical no seu esplendor! Reflexo darwiniano? Ou não será antes essa lágrima o reflexo fisiológico de uma pessoa cuja alma está sublimada pela beleza? Cuja alma está de janelas abertas para a eternidade? Não será essa lágrima, discreta, um pequeno sinal exterior do turbilhão, da vertigem de beleza que se apoderou da sua alma?
Um tiro no pé?
O problema lógico de todo o darwinismo materialista, é que se trata de uma posição que se refuta a si mesma. É certo que Dutton, homem culto, apreciador de cultura, viveu toda a sua vida apaixonado pelas coisas de que gostava, de entre elas a beleza, o estudo e o ensino filosófico da beleza. Como académico, buscou a verdade acerca da beleza. Será que toda essa busca, de uma vida inteira, se reduz a um esforço pela sobrevivência? Por outras palavras, será que a explicação darwiniana da beleza não será, também ela, um fenómeno darwiniano? Ou seja, como pode haver um fundo de verdade em qualquer teoria que afirme que toda a actividade humana tem uma explicação derradeira que é cem por cento materialista? Essa teoria pisa o seu próprio pé. Morde a sua própria canela. Dutton defende que, em última análise, a beleza só existe por causa de um processo natural e material. Isso destrói, não a beleza (que manifestamente existe), mas o fim da beleza, o gozo último da beleza, a razão de ser da beleza. Afinal de contas, o belo é apenas o produto de um processo natural e material? Ora bolas...
Mas a ideia de Dutton insere-se no contexto auto-destrutivo de todas as teorias darwinistas materialistas. O darwinismo materialista destrói o próprio conceito de verdade, e não apenas o da verdade acerca da beleza. Num mundo em que as causas derradeiras de tudo são darwinistas, não há verdade. A própria defesa intelectual da verdade, a própria procura da verdade, seria o efeito de algo determinado pelo darwinismo. Seríamos ateus por razões darwinistas. Seriamos agnósticos por razões darwinistas. Seriamos cristãos por razões darwinistas. Gostaríamos de Sibelius por razões darwinistas. Gostaríamos de Metallica por razões darwinistas. O darwinismo, expandido para fora da fronteira da Ciência, e transformado em "weltanschauung" filosófica omnipotente, torna-se numa ideia que é auto-destrutiva, que é suicida. Numa vertente mais prática, apesar de Dutton nos dar exemplos, na sua palestra, de coisas manifestamente belas, a verdade é que ele poderia dar exemplos perfeitamente darwinistas de coisas manifestamente feias. Fotografias de Auschwitz tiradas aquando do seu uso para exterminar judeus seriam exemplos pertinentes de coisas horrorosas com pleno enquadramento num quadro darwinista: sobrevivência dos mais aptos: o ariano, o forte, sobrevive ao judeu, o fraco. É tão legítimo, em termos estritamente darwinianos, que o leão mate a gazela ou que o ariano mate o judeu. O nazismo representa um dos melhores exemplos dos perigos de transportar o darwinismo para fora da Ciência, transformando-o numa cosmovisão. Não se pode montar uma ética válida sobre o darwinismo: até Richard Dawkins o reconhece. Logo, é um beco sem saída, o caminho de justificar tudo no Homem pela via do darwinismo.
Dutton era um orador talentoso. A sua palestra TED é um magnífico exemplo de oratória e de eficácia comunicativa. Mas Dutton não deu à sua plateia nenhum exemplo de coisas feias que também podem ter boas explicações darwinistas. A lei da sobrevivência do mais forte, quando vivida à letra, pode dar origem a coisas muito feias, e no entanto, é perfeitamente darwinista.
Seria superficial dizer que a explicação darwinista da beleza, conforme defendida por Denis Dutton, é cem por cento falsa. Eu não acredito nisso, e não me atrevo a dizer que Dutton estava cem por cento errado. Não é fácil acreditar em afirmações cem por cento falsas. Desconfiamos delas. Se me dissessem: "ontem, na Gulbenkian, um chimpanzé evadido do Jardim Zoológico, munido de um Stradivarius, tocou o Concerto para Violino e Orquestra de Sibelius", eu mandava essa pessoa passear. Uma falsidade tão irreal, sem qualquer base de verdade, é literalmente inacreditável. Por isso, apesar de eu achar que a teoria de Dutton é falsa, no sentido em que falha em encontrar a explicação derradeira para a beleza, eu acho que a dita teoria tem qualquer coisa de verdadeiro.
As falsidades poderosas, as que sobrevivem mais tempo, são as que incorporam em si mesmas alguns ingredientes verdadeiros. Assim, há certamente algo de verdadeiro na teoria darwinista da beleza, conforme apresentada por Dutton. Afinal de contas, fazemos parte do mundo material, somos pessoas de corpo e alma, e o corpo é seguramente natural, material. Por isso, é de esperar que, do mesmo modo que reflexos como o do susto podem ter origem darwiniana e explicação genética, pois quem tem esses reflexos escapa melhor aos perigos e sobrevive para deixar descendência a quem passar esses genes eficazes, também certos aspectos acerca da nossa interpretação sensorial podem ter algum fundamento darwiniano e genético. Parte da nossa psique pode ter características em cujas causas concorre o darwinismo. Afinal de contas, os nossos sentidos estão profundamente adaptados à realidade natural. Também somos feitos de matéria. E da mesma matéria que o Universo.
Conclusão
Afinal, onde está a verdade?
O cristão vê-se, mais uma vez, obrigado a defender o bom senso, e a evitar dois erros opostos: por um lado, o cristão protesta contra os erros do materialismo, que quer reduzir o Homem ao corpo, à matéria. Por outro lado, o cristão protesta contra os erros do gnosticismo, que quer reduzir o Homem à alma, sem matéria. Vivemos tempos entusiasmantes, mas ao mesmo tempo, de extremos. Todos os dias deparamo-nos com dois tipos de louco: o louco que nos quer convencer que somos o nosso corpo, e o louco que nos quer convencer que o nosso corpo pode, em certos casos, não ter nada a ver connosco.
Dutton não era louco. Paz à sua alma: rezamos por ele a Deus, para que se converta e o Senhor lhe conceda a graça do perdão. Todo o Homem que procura a beleza procura a Deus, e mesmo que equivocado no caminho, tem uma sede de beleza que, em si mesma, tem valor. Dutton cometeu, a meu ver, o erro de desequilibrar a correcta visão do Homem num dado sentido, o do materialismo. Outros cometem o erro de desequilibrar essa visão no sentido oposto, o do gnosticismo. Por exemplo, os defensores da ideologia de género acreditam que o nosso corpo pode, em certos casos, não ter nada a ver connosco, e por isso defendem a ideia louca de que podemos ser homens em corpo de mulher, ou mulheres em corpo de homem. E, de forma mais frequente, os gnósticos modernos defendem a loucura de que não existe moral sexual. A loucura de que não há tal coisa como uma "ortopraxia" (uma prática correcta) da nossa sexualidade. Como se o corpo, não sendo parte constituinte do nosso ser, fosse apenas um instrumento que o nosso "eu" imaterial usaria para obter prazer. Como se o nosso corpo não fizesse parte do nosso "eu". Claro que faz. E toda a ética que não veja o corpo como parte integrante do ser humano é uma falsa ética. A ética não é uma coisa de almas imateriais: é uma coisa de seres humanos de corpo e alma.
O cristão sabe onde está a verdade acerca do ser humano. Está em ver o ser humano como feito de corpo e alma. Está em ver o ser humano como uma pessoa cujo corpo material é constituído pelos mesmos elementos que encontramos no Universo e cuja alma imaterial é criada directamente por Deus, uma alma que não pode ser reduzida ao material, uma alma livre, com capacidades racionais e artísticas, capacidades que não vêm da matéria. Finalmente, uma alma com capacidade de amar, porque a capacidade de amar também não vem da matéria.
A verdadeira origem da beleza está em Deus, fonte de toda a beleza. Origem e destino da beleza. Toda a beleza que podemos encontrar é um reflexo da beleza divina. O fim último do ser humano é o encontro com Deus, é o contemplar Deus na sua infinita beleza e bondade. Suprema aspiração e fim admirável da raça humana!
PS: A palestra de Dutton tem o mérito de procurar refutar as teorias modernas e pós-modernas de beleza. Mas troca-as por uma teoria igualmente falsa. A explicação verdadeira da beleza está na doutrina cristã. Não é necessário procurá-la mais longe.
PPS: Em jeito de corolário ao que acabei de escrever, veja-se Maxim Vengerov, numa "masterclass" do Concerto para Violino e Orquestra de Sibelius, a explicar na prática o que é a beleza... Veja-se, sobretudo, a partir do 1'40''. Aos 2'', Vengerov diz, com razão: "This is beauty!"
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