Hoje faria 91 anos Stanley Jaki (1924-2009), Padre beneditino e Professor de Física na Universidade de Seton Hall, em New Jersey. Duplamente doutorado em Teologia (Instituto Pontifício de Santo Anselmo, em Roma, 1950) e em Física (Fordham, 1958), o Padre Jaki deixou uma vasta e indispensável obra em História da Ciência e Filosofia da Ciência.
O seu primeiro livro em inglês, “The Relevance of Physics” (1966, University of Chicago Press), continua a ser hoje um insuperado “tour de force” de História da Ciência. Nesse livro, que contém uma impressionante recolha de citações pouco conhecidas dos principais cientistas da História, o leitor fica esmagado pela profundidade da pesquisa histórica feita pelo Padre Jaki, e pelo seu domínio interpretativo dos acontecimentos.
O Padre Jaki veio a Portugal algumas vezes, quer para investigar os acontecimentos de Fátima, com vista à publicação da sua obra de referência sobre o milagre do Sol (“God and the Sun at Fatima”, 1999), quer para fazer três conferências em 2001. Nessa altura, eu nunca tinha ouvido falar dele. Lamento não o ter conhecido pessoalmente. Comecei a ler vorazmente os seus livros quando ele já estava no fim da sua vida terrena. Devo-lhe imenso. Sei que vou usar os livros dele para aprender até morrer. A sua escrita é densa. Não porque Jaki utilize palavras eruditas naquela típica atitude de arrogância intelectual. Nada que se pareça. Mas porque condensa muita informação em poucas palavras, o que obriga a uma leitura muito atenta. Todo o tempo investido na obra de Jaki traz retorno, e multiplicado.
Aqui fica um exemplo: o artigo “The Physicist and the Metaphysician”, no qual o Padre Jaki comenta o diálogo pouco conhecido entre o físico Pierre Duhem (1861-1916) e o metafísico Réginald Garrigou-Lagrange (1877-1964).
(Duhem foi o historiador de Ciência cuja obra-prima “Le Système du Monde - Histoire des doctrines cosmologiques de Platon à Copernic” - dez volumes editados entre 1913-1959 - desenterrou o edifício da ciência medieval, mostrando as raízes medievais da Ciência moderna com base em documentação de primeira mão, arrancada arduamente do esquecimento com o trabalho de uma vida inteira. Esta sua incómoda obra, fatal para a “tese do conflito” entre a Igreja Católica e a Ciência, só estaria finalmente editada na sua totalidade em 1959, 43 anos depois da sua morte, graças ao esforço incansável da sua filha Helène. O dominicano Garrigou-Lagrange, por seu lado, é um colosso do tomismo do século XX: um dos melhores expositores e defensores da filosofia e da teologia de São Tomás de Aquino.)
Jaki analisa a correspondência entre Duhem e Garrigou-Lagrange acerca do tema do movimento inercial. Duhem explica o ponto de vista físico. Garrigou-Lagrange explica o ponto de vista metafísico. Essa correspondência mostra o valor do diálogo humilde entre dois especialistas.
Eis a conclusão do artigo do Padre Jaki:
Eis a conclusão do artigo do Padre Jaki:
“For physics after all deals with reality. Its different aspects can be separated in a conceptual way but they remain inseparable from one another in their actual existence. Things as far as they exist certainly witness to their being and becoming which are not quantitative notions as such. But any physical being and becoming is known through sensory perception which is never without quantitative contents. There is no purely ontological realm as far as material things are concerned, nor can their quantitative features be consistently spoken of as if they were not embedded in a broader and more fundamental kind of reality, the reality of being and becoming.
Therein lies the source of the perplexity or uneasiness of Garrigou-Lagrange, the metaphysician. He did not display sufficient awareness of a fundamental problem as he dealt with the question posed by the principle of inertia for the proof of the existence of God from motion. This is the perennial problem of the one versus the many, in the sense that one and the same thing or process has multiple aspects that are conceptually irreducible to one another.
Distinguishing them we can, but separate them we cannot. Unite them we must, for knowledge is a quest for unitary understanding. Yet that quest is always fraught with the risk that fusion becomes confusion. That there is no escape from this predicament is probably the deepest lesson to be drawn from the exchange of ideas between a great physicist and a great metaphysician on a basic question of physics which is also a basic question for metaphysics.”O movimento inercial é uma só realidade, como explica o Padre Jaki. Mas que, para ser compreendida, tem que ser analisada com competência sob os distintos aspectos da física e da metafísica. Isto implica, naturalmente, que o movimento não tem apenas um aspecto físico (quantitativo, científico), mas também um aspecto metafísico, relacionado com o "ser" (o que o corpo em movimento inercial é em cada instante) e com o "devir" (as sucessivas mudanças de posição no corpo que se move com movimento inercial). Só assim se recupera uma compreensão una do mesmo fenómeno real.
Fonte: Stanley Jaki, “The Physicist and the Metaphysician”, em: http://www.u.arizona.edu/~aversa/scholastic/The%20Physicist%20and%20the%20Metaphysician%20(Jaki).pdf
5 comentários:
Olá Hugo!
Tudo bem?
Obrigado pelo teu comentário.
"Fica aberta a questão de saber como é que se pode salvar a demonstração de que Deus é pelo movimento, porque se, afinal, existe o movimento inercial, nem tudo o que se move é movido por outro - pelo menos, não no sentido em que Tomás de Aquino interpretava essa proposição, a qual implicava a necessidade de uma actividade motriz simultânea com a actividade do movido."
De facto, eu não quis levar o tema até ao fim, para não ficar um "post" demasiado grande. Deliberadamente, deixei a questão em aberto.
Eu diria o seguinte...
O ponto de partida é dado por São Tomás:
“Nada pode ser reduzido da potencialidade à actualidade sem ser através de algo num estado de actualidade” – Suma Teológica, I, questão 2, artigo 3
Esta afirmação não é um axioma lógico, mas sim um axioma metafísico.
Negar este axioma, dada a distinção radical entre acto e potência, é fazer uma contradição.
Se supomos que algo potencial se poderia colocar a si mesmo em acto, então esse algo já teria que ser actual.
Se este axioma metafísico tem que ser defendido, então a dificuldade em conjugar metafísica com física no caso do movimento inercial tem que estar do lado da física. Ou melhor, do lado da interpretação filosófica do fenómeno da inércia.
Há duas possibilidades:
1) Ou o movimento inercial, ou seja, movimento rectilíneo uniforme (MRU), é mudança real (actualização de uma potência)
2) Ou o movimento inercial, ou seja, movimento rectilíneo uniforme (MRU), não é mudança real (não há actualização de uma potência)
Na possibilidade 2), bastaria considerar o MRU como um "estado", e então o MRU desse corpo não implicaria actualização de potências. E, curiosamente, caso fosse aplicada uma força F sobre o corpo, ele mudaria desse "estado", o que reforçaria o axioma metafísico em discussão.
Logo, com ou sem força aplicada, deste ponto de vista, não haveria colisão entre o axioma metafísico e o movimento inercial.
Mas eu não apostaria nessa possibilidade 2)...
Aposto mais na possibilidade 1), porque considero que o MRU, fazendo um dado corpo ocupar posições distintas no espaço, implica real mudança de posição, e portanto, implica a actualização contínua de acidentes potenciais.
Por isso, o MRU implica real mudança, ou seja, actualização de potências. O principal problema está no uso equívoco do termo "movimento". Movimento, em física, significa algo bastante diferente do que significa em ontologia aristotélico-tomista. Neste último contexto, movimento significa actualização de potência.
Suponhamos que um dado corpo ocupa uma posição X1 num instante T1 e X2 num instante T2.
O MRU de X1 para X2 implica a actualização da potencialidade de um corpo actualmente em X1 vir a estar em X2. O que é que actualiza essa potencialidade?
(continua)
(continuação)
Acho indiscutível afirmar que ALGO actualiza essa potencialidade. E esse algo tem que ser actual.
Há várias opções:
1) Deus (Deus é actual)
2) Ímpeto (a teoria de João Filopono, Jean Buridan, etc.); o corpo em MRU possui ímpeto, esse ímpeto é sempre actual enquanto dura o MRU, e esse ímpeto é a causa da mudança de posição
3) Outro motor actual (por exemplo, um anjo)
Eu gosto da opção 2.
"Se se quiser optar, como Maritain, por resolver o problema reformulando o princípio para "tudo o que se move começa a ser movido por outro", então, tratar-se-ia somente de uma série acidentalmente ordenada - uma vez que não implica o influxo simultâneo da causalidade de cada membro da série - que, conforme a opinião de Tomás de Aquino, pode ser infinita, não implicando a existência de um primeiro termo."
De acordo. A solução de Maritain é má.
"Mantém-se aberta, e desimpedida, a primeira via para conhecer a existência de Deus?"
Eu diria que sim. Até porque não vejo como é que as duas interpretações do MRU (como "estado", ou como "mudança") podem falsificar a primeira premissa da primeira via. Basta que, em todo o Universo, exista uma qualquer actualização de potência "per se", e está demonstrada a existência de Deus.
Mesmo que não pudéssemos partir do movimento inercial para demonstrar a primeira premissa da primeira via, teríamos o Universo repleto de outros casos de actualização "per se" de potências, e qualquer desses casos (bastaria um) seria suficiente para sustentar a primeira via.
Vale a pena ler o que o Edward Feser tem a dizer sobre isto (tenho estudado esta questão apoiado no que Feser escreve sobre o tema):
http://edwardfeser.blogspot.pt/2013/01/oerter-on-inertial-motion-and-angels.html
Feser tem um artigo detalhado sobre esta questão aqui:
http://faculty.fordham.edu/klima/SMLM/PSMLM10/PSMLM10.pdf
Ele também comenta esta questão no seu recente livro "Scholastic Metaphysics - a Contemporary Introduction".
Um abraço!
Bernardo
PS: Há ainda algo a comentar sobre a primeira premissa da primeira via...
1. Tudo o que está em movimento (em mudança) está a ser movido (mudado) por outra coisa (“omne quod movetur, ab alio movetur”, como podemos ler na Summa Contra Gentiles)
Na Suma Teológica, São Tomás diz mais ou menos o mesmo:
"Omne autem quod movetur, ab alio movetur."
Mas logo depois, ele deixa claro que está a falar de movimento como edução de potência em acto:
"Nihil enim movetur, nisi secundum quod est in potentia ad illud ad quod movetur, movet autem aliquid secundum quod est actu. Movere enim nihil aliud est quam educere aliquid de potentia in actum, de potentia autem non potest aliquid reduci in actum, nisi per aliquod ens in actu (...)"
Por isso é que eu prefiro interpretar a primeira premissa da primeira via usando esta expressão, que não usa a palavra equívoca "movimento":
“Nada pode ser reduzido da potencialidade à actualidade sem ser através de algo num estado de actualidade” – Suma Teológica, I, questão 2, artigo 3
No teu comentário, Hugo, usaste uma outra fórmula mais comum para a primeira premissa da primeira via: "tudo o que se move é movido por outro".
Dessa maneira, não só se usa linguagem equívoca ("movimento"), em vez da linguagem precisa do acto e da potência, como se fixa a atenção na palavra "tudo", como se havendo uma só excepção a esse "tudo", cairia por terra a primeira premissa.
Mas não é verdade.
Mesmo que houvesse uma excepção à lei de que "tudo o que se move é movido por outro", a primeira via poderia funcionar na mesma, bastando para tal abandonar o exemplo do MRU, e escolher qualquer outro exemplo no qual há uma actualização simultânea (causalidade "per se", em vez de "per accidens") de uma potência. A partir desse exemplo, e como não pode haver regressão infinita numa cadeia causal "per se", então existe um perfeitamente actual actualizador de potências. Logo, Deus existe.
Ajudei?
"God bless you!
Immanuel
(Catholic blogwalking)"
Thank you, Emmanuel!
God bless you too! :)
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