No entanto, é caso para dizer que toda esta agitação está baseada, como quase todas as agitações deste mundo, num mal-entendido.
Uma pequena palavra: “trouxe”. Foi esta a palavra que eu usei, ao afirmar que o cristianismo nos “trouxe” uma boa noção de verdade. Eu pergunto se, quando temos amigos a jantar em sua casa, e algum traz uma garrafa de vinho, devemos deduzir entusiasticamente que esse excelente amigo seja produtor de vinho…
Quando eu escrevo que o cristianismo nos “trouxe” coisas boas, não estou a implicar que as tenha criado de raiz. Mesmo se eu tivesse escrito que o cristianismo “inventou” coisas boas, em sentido etimológico, seria o mesmo que escrever “trouxe”, pois o termo “inventar” vem do verbo latino que significa “descobrir”. O inventor descobre uma coisa até então nunca antes descoberta. Às vezes perdemos o sentido das palavras, e a confusão até poderia ter nascido se eu tivesse usado o termo “inventou”. Mas eu não gosto de complicar, e usei o simples e claro termo “trouxe”, que todos compreendem bem.
Se o Ludwig não me conhecesse, ele até poderia supor que eu não sabia que o conceito de verdade no tomismo é (à parte das suas especificidades únicas) decalcado do conceito aristotélico. Mas sucede que o Ludwig já teve algum tempo para me conhecer, pelo que eu não sei bem a que pode dever-se a sua suposição de que haveria confusão na minha cabeça a este respeito…
É certo que São Tomás, esse figura incontornável da intelectualidade medieval, recuperou todas as coisas boas que o aristotelismo tinha, e também descartou as más (como, por exemplo, a ideia errada de que o Universo seria eterno). É caso para supor que, se Aristóteles fosse vivo, não seria inverosímil vê-lo a correr para ser baptizado e para conhecer os ensinamentos de São Tomás, pois ambos são “almas-gémeas” no que diz respeito à procura da Verdade. São Tomás aperfeiçoa (precisamente porque cristianiza) o já por si valioso pensamento aristotélico. Aristóteles nunca conheceu Cristo, mas amou a Verdade. E quem ama a Verdade acima de todas as coisas (rigorosamente acima de todas), ama a Cristo. Aristóteles não sabia nada de Cristo, mas amava-O sem o saber.
Dito por outras palavras, o cristianismo dos homens de fé não criou nada: Cristo é que criou tudo. O conceito católico de “criação” significa fazer algo de novo sem usar nada preexistente, e tal conceito só se pode aplicar na forma verbal à acção criadora do Verbo, ou seja, Cristo. O cristianismo dos homens de fé procura defender e propagar a Fé cristã que é herança de Cristo, e quando a filosofia ou a teologia cristãs descobrem coisas até então desconhecidas, ou coisas importantes que muitos quase tinham esquecido (como a “verdade como adequação à realidade” do aristotelismo), não as estão a criar, mas sim a redescobrir. Redescobrem-nas com o tal intelecto humano que é feito à imagem e semelhança do intelecto divino, e que por isso mesmo, é um intelecto perfeitamente capaz de as descobrir. São Tomás escreve, no De veritate (I,2): «res naturalis inter duos intellectus constituta est», ou seja, a realidade natural está constituída entre dois intelectos, o divino, que cria todas as coisas através do Verbo, e o humano, capaz de as apreender intelectualmente.
É devido a uma estranha visão filosófica que o Ludwig supõe que o cristianismo pretende ter criado coisas novas, ao invés de as descobrir. Quem cria é o Criador. Aqui também se aprende muito com as crianças: os miúdos vivem fascinados com a descoberta do Mundo; por outro lado, é a alguns adultos que fascina o registo das patentes e das invenções, na euforia de quem pensa que criou algo de radicalmente novo. Quem ainda não compreende o que é o cristianismo, julga que o dito tem a pretensão de ter “criado” a verdade. Por outras palavras, com base nesta visão peculiar do cristianismo, a afirmação de que o cristianismo tinha criado a verdade (ou o conceito “verdadeiro” de Verdade, e que me seja perdoado o pleonasmo), o que é espantoso e incrível (ou seja, quase impossível de se acreditar). Mas a Verdade não é propriedade nem criação de nenhum intelecto humano.
Sobre o que acabei de escrever, seria possível objectar assim: “eu não contesto isso, contesto é que tenha sido o cristianismo a redescobrir o conceito de verdade, porque os gregos já o tinham sugerido”. Resposta simples: Aristóteles estava totalmente esquecido na Europa, durante quase todo o primeiro milénio da nossa era. O neoplatonismo dominava a intelectualidade europeia. O cristianismo, pela via (também notável e importante, mas muito diferente) de Santo Agostinho e da Patrística, era quase todo ele neoplatónico. A vasta obra de Aristóteles seduziu algumas mentes medievais persas, judaicas e islâmicas, que o traduziram e estudaram. Por via dos cordoveses do Al-Andaluz, sobretudo o judeu Maimónides e o muçulmano Averróis, mas sem esquecer o grande antecessor persa Avicena, a obra de Aristóteles entra “a matar” na Europa, primeiramente sob a forma de traduções em árabe, divulgadas a partir do Califado de Córdova. E o mérito da verdadeira redescoberta do aristotelismo, não sendo de retirar a estes três nomes não cristãos que referi, e a muitos outros nomes menores, deve-se sobretudo (pela sua defesa ardente e propagação pela cristandade) ao monge dominicano que foi São Tomás, que neles se inspirou para abrir as portas da Europa medieval à torrente de conhecimentos do Estagirita.
Queria mudar agora um pouco de tónica, e passar para algo mais genérico, que me parece que se aplica perfeitamente à posição do Ludwig…
Há uma altura na vida de cada pessoa atenta em que ela tem atrás de si metade da vida e à sua frente a outra metade. Não interpretando isto necessariamente de forma cronológica: não me refiro à metade temporal da nossa vida, ao dia que representa o meio entre o nosso nascimento e a nossa morte. Falo, isso sim, do meio da nossa vida em termos de maturação. E, como se sabe, há quem atinja a maturação bem antes do meio cronológico e quem a atinja bem depois. E há quem nunca a atinja.
Por isso, o “meio da vida” deverá ser algo como Dante o concebia (“nel mezzo del camin di nostra vita”, no início da Divina Comédia), ou ainda como aquela frase “É o meio da vida”, naquele paradigma da arte de escrever contos que é “A viagem”, de Sophia de Mello Breyner…
Eu imagino que quando se chega a esse momento (eu ainda não o vislumbro), se possa ter um perfeito equilíbrio entre o final da pulsão contestatária da juventude e o início da contenção tradicionalista da maturidade.
Gilbert Keith Chesterton estava, certamente, já para lá do meio da sua vida, no sentido atrás apresentado, quando escreveu este belo naco de maduras verdades:
«Perhaps there is really no such thing as a Revolution recorded in history. What happened was always a Counter-Revolution. Men were always rebelling against the last rebels; or even repenting of the last rebellion. This could be seen in the most casual contemporary fashions, if the fashionable mind had not fallen into the habit of seeing the very latest rebel as rebelling against all ages at once. The Modern Girl with the lipstick and the cocktail is as much a rebel against the Woman's Rights Woman of the '80's, with her stiff stick-up collars and strict teetotalism, as the latter was a rebel against the Early Victorian lady of the languid waltz tunes and the album full of quotations from Byron: or as the last, again, was a rebel against a Puritan mother to whom the waltz was a wild orgy and Byron the Bolshevist of his age. Trace even the Puritan mother back through history and she represents a rebellion against the Cavalier laxity of the English Church, which was at first a rebel against the Catholic civilisation, which had been a rebel against the Pagan civilisation. Nobody but a lunatic could pretend that these things were a progress; for they obviously go first one way and then the other. But whichever is right, one thing is certainly wrong; and that is the modern habit of looking at them only from the modern end. For that is only to see the end of the tale; they rebel against they know not what, because it arose they know not when; intent only on its ending, they are ignorant of its beginning; and therefore of its very being. The difference between the smaller cases and the larger, is that in the latter there is really so huge a human upheaval that men start from it like men in a new world; and that very novelty enables them to go on very long; and generally to go on too long. It is because these things start with a vigorous revolt that the intellectual impetus lasts long enough to make them seem like a survival. An excellent example of this is the real story of the revival and the neglect of Aristotle. By the end of the medieval time, Aristotelianism did eventually grow stale. Only a very fresh and successful novelty ever gets quite so stale as that.- G. K. Chesterton, Saint Thomas Aquinas.
When the moderns, drawing the blackest curtain of obscurantism that ever obscured history, decided that nothing mattered much before the Renaissance and the Reformation, they instantly began their modern career by falling into a big blunder. It was the blunder about Platonism. They found, hanging about the courts of the swaggering princes of the sixteenth century (which was as far back in history as they were allowed to go) certain anti-clerical artists and scholars who said they were bored with Aristotle and were supposed to be secretly indulging in Plato. The moderns, utterly ignorant of the whole story of the medievals, instantly fell into the trap. They assumed that Aristotle was some crabbed antiquity and tyranny from the black back of the Dark Ages, and that Plato was an entirely new Pagan pleasure never yet tasted by Christian men. Father Knox has shown in what a startling state of innocence is the mind of Mr. H. L. Mencken, for instance, upon this point. In fact, of course, the story is exactly the other way round. If anything, it was Platonism that was the old orthodoxy. It was Aristotelianism that was the very modern revolution. And the leader of that modern revolution was the man who is the subject of this book.»
Em certas maneiras peculiares de ver a História, parece que é desenhada algures uma fronteira (mesmo que não seja fixando uma data em concreto) a partir da qual o Homem se abre para a modernidade, e que essa fronteira se abriria magicamente sem qualquer influência da Igreja Católica e do catolicismo, ou porventura apenas graças ao colapso da sua influência. E até se fala na superioridade científica do “norte da Europa”, sem referir que a Reforma de Lutero, ocorrida no tal “norte da Europa” foi um passo atrás para a Razão ocidental, na medida em que o dito preconizava, de forma não pouco radical, a rejeição completa da Filosofia. Atrevo-me a citar Chesterton de novo:
«It came out of its cell again, in the day of storm and ruin, and cried out with a new and mighty voice for an elemental and emotional religion, and for the destruction of all philosophies. It had a peculiar horror and loathing of the great Greek philosophies, and of the scholasticism that had been founded on those philosophies. It had one theory that was the destruction of all theories; in fact it had its own theology which was itself the death of theology. Man could say nothing to God, nothing from God, nothing about God, except an almost inarticulate cry for mercy and for the supernatural help of Christ, in a world where all natural things were useless. Reason was useless. Will was useless. Man could not move himself an inch any more than a stone. Man could not trust what was in his head any more than a turnip. Nothing remained in earth or heaven, but the name of Christ lifted in that lonely imprecation; awful as the cry of a beast in pain.»- G. K. Chesterton, Saint Thomas Aquinas.
De modo também estranho, o Ludwig não cita a católica Contra-Reforma como uma vigorosa manifestação da força intelectual de um catolicismo que conjuga Revelação com Razão, de um catolicismo que não se quer certamente apartar da Fé, mas também não se quer apartar da Filosofia Clássica nem da síntese escolástica.
Mas, à parte destas estranhas lacunas que desfocam implacavelmente uma visão realista da história da intelectualidade europeia, o que mais me impressiona, nas ideias do Ludwig, é que ele parece não reconhecer que, sem o cristianismo (e sem o judaísmo, que foi integrado no cristianismo), não haveria qualquer razão intelectual para supor que o Mundo seria ordenado, inteligível, que permaneceria o mesmo independentemente do observador, que não seria um Mundo enganador, ou que os nossos sentidos não seriam enganadores ou subjectivos. Sem o cristianismo, o que nos faria supor que o João vê o mesmo que a Maria ou que o Manuel? Ou que o ferro do século XIV exibiria uma resposta mecânica semelhante à do ferro do século XIX?
O Ludwig, e tantos outros, citam os grandes filósofos gregos como a prova de que a Razão que hoje usamos não se deve ao catolicismo. É como se a Igreja Católica fosse uma espécie de carcinoma histórico que teria impedido que os bons velhos filósofos gregos falassem com os bons novos cientistas ateus.
Só que o Ludwig, e tantos outros, esquecem-se que os “grandes filósofos gregos“ eram também os “poucos filósofos gregos”, visto que a esmagadora maioria da sociedade grega vivia num intelectualmente instável ambiente de superstição e paganismo. Quase toda a sociedade tinha grandes dúvidas acerca da estabilidade ou da fidelidade do Mundo e dos cinco sentidos. Como poderia surgir, dessa sociedade supersticiosa, uma nova elite científica, só com base numa mão-cheia de bons filósofos, confundidos no meio da multidão? Quase todos os gregos acreditavam que tudo poderia ser virado do avesso pelos caprichos dos Deuses. Já o Deus cristão é um Deus bom e justo, cujas acções são relativamente previsíveis (castigar os maus, recompensar os bons, e outras coisas expectáveis e razoáveis num Deus bom e justo). Não contesto que, de certo modo, todas as sociedades ao longo da História tenham possuído as suas elites, e que estas até teriam imensos pontos em comum. O que afirmo é isto: sem uma apetência social dominante, não há ambiente propício ao desenvolvimento da Ciência. O cristianismo criou essa apetência social dominante para a confiança nos sentidos, no Mundo, e para um novo entusiasmo pela Natureza.
Ora, se aceitarmos olhar de frente para o problema concreto de que o cristianismo é a própria razão de ser da modernidade, percebemos como um ateu não terá maneira de fugir a um tremendo paradoxo intelectual: ser ateu contra o cristianismo, mas ao mesmo tempo, por causa dele. É, de certo modo, o resultado expectável de uma forma reducionista de olhar para a História: o ateu olha para o ateísmo como uma revolução necessária, e olha para a Igreja Católica como o tradicionalismo caduco e desnecessário, sem se dar conta de que, por exemplo, a Contra Reforma do século XVI é, ela sim, uma revolução intelectual necessária contra um errado e falso “tradicionalismo” luterano, que pretendia distorcer a fé cristã e fazer dela uma superstição irracional ou anti-racional. Lutero estava profundamente errado, porque a própria Patrística, nos primórdios do cristianismo, era muito mais racional que Lutero e muito diferente da ideia que Lutero fazia dela.
Aqueles cristãos excessivamente neoplatónicos do primeiro milénio olhavam para a Escolástica como uma revolução perigosa, e para São Tomás de Aquino como um perigoso inovador. Passam-se as gerações, e São Tomás passa também a ser olhado pelos homens da modernidade como um conservador excessivo. Mas tudo isto é ilusão, como mostra Chesterton, pois esta tensão entre “revolução” e “tradição” é fundamental. Esta tensão deve existir em cada mente inteligente e aberta à realidade, que não fica refém de preconceitos históricos, e que procura ver através dos séculos onde se encontra a verdade última das coisas. Essa perfeita tensão, esse perfeito equilíbrio, manifesta-se em cada pessoa de boa vontade algures naquele “meio da vida” que eu referia atrás, e que se apresenta, algures na nossa vida, como uma paradoxal “selva” escura e obscura.
O que o texto do Ludwig nos mostra é uma certa rendição por não ser possível desfazer o paradoxo, esse grande paradoxo que se revela como a dificuldade mestra da nossa vida: o que fazer com a “selva”, quando ela se nos depara?
A questão mais sensível, para qualquer ateu, é a mais paradoxal de todas: o ateísmo e toda a sua apologia moderna, assentam na defesa de um mísero anão filosófico aos ombros de um gigante filosófico: defender o ateísmo como a vitória contra o obscurantismo cristão é como defender o anão que se convence de que não precisa do gigante que o sustenta.
O que fazer, perante a densa evidência de que o cristianismo foi o motor e a dinâmica de toda a cultura europeia moderna, que a razão tão enaltecida pelos ateus de hoje é consequência da Razão cristã, do Logos, que entretanto se espalhou não só por toda a Europa mas também por grande parte do globo?
Das duas uma: ou a negação, a recusa, a teimosia…
Ou então a conversão!
É que não há meio-termo: a recusa é a perpétua rebeldia adolescente, do teimoso revolucionário que quer ser revolucionário até morrer, lutando até à morte, a certa altura já de forma conservadora, contra as novas gerações que, por sua vez, já surgem com vontade de deitar fora a revolução do velho (que vêem como conservadora) para implantar a sua nova revolução…
A conversão é a aceitação da maturidade: é a realização total do ser humano. É olhar para toda a humanidade, do passado, do presente e do futuro, e ver o Homem. E não se vê o Homem como ele é sem se ver a Deus, pois Deus e o Homem são os dois “pólos intelectuais” da realidade, como ensina São Tomás. Toda a realidade, física ou metafísica, assenta entre estes dois tipos de intelecto. Por isso mesmo, toda a realidade é inteligível e compreensível. Esta seria uma forma de argumentar por uma evidente teleologia que tantos insistem em negar.
Este é o grande paradoxo, e é assim que o ateu honesto (porque o desonesto está-se nas tintas) vive tristemente a sua “selva”: ele olha para o gigante debaixo dele e diz para si mesmo algo que é totalmente absurdo: “eu não tenho nada a ver com este tipo, que representa tudo o que eu detesto e rejeito, mas no entanto ele apoia-me e não existo sem ele”.
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