O caríssimo Helder Sanches, cuja escrita acompanho há um bom tempo, no novo espaço Portal Ateu (aproveito para elogiar o grafismo do espaço), escreveu sobre o eterno tema do "Jesus histórico", num texto de opinião intitulado Jesus e a frequência do diálogo.
Sei que vou ser injusto na medida em que não vou responder ao texto do Helder como um todo. Admito honestamente que vou implicar com uma certa frase, que me fez grande confusão (não pela frase em si mesma, mas ao constatar o facto de que uma pessoa inteligente como o Helder a escreveu, o que me faz não pouca confusão).
A certa altura, o Helder sugere, acerca de Jesus:
«Terá sido um mero produto de Paulo de Tarso?»
Se calhar, falta gente nesta frase. Sugeri, então, num comentário, ao Helder, que a frase ficaria melhor assim:
«Terá sido um mero produto de Paulo de Tarso? E do publicano Mateus? E do médico Lucas, que acompanhava Paulo? E de Marcos, discípulo de Pedro? E dos pescadores Pedro, João, André e Tiago, que pescavam no mar da Galileia? E do historiador Flávio Josefo? E do historiador Suetónio? E de Tácito? (…)»
Não sou especialista, mas tenho a sensação de que esta listazinha que compilei aqui poderia preencher largas páginas. A posição do Helder não deixa de ser curiosa. Tapar o sol com a peneira. Deve ser mais fácil provar que Cleópatra, ou Marco Aurélio, não existiram. A única diferença que estes dois já não chateiam ninguém, mas Jesus continua a ser um pouco incómodo…
Também é curiosa a forma que o Helder usa para expor o seu raciocínio. É mais ou menos assim:
a) Jesus não existiu (o Helder dissimula alguma moderação dizendo que o assunto “é polémico”)
b) mas se existiu (ou seja, se a bujarda anterior falhar o alvo), então não é o mesmo Jesus de que falam os crentes
O problema é que existe toda uma avalanche de documentação acerca do único Jesus, o histórico e o da fé, pois são o mesmo. Só que essa documentação é considerada inválida, por ter sido gerada e produzida por homens de fé. E, como todo o bom ateu sabe, é inaceitável qualquer documento escrito por um homem de fé.
A “moda” (que já data das obras de um Renan, e do melhor estilo revisionista medíocre do final do século XIX) da simultânea negação da existência de Jesus e da separação Jesus histórico - Jesus da fé, apesar de ser uma moda incoerente (porque não se decidem se Jesus existiu ou não), é uma moda que, espantosamente, ainda encontra adeptos nos dias de hoje.
Helder: por favor, não caia também nesta esparrela!
Se repararmos, por detrás destas "teorias" acerca de Jesus está um “não-raciocínio”: afirmar que Jesus não existiu, mas que se existiu era diferente deste que a Igreja fala: trata-se de um mero exercício da vontade contra a objectividade.
É por capricho pessoal que se acredita nestas coisas, indo contra todas as evidências históricas de que o Cristianismo, como fenómeno social, era impossível sem Cristo.
Recordo-me sempre, nestas ocasiões, do aviso que fazia o grande Bossuet (1627-1704) acerca dos perigos de dar primazia à vontade em detrimento da objectividade:
«Le plus grand dérèglement de l’esprit c’est de croire les choses parce qu’on veut qu’elles soient»
Ou seja, a maior avaria do espírito consiste em acreditar em certas coisas porque queremos que elas assim sejam.
É só porque o Helder QUER que Jesus não tenha existido, e curiosamente ao mesmo tempo QUER que o Jesus histórico seja diferente do Jesus da fé, que ele se recusa a receber a informação histórica objectiva de que tal homem, acredite-se ou não na sua divindade, de facto, andou sobre esta Terra.
Louvo o esforço do Helder, mas não é diferente do de um D. Quixote a combater com os moinhos, e com uma qualidade a menos. É que este notável cavaleiro era um sonhador de sonhos valiosos, enquanto que o meu caro Helder propõe um pesadelo: o do sacrifício da objectividade e da verdade às mãos tiranas da vontade.
À parte desta minha mísera contestação, quero desejar os maiores sucessos (em termos de público e de grafismo Web - porque o conceito de ateísmo não pode ter, por definição, grande sucesso) ao novo espaço ateísta na Internet lusófona.
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