sexta-feira, 21 de abril de 2023

A banalidade do aborto e da eutanásia

No ano passado, li "Ordinary Men: Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland" (1) de Christopher Browning, uma obra que acompanha o percurso dos polícias do Batalhão 101 durante a Segunda Guerra.

Browning propõe e defende que se estudem os crimes dos nazis com base na sociologia e na psicologia das pessoas comuns, e não dos psicopatas: pessoas comuns, tal como os polícias que compunham o Batalhão 101. O livro de Browning é muito incómodo e ainda não deixou de gerar polémica desde que surgiu em 1998.


O Batalhão 101 era composto por cerca de cinco centenas de polícias naturais da cidade de Hamburgo. Muitos eram polícias na reserva que o Terceiro Reich recrutou para tarefas sujas. Nos primeiros anos da guerra, essas tarefas consistiam em vigiar prisioneiros nos territórios ocupados à Polónia, no chamado Warthegau. Mas a partir do Verão de 1942, há uma viragem dramática na direcção do genocídio. No caso do Batalhão 101, a sua experiência inaugural com o genocídio tem lugar na aldeia polaca de Jósefów. Na madrugada de 13 de Julho de 1942, a esmagadora maioria dos homens não sabia ao que ia: sabiam apenas que iam receber uma missão especial. Ao raiar da aurora, chegam a Jósefów e recebem de um comandante Trapp em visível estado de ansiedade as instruções do dia. Teriam que ir, casa a casa, recolher todos os Judeus da aldeia. Os que se recusassem a sair de casa ou não se pudessem mover deveriam ser executados na hora. Os restantes seriam agrupados no mercado da aldeia. Então, os homens capazes de trabalhar seriam colocados de parte para as fábricas do regime e para os campos de trabalho, e os restantes, sobretudo mulheres, crianças e idosos, seriam transportados para a floresta e fuzilados à queima-roupa com um misericordioso tiro na nuca. Seriam dadas indicações prévias acerca da técnica mais eficaz de fazer pontaria e disparar um tiro certeiro.


Trapp, ciente de que era a primeira vez que pedia tal coisa aos seus homens, fez ao início da madrugada uma concessão. Quem não quisesse poderia recusar a tarefa. Uma dúzia de homens, uma dúzia apenas, aceitou a oferta de Trapp e entregou a sua arma. Com o passar das semanas, o Batalhão 101 seria chamado para mais algumas "acções judaicas" ("Judenaktion", ou apenas "aktion", eufemismos comuns). O repetir dos massacres teria efeitos diversos nos vários membros do Batalhão. Uma parte significativa dos homens solicitou dispensa a certa altura, alegando falta de forças para participar nos fuzilamentos: nestes casos, o instinto natural falou mais alto e não foi possível, a partir de certa altura, continuar a disparar contra civis inocentes. Outra parte significativa, pelo contrário, adquiriu aparentemente o gosto pelo genocídio e aprofundou os seus requintes de crueldade. Curiosamente, não surgiram homens objectores por razões de consciência. Quem pedia para ser dispensado dos fuzilamentos não o fazia atacando abertamente a ideologia nazi, ou em prol do direito à vida, ou de outros princípios éticos, mas sim assumindo-se como "fraco" ou "sem forças", ou mesmo "doente". Era uma forma de o seu pedido de dispensa não ser visto como um ataque aos companheiros que não o tinham pedido. A última coisa que eles queriam, aparentemente, era quebrar o espírito de grupo. Que lição para os nossos tempos.


Os que pediram para ser dispensados foram-no sem represálias significativas, o que é relevante. Para manter o espírito de grupo, alguns dos líderes mais convictos do Batalhão procuraram levar todos os homens a matar, tentando que todos tivessem o seu quinhão de fuzilamentos, e censuravam verbalmente os que se recusavam; mas os dados históricos recolhidos por Browning mostram que quem quis, pôde evitar participar nas matanças. Mais ainda, outras tarefas permitiam evitar participar nos fuzilamentos sem sequer receber insultos ou ser humilhado perante os companheiros, como por exemplo: vigiar os percursos, organizar as marchas de Judeus, fazer rusgas, recolher e processar os bens materiais das vítimas, ou mesmo inventar alguma tarefa burocrática só para não estar presente na hora "H".


Este é o dado perturbador da obra de Browning: aqui temos homens, na sua maioria de meia-idade, da geração anterior à subida de Hitler ao poder. Numa significativa proporção do Batalhão, não eram homens da Juventude Hitleriana, não eram nazis desde o berço. Falamos de homens comuns, cidadãos de Hamburgo, de classe média, que foram recrutados para uma tarefa horrível, e que podendo evitá-la sem represálias não o fizeram, excepto uns poucos quantos.


Daí o título incómodo que Browning escolheu para o seu livro: "Ordinary Men”: pessoas comuns que se vêem numa situação de inesperado convite à violência, e sem o risco de sérias represálias, na sua maioria acabam por o aceitar. 


Os psicólogos e sociólogos debruçam-se sobre este enigma moral e social, encontrando uma série de razões individuais e colectivas que iluminam também os nossos tempos: 


  • Os homens, embora contrafeitos, não queriam contestar a autoridade de onde emanava a ordem; isto sucedia em todos os graus hierárquicos: Trapp, o comandante do Batalhão, aceitou com repugnância a ordem que lhe chegou do SS Globočnik, um dos organizadores do Holocausto, mas no entanto deu-lhe seguimento, e comunicou a ordem aos seus homens, não sem deixar claro para eles que a ordem o repugnava; há testemunhos de que Trapp chorou no dia do primeiro massacre em Jósefów;
  • Os homens não queriam abandonar os seus companheiros de armas, não queriam ser vistos como cobardes que evitavam o "trabalho duro" enquanto que outros o aceitavam com estoicismo; 
  • Alguns, os mais novos, terão pensado de forma individualista, em como um pedido de dispensa poderia prejudicar uma futura carreira: isto aconteceu nas camadas mais jovens do Batalhão 101, homens de vinte e poucos anos, formados na Juventude Hitleriana;  um homem em particular, o SS Julius Wohlauf, era um entusiasta nazi, e terá disparado o seu gatilho com convicção - os homens da sua unidade recordam, nas suas memórias, o desconforto que sentiram quando o Capitão Wohlauf optou por fazer a sua lua-de-mel em plena "judenaktion", sendo que a sua jovem mulher, Vera (por sinal, grávida na altura), acompanhou os homens numa “aktion” com vivo entusiasmo.


Mas a maioria dos homens não eram como o jovem nazi Wohlauf nem achavam piada à sua noiva Vera: aqui temos um batalhão de homens de meia-idade que não tinham recebido doutrinação particularmente forte, não possuíam carácter violento nem impulsos genocidas. E no entanto, fuzilaram homens, mulheres e crianças indefesas. Esta é a lição a retirar do livro de Browning: etiquetar todos os crimes cometidos no Terceiro Reich como casos de psicopatia não corresponde à verdade.


A obra de Browning faz lembrar o também polémico livro de Hannah Arendt, "Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil", publicado em 1963 (2). Arendt fez a cobertura jornalística do julgamento de Eichmann em Jerusalém, sob as autoridades judiciais do recém-criado estado de Israel. De forma convincente, Arendt descreve o perfil de Eichmann, um dos principais organizadores do Holocausto, como sendo muito mais o perfil de um burocrata eficiente, um carreirista, ao invés do perfil de um monstro sádico ou de um psicopata. 


A polémica gerada pelo livro de Arendt, e mais tarde a polémica gerada pelo livro de Browning, têm pelo menos um elemento em comum: revelam o enorme desconforto causado pela tese de que pessoas normais e banais podem cometer (ou pelo menos tolerar) os piores dos crimes. É certamente mais fácil acreditar que "nós" somos bons, enquanto que "eles", os nazis, eram maus, monstros psicopatas. 


Mas é a inteira mobilização de uma sociedade para o genocídio (ou pelo menos para a fria indiferença da maioria ante a sorte dos Judeus) que grita por uma explicação. 


Da parte que me toca, católico que sou, aceitando a verdade evidente do Pecado Original, as abundantes referência de Arendt e Browning à "banalidade do mal" fazem muito mais sentido do que as explicações simplistas e monocausais baseadas, por exemplo, num "anti-semitismo psicopata" encarnado pelo Terceiro Reich e único àquele contexto geográfico e cultural (3).


Na contagem de cadáveres, o Batalhão 101 matou, no intervalo entre Julho de 1942 e Novembro de 1943, 38.000 pessoas e colaborou na deportação de outras 45.200 pessoas para os campos de extermínio. Os homens sabiam perfeitamente que a morte aguardava os Judeus por eles deportados.


Passamos, depois desta introdução, para uma série de analogias entre os crimes nazis e os novos "crimes" praticados na nossa sociedade: os crimes do aborto e da eutanásia (em breve num hospital perto de si). 


Vários dos que vão ler estas linhas irão gritar de indignação e rasgar as vestes da sua perfeição moral. É a costumeira miopia moral. "Eu não posso ser tão mau assim!"


O que se segue são analogias. A analogia é uma relação de semelhança entre coisas diferentes. A analogia não consiste na equalização forçada de coisas distintas, mas sim em encontrar semelhanças entre coisas diferentes e, neste caso, distantes no tempo e no espaço. Sou o primeiro a dizer que há inúmeras e grandes diferenças entre os crimes dos nazis e os crimes modernos do aborto e da eutanásia. Mas creio que podemos e devemos retirar lições, não tanto das diferenças entre ambos os crimes mas do que é semelhante ou mesmo idêntico em ambos.


Os números do aborto em Portugal são da mesma ordem de grandeza dos mortos do Batalhão 101. 

Faltam-nos hoje cerca de 200.000 portugueses, abortados "legalmente" desde 2007. Muitos seriam hoje crianças e adolescentes se os tivessem deixado viver. São danos colaterais do "progresso" da sociedade, sobretudo da secularização de uma sociedade que perdeu em larga medida a sua bússola moral e que que se tornou indiferente às vítimas do aborto, de uma sociedade embrutecida, cada vez mais ignorante e enganada pela propaganda e pela linguagem dos "direitos reprodutivos" e da "saúde reprodutiva", eufemismos consagrados quer pelos governos quer pelas organizações não-governamentais. 


São obviamente números de barbárie, pois um cadáver que não resulta de morte natural ou acidental mas sim de morte provocada é sempre o resultado de um crime abominável, quaisquer que sejam os motivos ou as atenuantes em cada caso. A sociedade bem-pensante protestará vigorosamente contra esta comparação. Não podemos comparar, dirão eles, o fuzilamento de inocentes à queima-roupa com um aborto cirúrgico ou químico de um ser humano por nascer. No primeiro caso, a morte é feita ao ar livre no meio da floresta com a violência das armas de fogo, ou nas câmaras de gás de um campo de concentração. Muitas vítimas sofrem por antecipação, ao verem o destino que as espera. Já no aborto, a vítima é muito pequena para saber o que lhe irá suceder, e a sua morte é provocada no ambiente asséptico e bem iluminado de uma civilizada "clínica de prestação de IVG". Comme il faut!


(Para sermos justos na comparação, há uma enorme diferença entre os dois tipos de barbárie. No caso do aborto, as mães que abortam são, também elas, vítimas do tremendo crime que acabam por cometer, muitas delas sob forte pressão social, familiar ou profissional. Não creio que sejam muitos os casos de mães que abortaram em total liberdade, sem pressões, e que não se arrependeram de o terem feito, ou que consigam viver sem essa culpa todos os dias da sua vida. Também aqueles que irão pedir a eutanásia serão vítimas do tremendo crime que, no seu desespero, irão pedir a outros para cometer em seu nome.)


A indiferença da nossa sociedade perante o aborto e a eutanásia é comparável à dos alemães durante a Segunda Guerra, indiferentes ao destino dos judeus, previamente desumanizados ao longo de um processo gradual. Os homens do Batalhão 101 passaram por essa fase de desumanização dos Judeus quando viviam na sua cidade natal de Hamburgo, antes de serem recrutados. Do mesmo modo, só foi possível que a sociedade Portuguesa aceitasse a eliminação de 200.000 concidadãos graças a um longo e moroso processo de descida em direcção à barbárie, com diversas etapas de atordoamento moral. Tal como no Terceiro Reich, é preciso “converter” profissionais de saúde, eleitores, forças policiais, tribunais, e por fim toda a sociedade à nova ideologia antes de começar a matar. Foi preciso conduzir gradualmente, qual marionetas, toda uma sociedade inteira até que esta pudesse compreender a alegada justiça, a alegada bondade e as alegadamente superiores razões destes “progressos”. 


Por outro lado, certamente que não se recruta o pessoal médico de uma "clínica" de aborto à porta dos edifícios católicos ou protestantes do nosso País. Tal como foi necessário na Alemanha nazi destruir primeiro a velha ética prussiana, protestante e católica (4), foi também necessário erradicar o espírito católico da Nação Portuguesa, para que muitos Portugueses pudessem aceitar as novas e tenebrosas ideias, ideias que gelariam o sangue dos nossos antepassados.

As ideias nazis tiveram que ser instiladas na Juventude Hitleriana removendo previamente a prática religiosa. Também não se conseguiu em Portugal arregimentar apoiantes do aborto e da eutanásia entre as poucas famílias católicas que restam e que têm as crianças na catequese. Seria interessante investigar quais as convicções e as práticas religiosas dos médicos que praticam o aborto em Portugal, e dos que irão praticar a eutanásia. 


Vejamos um exemplo claro da importância da ética cristã como baluarte contra a barbárie, um exemplo de entre muitos que enchem as páginas do livro "The Righteous - The unsung heroes of the Holocaust" de Martin Gilbert (5). 


Um Judeu, de seu nome David Prital, é aconselhado a procurar refúgio numa família protestante (baptista) algures na Ucrânia rural. Depois de bater à porta, um homem abriu e:

Com lágrimas nos olhos, ele reconfortou-me e imediatamente percebeu quem eu era. Juntos entrámos em sua casa e eu percebi imediatamente que tinha conhecido uma pessoa maravilhosa. "Deus trouxe-nos um convidado importante para nossa casa", disse ele à sua mulher. "Devemos dar graças a Deus por esta bênção". Eles ajoelharam-se e eu ouvi uma oração maravilhosa a sair dos seus corações puros e simples, [que] não [estava] escrita num único livro de orações. Ouvi um canto dirigido a Deus, agradecendo a Deus pela oportunidade de conhecer um filho de Israel nestes dias loucos. Pediram a Deus para ajudar aqueles que se escondiam nos campos e na floresta a permanecerem vivos. Seria um sonho? Seria possível que pessoas destas ainda existissem neste mundo? (...) Eles pararam de rezar e sentámo-nos à mesa para uma refeição, que era agradável. A mulher do camponês deu-nos leite e batatas. Antes da refeição, o chefe da casa leu um capítulo da Bíblia. Aqui está, pensei eu, este é o grande segredo. Neste livro eterno que elevou a sua moralidade até alturas inacreditáveis. Foi este mesmo livro que encheu os seus corações de amor pelos Judeus.

A secularização prévia da sociedade, a erradicação do cristianismo que serve de baluarte contra a barbárie, escancara as portas da sociedade a novos males, que se tornam mais fáceis de aceitar sem resistência.


Outra analogia interessante pode ser encontrada entre os que compunham o "pelotão da frente" dos crimes nazis (polícias e soldados) e os que compõem hoje o "pelotão da frente" dos crimes de aborto e eutanásia (médicos e enfermeiras). Em ambos os casos, a semelhança está na perversão de duas figuras-chave da sociedade ocidental: os agentes da ordem e da paz e os prestadores de cuidados de saúde. Os primeiros têm a obrigação moral de proteger a sociedade e os segundos a obrigação moral de proteger a saúde dos doentes. É preciso reflectir nisto: só é possível cometer crimes em larga escala fazendo primeiro o desnorteamento moral das figuras com autoridade moral na sociedade, de forma a que estas consigam "encaixar" os novos crimes sob a alçada das suas funções sem sentirem grande repulsa. Foi também essencial em ambos os casos conseguir o silêncio do clero, quer com os crimes nazis quer com os novos crimes do aborto e da eutanásia. Quer nos primeiros, quer nos últimos, o clero não se envolve materialmente nos crimes, mas o seu silêncio vale ouro para as forças da morte. No nosso tempo, foi também um factor importante que o escândalo dos abusos sexuais tenha levado a Igreja Católica a perder a coragem moral para falar.


Escapa aos proponentes da eutanásia voluntária que esta não é um acto individual como o suicídio: a eutanásia legalizada implica transformar o pessoal médico e de enfermagem em homicidas. É um homicídio solicitado, sim, mas não deixa de ser homicídio. No momento em que ultrapassa essa fronteira ética, o médico deixou de ser médico e o enfermeiro deixou de ser enfermeiro. Em bom rigor, podemos dizer que venderam a alma ao Diabo, tal como os polícias e soldados do Terceiro Reich abandonaram tudo o que era bom e moral para abraçarem o Mal.


Depois de passarem a fronteira da barbárie, aqueles que deviam ser agentes do bem, ficam reféns de uma perversa racionalização "ex post facto": "Uma vez que abortei, uma vez que eutanasiei, posso alguma vez ser assassino? Mas eu sei que não sou má pessoa! Não sou um assassino! Logo, eu não matei. Logo, o aborto não é matar. Logo, eutanásia não é matar."


A analogia no caso dos juizes e políticos é de outra natureza. Estes não são agentes materiais dos crimes, mas sim agentes morais. Formiguinhas atarefadas, abelhinhas incansáveis que, de lei em lei, de palavrinha em palavrinha, ajustando os decretos e os pareceres até que "a coisa passe", preparam o nosso colapso moral. 


Voltemos aos primórdios do nazismo. O imbróglio legal nos primeiros tempos do regime nazi era este: como evitar que um "bom cidadão ariano" corresse o risco de ser condenado à morte se matasse Judeus? Tal como foi preciso na Alemanha Nazi alterar as leis para evitar que tanta gente boa viesse a ficar sob a alçada da pena capital, também em Portugal foi necessário descriminalizar o aborto e agora a eutanásia. Ainda hoje os defensores do aborto, na sua maioria, não conseguem lidar com o facto de que o aborto é matar e também não irão facilmente aceitar que a eutanásia seja matar. É essencial para a segurança dos perpetradores, e também para criar uma ilusão de conforto moral na sociedade, mudar o enquadramento legal para que a Lei civil, esse garante da paz e da ordem, seja pervertida antes de se cometerem os crimes. A Lei, esse reduto normativo, tem que ser alterada para que o bem passe a ser o mal e o mal passe a ser o bem. Sobretudo numa sociedade secularizada que abandonou a Lei de Deus, é essencial perverter a Lei dos homens, esse último reduto normativo para quem não acredita em Deus.


Outra analogia interessante é a que ocorre entre os dois tipos de despersonalização da vítima. O Alemão pré-nazismo era definido como tal por ter nascido na Alemanha, mas depois passa a ser definido com base numa suposta pureza racial, com base na sua árvore genealógica. Os Judeus deixaram de ser "dos nossos", passaram a ser párias sub-humanos, "Untermenschen". Note-se que este fenómeno não é apenas inerente ao Nazismo, mas a qualquer contexto no qual se pretenda fazer a barbárie. Os bolcheviques, no auge da revolução soviética, tiveram que despersonalizar os apoiantes do antigo regime czarista. Antes de serem mortos, foi preciso convertê-los em ex-pessoas ("Бывшие люди").


Também as vítimas do aborto sofrem um processo prévio de despersonalização: antes de uma sociedade inteira ficar confortável com a aniquilação destas crianças foi primeiro preciso despersonalizá-las. Se estão nas primeira fases de gestação então não são pessoas, são “amontoados de células”. Dizem-nos que se trata de um facto científico. Se as crianças já estão formadas no ventre de suas mães e levam já vários meses de gestação então fica mais difícil usar pseudo-ciência para as retratar como "amontoados de células". Então diz-se que não são pessoas, não têm estatuto ético nem direito à vida, porque não são desejadas pelos progenitores.


Quer os sofistas quer os idiotas úteis perguntam: “porquê deixar vir ao Mundo uma criança indesejada?”, mas esquecem-se de que a criança já veio ao Mundo: aquele já é um ser humano, um ser vivo da nossa espécie. A diferença científica (e portanto ética) entre estar dentro ou fora do útero é nula. E esquecem-se de que, desejada ou não, tal criança é um espécime Homo Sapiens de pleno direito legal e ético, independentemente do que dizem as novas leis adulteradas.


Outra analogia surge das razões individuais invocadas pelas pessoas comuns que cometem crimes hediondos:

  • As convicções individuais que surgem em cada uma das pessoas através da propaganda ideológica; esta propaganda está presente quer no Terceiro Reich quer nas nossas sociedades abortivas e eutanásicas; a máquina de propaganda é essencial em ambos os casos para erradicar convicções tradicionais e instalar as novas convicções;
  • O carreirismo, ou seja, colocar a progressão na carreira e o estatuto social acima de preocupações éticas ou morais;
  • A motivação financeira: alguns dos homens do Batalhão 101 cobiçavam os bens materiais dos Judeus capturados; no caso da nossa sociedade, esta motivação gananciosa passa por se estar disponível para abortar ou eutanasiar num mercado de médicos objectores, o que traz óbvias vantagens financeiras.

Browning encontra estas razões individuais nos homens do Batalhão 101, mas encontramo-las também na nossa sociedade, naqueles poucos médicos e enfermeiros dispostos a abortar e a eutanasiar.


Depois há as razões de grupo: receio de serem conotados com extremistas religiosos, a lógica do “há outros a fazer o mesmo”. A análise do caso do Batalhão 101 permite identificar mais uma razão de grupo que é comum aos homicidas do Terceiro Reich e aos contemporâneos: tal como os soldados não querem deixar o trabalho sujo para os colegas, o mesmo se passa numa classe médica refém da ideologia abortista e eutanásica: o aborto até pode ser trabalho sujo, mas por causa do presumido direito da mãe a abortar alguém tem que o fazer. A eutanásia até pode ser trabalho sujo, mas por causa do presumido direito libertário ao suicídio assistido, alguém tem que o fazer. É uma concepção do dever realmente perversa e satânica. 


Tudo isto leva ao adormecimento moral do médico abortista, do pessoal de enfermagem, e da sociedade em geral: matar torna-se rotina. Surge também uma nova escala hierárquica entre diversos actos todos eles perversos, mas em maior ou menor grau. No caso dos homens do Batalhão 101, havia soldados que, junto à cova com pais e crianças para matar, matavam primeiro o pai ou mãe e só depois a criança. Um dos soldados explicou que o fazia por essa ordem para o pai ou a mãe não sofrerem tanto com a morte do filho, enquanto que a criança pequena não tinha idade para compreender. Havia soldados que tinham a delicadeza ética de matar com um tiro na nuca em vez de usar a metralhadora. Não eram só razões económicas, ou seja, economizar balas, era também para ser uma morte digna, civilizada. Afinal, eles não eram animais, tinham sentimentos humanistas. Os Nazis criavam umas "mises en scène" tranquilizadoras: nas marchas para a morte, muitas vezes punham música a tocar para tranquilizar as vítimas ignorantes do que as esperava. Ao chegarem aos campos de concentração, diziam-lhes que iam tomar um banho. Não só era algo caridoso como evitava perturbações ao processo. Era mais eficiente, mais limpo. Em analogia, também hoje temos aqueles que são caridosos, os que abortam depressa e cirurgicamente, que "interrompem" o feto sem provocar dor, que dão apoio psicológico à mãe que abortou. Pelo menos não abortam num vão de escada! São humanistas! Afinal estamos no século XXI!


Outra analogia interessante encontra-se na dinâmica entre os homens e as mulheres que cometem os crimes. Wendy Lower escreveu sobre as mulheres do Reich: "Hitler's Furies: German Women in the Nazi Killing Fields" (6). A historiadora pinta um retrato gélido de mulheres de várias origens sociais e profissões, como enfermeiras, funcionárias dos campos e mulheres de soldados e oficiais de polícia ou das SS. Vê-se como um certo espírito feminista foi usado por estas mulheres como móbil para a crueldade: muitas não queriam ficar atrás dos maridos ou dos colegas de trabalho. Recordo-me daquela mulher nazi que encontrou várias crianças judias a vaguear esfomeadas na floresta perto da sua quinta. Acolheu-as, deu-lhes de comer, e depois com espírito caridoso levou-as a passear à floresta para as matar a sangue frio com a sua pistola. Terão morrido felizes, sem suspeitar de nada. Imaginamos como terá sido a conversa de casal ao jantar nesse dia. Afinal, uma mulher forte consegue fazer o que um homem consegue! Encontramos algo parecido, quando o feminismo vem em socorro da mentalidade abortista: os médicos homens que até discordam do aborto, mas que o praticam porque não querem ser chamados de machistas, não querem ser mal-vistos por negarem um "direito da mulher"...


Daqui a algumas décadas os historiadores irão analisar as causas que levaram um país de tradição católica como Portugal a ser um “case study” de aceitação pacífica da mentalidade abortista e eutanásica.


Estou convencido de que os historiadores do futuro não irão concluir que o Portugal do nosso tempo se tinha tornado num covil de psicopatas cruéis e indiferentes, mas irão, sim, concluir que o mal se tinha banalizado entre cidadãos comuns. Irão aplicar a Portugal a tese de Arendt: o mal é frequentemente banal. A sociedade estava, dirão eles, desprovida de psicopatas poderosos, mas recheada de figuras banais e medíocres:

  • Os políticos pró-abortistas e pró-eutanásia não eram monstros, mas na sua maioria oportunistas a fazer carreira à custa das ideias da moda, e que raros eram os que o faziam a partir de uma coerência doutrinal ou ideológica
  • Os eleitores que votaram nesses políticos não eram monstros nem gente fria e indiferente; tal como os eleitores de Hitler, seguiram os flautistas de Hamelin do seu tempo, encantados pelas lindas histórias dos jornalistas e cegos pela propaganda dos “media”, e sobretudo suavizados pelo sono das suas consciências secularizadas; se Deus não existe, tudo é permitido;
  • Os juristas e constitucionalistas que aceitaram os “novos direitos” não eram monstros; mas muitos procuravam apenas a vida pacata do profissional e do académico, que só querem que a vida lhes corra de feição e que pensem bem deles;
  • Médicos e pessoal de enfermagem que cometeram abortos e eutanásias não eram monstros; tal como os homens do Batalhão 101, alguns até não gostavam de fazer abortos ou de dar a injecção letal ao senhor Joaquim ou à senhora dona Lurdes, mas não podiam deixar o “trabalho sujo” para os seus colegas não objectores; também não podiam ser vistos como maus profissionais indiferentes ao pedido de uma mulher grávida, de um doente ou de um idoso em sofrimento: o que pensariam deles se nessas alturas decisivas optassem por colocar certos princípios à frente do juízo da opinião alheia? Com o passar do tempo, por volta do aborto n.º 276 ou da eutanásia n.º 78, a coisa já fica mais fácil e rotinada: tal como o homicida profissional do Batalhão 101, que apontava à nuca com precisão para minorar o sofrimento da vítima, ou que fazia conversa simpática com a vítima a caminho da vala comum, os profissionais de saúde que amadurecerem a técnica da eutanásia aprenderão a colocar uma musiquinha “zen" no seu gabinete, um pouco de incenso para relaxar, um Buda na prateleira, um pouco de conversa amiga com a senhora dona Lurdes e uma foto dos netos ao senhor Joaquim antes de dar a injecçãozinha; assim irão racionalizar os seus crimes;
  • Os académicos que defenderam o aborto e a eutanásia também não eram monstros: tinham que conseguir publicar em jornais “peer reviewed”, e não era nada fácil publicar se não defendessem as ideias da moda, se não seguissem os pensadores “obrigatórios”; afinal, se o famoso e incontestável Peter Singer defendia o aborto e a eutanásia, quem seria eu, um pequeno académico Português, para discordar? Algo semelhante se passou com os académicos do Terceiro Reich e com os seus artigos “científicos” acerca do aperfeiçoamento racial: também não eram monstros, apenas académicos tentando fazer pela vida num novo contexto social;
  • O Padre e o Bispo que não fizeram grandes ondas acerca do aborto e da eutanásia, preferindo falar sobre os emigrantes e sobre o aquecimento global, também não eram monstros; imbuídos do melhor instinto de sobrevivência, em tempos nos quais o peditório rendia pouco, as ajudas do Estado faziam falta e a imprensa não era amiga, era mais cómodo defender as causas do “zeitgeist” do que combater por causas que julgavam perdidas; mas o juízo que a História fez aos prelados que apoiaram o nazismo será sempre menos severo do que o Juízo que o próprio Deus fará aos trabalhadores da Sua seara, aos pastores do Seu rebanho que foram mornos: Deus tenha misericórdia deles...
  • O cidadão comum que apoiou o aborto e a eutanásia no café com os colegas de trabalho, no jantar de família ou nas redes sociais não era um monstro; tal como o cidadão alemão durante a Segunda Guerra, também eles não queriam sair do pensamento normativo da maioria, não queriam ficar mal-vistos nem ser chamados de fundamentalistas medievais; porque não haveriam eles de apoiar o aborto e a eutanásia se toda a gente apoiava? Não lhes aquecia nem arrefecia... também aos alemães não era assim muito relevante saber o que tinha acontecido à família judia do 3° Esquerdo... e um Alemão de boas famílias por volta de 1935 a fazer algo em defesa dos Judeus incorria em provável morte social e perda de boas amizades - uns anos mais tarde, tal acto acarretaria mesmo penas pesadas; nos nossos dias, o aborto e a eutanásia permitem ao cidadão comum oficializar a sua indiferença: mais vale abortar a filha da menina Joana, que ficou grávida enquanto estudava, pois se nem ela, nem o namorado, nem os avós querem o bebé, porque há-de tal criança ser um peso no Estado Social ou um peso na consciência do cidadão comum? Por seu lado, a senhora dona Lurdes, cansada de esperar anos pela prótese prometida pelo Serviço Nacional de Saúde, paralisada em casa e sem filhos que se interessem por ela, não quer ser um fardo, nem para ela, nem para o Estado Social, nem para a consciência do cidadão comum: o cidadão comum agradece então à senhora dona Lurdes e elogia-a pelo seu exemplo de cidadania livre, ou de liberdade cidadã, pois a morte da senhora dona Lurdes é o melhor desfecho para todos, bem se vê, e tudo em nome da liberdade!

Este texto já vai longo, mas poderia ser muito maior, dada a riqueza infindável destes exercícios de analogia.


Os historiadores de amanhã irão concluir que várias causas, e complexas, levaram a que uma imensidão de pessoas comuns viessem a cometer, aplaudir e tolerar crimes hediondos como o aborto e a eutanásia com a maior das banalidades.


O Mal é banal e está acessível a todos.

O Bem, pelo contrário, é escasso, árduo, e nem todos estão dispostos a aceitar os sacrifícios que o Bem sempre exige. Mas todos seremos um dia julgados pelo Tribunal que não falha nem erra. 

Quantus tremor est futurus,

Quando Iudex est venturus,

Cuncta stricte discussurus!

(1) Deve-se procurar a edição mais recente, de 2017, pois foi ampliada com comentários do autor às críticas de Goldhagen (ver nota 3 abaixo): https://www.amazon.com/gp/product/0062303023/ref=dbs_a_def_rwt_hsch_vapi_tpbk_p1_i0


(2) https://www.amazon.com/Eichmann-Jerusalem-Banality-Penguin-Classics/dp/0143039881


(3) É a tese de Daniel Jonah Goldhagen, agressivo crítico de Browning, na sua obra de 1997 "Hitler's Willing Executioners: Ordinary Germans and the Holocaust", https://www.amazon.com/Hitlers-Willing-Executioners-Ordinary-Holocaust/dp/0679772685; Goldhagen defende uma tese monocausal para o Holocausto ancorada no anti-semitismo, aproveitando o seu preconceito anticristão para culpar católicos e protestantes na Alemanha pré-Nazi de terem preparado o terreno para Hitler, como se o século XX não tivesse disponibilizado inúmeras outras ocorrências de genocídio noutros locais e contextos.


(4) Veja-se a obra de Harold Deutsch, "Hitler and His Generals: The Hidden Crisis, Jan.-June, 1938", que retrata como Hitler e os seus sequazes conseguiram derrubar e silenciar a oposição por parte da elite prussiana das Forças Armadas alemãs, como ele incriminou militares "da velha guarda" como Blomberg e Fritsch, homens ainda imbuídos dos valores cristãos e da velha honra militar, e os arredou para abrir caminho para uma nova geração de militares formados no Nazismo: https://www.amazon.com/Hitler-His-Generals-Hidden-Jan-June/dp/0816606498/


(5) Página 13, https://www.amazon.com/Righteous-Unsung-Heroes-Holocaust/dp/0805062610


(6) https://www.amazon.com/Hitlers-Furies-German-Killing-Fields/dp/0544334493/


Bernardo Motta

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