quinta-feira, 11 de abril de 2019

Conferência NEC: " Progresso da Ciência - O fim da Fé?" (Parte I)

O Núcleo de Estudantes Católicos da Nova Medical School organizou, na passada Terça-feira dia 9 de Abril, uma conferência intitulada "Progresso da Ciência - O fim da Fé?", para cujo painel fui convidado, juntamente com o Rev. Padre Hugo Santos e a Prof. Doutora Ana Félix.

O vídeo da conferência pode ser visto aqui:



Neste primeiro "post" de uma série de três "posts", partilho as notas que levei para a conferência, que são um pouco mais extensas em termos de conteúdo do que eu acabei por apresentar durante a sessão.


Parte 1 - Notas sobre Milagres e Leis da Natureza

  • Qual é a filosofia que está na base da Ciência moderna?
  • Livro da Sabedoria (Antigo Testamento), cap. 11, vs. 9, “Tu, porém, [Senhor] regulaste tudo com medida, número e peso”
  • Os judeus e os cristãos esperam um Cosmos racional, ordenado, inteligível: não é por acaso que a Ciência moderna nasce na Europa cristã
  • O que é uma “lei da natureza”?
    • É uma regularidade natural que pode ser representada matematicamente por uma ou mais equações
  • A expressão “lei da natureza” data do período da chamada “revolução científica” (séculos XVII e XVIII), que foi feita sobretudo por filósofos e cientistas cristãos (Bacon, Newton, Boyle, Descartes, Lavoisier, e outros)
    • Mas séculos antes, já os medievais, guiados pela forte convicção de que o Cosmos era racional, tinham descoberto várias “leis naturais”, por exemplo:
      • Explicação do arco-íris primário e secundário: Teodorico de Friburgo (séc. XIII)
      • Princípios básicos do magnetismo: Pierre de Maricourt (séc. XIII)
      • Leis do movimento, fenómeno do ímpeto: Jean Buridan, Nicole Oresme, Alberto da Saxónia, e o grupo dos “calculadores de Merton College”, em Oxford (activos no século XIV)
  • “Lei” implica um “legislador”: Isaac Newton, por exemplo, o “pai” da lei da gravitação universal, era cristão e via Deus como o “legislador cósmico”
  • Não é óbvio que existam leis universais, nem em Física, nem em Química, nem em Biologia, e assim por diante; essas leis foram descobertas porque eram esperadas, porque os cientistas que as descobriram eram cristãos ou pelo menos viam o Cosmos pelo prisma de uma cultura cristã
  • Ainda hoje, mesmo o cientista ateu entra no laboratório convicto de que há regularidades cósmicas por descobrir, e não duvida de que as fórmulas matemáticas mais elegantes saídas da sua cabeça serão bem-sucedidas na compreensão, quer das partes mais distantes do Cosmos, quer das mais microscópicas
  • As leis científicas não são como as leis da Lógica, que são absolutamente verdadeiras e inevitáveis e são conhecidas há séculos
  • As leis científicas podiam ser diferentes do que são, pelo simples facto de que a Natureza podia ser diferente do que é:
    • Por exemplo, Newton descobriu que corpos com massa atraem-se na proporção directa das suas massas, e inversa do quadrado da distância entre elas
    • Mas a intensidade dessa força também de depende de uma constante na equação, chamada “constante gravítica”, que podia ser diferente do que é
  • Sabemos hoje, graças aos avanços em Cosmologia e em Física, que vivemos num Universo incrivelmente afinado para haver vida, e vida inteligente (nenhum cientista o nega)
    • As próprias leis são “afinadas”
    • As constantes que figuram nas equações que representam essas leis estão “afinadas”
    • Até as quantidades iniciais de matéria-energia e de entropia, do Universo estão “afinadas”
    • Vivemos num Universo repleto de leis muito especiais, e que se mantêm válidas ao longo do tempo e através do espaço: porquê?
    • Não são apenas os milagres que são difíceis de explicar: porque é que há leis tão “afinadas”?
  • Citação de George Gabriel Stokes (séc. XIX), físico britânico, cristão:
    • «Admita-se a existência de um Deus, de um Deus pessoal, e a possibilidade de milagres decorre imediatamente. (...) se as leis da natureza são mantidas de acordo com a Sua [de Deus] vontade, Aquele que as quis pode querer a sua suspensão.» - Stokes, Natural Theology
    • Coisa espantosa: para o cristão, a possibilidade de milagres baseia-se na mesma vontade divina que explica a existência de leis naturais
    • Outro ponto importante: o conceito de milagre depende logicamente da existência de um Deus pessoal, um Deus dotado de vontade livre:  
      • Mas será que Deus existe?
      • A Igreja Católica ensina, no Concílio Vaticano I, que a existência de Deus pode ser conhecida com certeza à luz da razão partindo da observação da Criação
        • Dito de outra forma, a existência de Deus, para o católico, não é um artigo de Fé, mas sim um facto demonstrável
      • Para não me desviar demasiado no que vou dizer aqui esta noite, e para poder falar sobre milagres, vou partir do princípio de que a existência de Deus é aceite
      • É que não faz sentido discutir a possibilidade de milagres partindo do ateísmo:
        • Se o ateu diz que Deus não existe, então por definição não pode aceitar nem um só milagre, se estes dependem de Deus como causa principal
        • Mas um cristão pode discutir milagres com outras pessoas que acreditam que Deus existe, e até com agnósticos, para quem um milagre atestado e credível pode ajudar a aceitar a existência de Deus; esta noite vou falar de um caso desses, de um médico agnóstico que presenciou uma cura milagrosa
  • Um milagre é então a suspensão, temporária e num determinado local, de uma ou várias leis naturais por parte de quem as assim determinou (“Deus”); um milagre não tem que ser entendido como uma “violação” de leis conhecidas
    • Por exemplo, lá em minha casa, há uma regra simples: em época de exames não há jogos de computador
    • Eu e a minha mulher estipulámos essa regra, mas somos livres de criar excepções se quisermos, que não são “violações” dessa regra universal, mas sim suspensões pontuais e eventuais (e sublinho “pontuais” e “eventuais”) dessa regra, se assim o decidimos
    • As crianças é que violam a regra, se se atreverem a jogar em época de exames sem a nossa permissão 
    • O legislador é livre de suspender as leis que ele mesmo determinou
    • Se isso acontece nas coisas humanas, mais ainda sucede com a vontade libérrima de Deus
  • As “leis da natureza” representam matematicamente regularidade naturais que resultam da “criação contínua”, o acto pelo qual Deus mantém o Cosmos em existência a cada momento, com todas as suas entidades e forças regulares, com todos os seus processos naturais que a Ciência estuda
  • Na teologia cristã, o milagre é uma decisão livre e voluntária de Deus, não é um mecanismo nem um processo cuja causa principal seja “analisável” pela Ciência, embora a Ciência possa analisar os seus efeitos empíricos
  • A explicação principal para um milagre está num agente livre, que é Deus: é Ele Quem decide se faz ou não um milagre
  • Por definição, um milagre, da palavra latina “miraculum”, é algo de “admirável” e que pode ser verificado pelos sentidos;
    • Tem uma primeira causa sobrenatural, Deus
    • Mas tem efeitos naturais (verificados pelos sentidos); isto quer dizer que a Ciência pode analisar as causas secundárias (ou “instrumentais”) de um milagre; por exemplo, se Deus opera a cura de uma pessoa, Deus pode recorrer de forma instrumental a processos naturais (fisiológicos, químicos, etc.) para obter a cura desejada
  • A Igreja Católica tem critérios muito apertados para atestar eventuais milagres
  • Por exemplo, no caso específico das aparições e dos milagres marianos, ou seja, atribuídos a Nossa Senhora, o panorama é muito variado:
    • As aparições de Guadalupe, La Salette, Lourdes, Fátima, Akita, por exemplo, foram reconhecidas integralmente pela Igreja
      • Todavia, estas aparições não “obrigam” um católico, ou seja, não fazem parte da doutrina católica nem é obrigatório aceitá-las, embora não seja sensato rejeitá-las, pois foram consideradas dignas de crédito depois de uma longa e rigorosa averiguação
    • Já as aparições de Garabandal (Espanha) e Medjugorje (Bósnia-Herzegovina), por exemplo, até o momento não receberam reconhecimento oficial por parte da Igreja
    • Outras mesmo foram declaradas falsas pelas autoridades: por exemplo, as do movimento Mariavita na Polónia (Feliksa Kozłowska), as em Palmar de Troya em Espanha (Andaluzia), várias nos E.U.A.: Wisconsin (Mary Ann Van Hoof), Ohio (Maureen Sweeney Kyle) 
    • Um detalhe mais técnico: uma aparição será miraculosa apenas na medida em que for visível pelos sentidos externos, pois por definição, um milagre é algo empírico, capturável pelos sentidos; já uma visão interior, ou seja, que não envolva interacção entre radiação no espectro visível e o sistema visual humano, não consiste num milagre, embora possa ter origem divina

Em resumo, quando falamos de explicações miraculosas…
  • Não se trata de “provar” cientificamente que Deus é a causa de um fenómeno cientificamente inexplicável, o que seria um contra-senso
  • Trata-se de aceitar que, em certos e determinados casos, Deus pode ser a explicação derradeira mais racional para um fenómeno que a Ciência não explica inteiramente (embora possa explicar parcialmente)
  • Assim, um cristão deve partir para a análise racional de um alegado milagre ou aparição de mente aberta, disposto a seguir as evidências
    • Ao contrário do ateu, o cristão não está obrigado a descartar Deus do leque de explicações possíveis
    • Ao contrário da pessoa crédula e supersticiosa, o cristão não quer ter nada a ver com pseudo-milagres nem com falsos fenómenos sobrenaturais

Termino esta introdução citando o Padre Stanley Jaki, Físico e Historiador de Ciência, que morreu exactamente há 10 anos atrás (7 de Abril de 2009):

«Um mistério que seja lógico deve ser grandemente preferido face a um que seja ilógico.»

PS: No caso das curas milagrosas, é expectável que muitos rezem pela cura mas poucos a obtenham: Deus é soberano, e não está obrigado a atender aos nossos pedidos, sobretudo porque Deus está “fora do tempo” e no Seu “eterno presente” tem a visão de conjunto, e quem pede uma cura não tem essa visão de conjunto; rezar por uma cura não é uma qualquer “técnica” de manipulação de forças, analisável empiricamente e que se possa “dominar”; rezar é pedir algo a alguém em concreto, a Deus, que é livre de nos dar ou não o que Lhe pedimos; não podemos dizer que Deus é cruel só porque não cura quem lhe pede, pois não temos toda a informação nem beneficiamos do ponto de vista ilimitado de Deus 


Anexo: Critérios da Igreja Católica para validar aparições e revelações

Fonte: “Normas para proceder no discernimento de presumíveis aparições e revelações”, Congregação para a Doutrina da Fé, 25 de Fevereiro de 1978.

A) Critérios positivos:

a) Certeza moral, ou pelo menos grande probabilidade da existência do facto, adquirida por meio de uma investigação séria.

b) Circunstâncias particulares relativas à existência e à natureza do facto, ou seja:

  1. Qualidades pessoais do sujeito ou dos sujeitos (em particular, o equilíbrio psíquico, a honestidade e a rectidão da vida moral, a sinceridade e a docilidade habitual para com a autoridade eclesiástica, a predisposição para retomar um regime normal de vida de fé, etc.);
  2. No que diz respeito à revelação, doutrina teológica e espiritual verdadeira e isenta de erro;
  3. Devoção sadia e frutos espirituais abundantes e constantes (por exemplo, espírito de oração, conversões, testemunhos de caridade, etc.).

B) Critérios negativos:

a) Erro manifesto acerca do facto.
b) Erros doutrinais atribuídos ao próprio Deus, ou à Bem-Aventurada Virgem Maria, ou a algum santo nas suas manifestações, considerando todavia a possibilidade de que o sujeito tenha acrescentado – também inconscientemente – a uma autêntica revelação sobrenatural, elementos puramente humanos, ou então algum erro de ordem natural (cf. Santo Inácio, Exercícios, n. 336).
c) Uma procura evidente de lucro, ligada estritamente ao facto.
d) Actos gravemente imorais realizados no momento ou por ocasião do facto pelo sujeito ou pelos seus seguidores.
e) Doenças psíquicas ou tendências psicopáticas no sujeito, que com certeza tenham exercido uma influência sobre o presumível facto sobrenatural, ou então psicose, histeria colectiva ou outros elementos deste género.

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