sexta-feira, 18 de junho de 2004

Karl Popper e a problemática da irrefutabilidade

Antes de mais, as minhas desculpas por tão longo silêncio, mas não tem sido fácil arranjar algum tempo para escrever, o que me faz pena, porque vejo que muitos visitantes passam por cá, para sairem logo imediatamente ao verificarem que o artigo é o mesmo das últimas duas semanas.

Prometo fazer um esforço para não abandonar o posto!

Em virtude de uma polémica cativante em torno de S. Tomás de Aquino e Aristóteles, que tem tomado forma no site "Diário de uns Ateus", trago hoje de novo um tema filosófico. É de grande importância e utilidade este tema, porque contém conceitos-chave essenciais para que o diálogo entre crentes e não crentes não seja um diálogo de surdos.

O Ricardo Pinho e o João Vasco têm frequentemente insistido no facto de que S. Tomás, com a sua Summa Theologica, não conseguiu provar a existência de Deus. A questão é, a meu ver, demasiado complexa para que se salte para conclusões tão precipitadas antes de uma correcta análise do problema. Para mais, temo que seja um problema de uma complexidade teórica bem para lá das nossas (minhas, do Ricardo e do João Vasco) capacidades intelectuais. Mas vamos tentar...

Antes de mergulhar no texto da Summa para melhor entendermos os argumentos de S. Tomás e a essência dos mesmos, o que terá que suceder noutro artigo, vamos fazer uma breve mas fundamental passagem por Karl Raimund Popper (1902-1994), e pela sua obra-prima "Conjecturas e Refutações", que teve recentemente honras de nova e cuidada edição por parte da Almedina.

A dada altura, no capítulo "Acerca do Estatuto da Ciência e da Metafísica", diz Popper:

"Para evitar, desde o início, o perigo de nos perdernmos em generalidades, talvez seja bom explicar desde já, com o auxílio de cinco exemplos, o que significa para mim teoria filosófica."

Interrompo um pouco para sintetizar, dizendo que Popper refere estes cinco exemplos:

1. O determinismo de Kant: "O futuro do mundo empírico (ou do mundo fenoménico) é inteiramente pré-determinado pelo seu estado actual, até ao mais ínfimo detalhe";

2. O idealismo de Berkeley ou Schopenhauer: "O mundo empírico é a minha ideia";

3. O irracionalismo: "nós temos experiências irracionais ou supra-racionais em que nos experienciamos a nós mesmos como coisas-em-si; e obtemos, dessa forma, algum tipo de conhecimento das coisas-em-si";

4. O voluntarismo: "nas nossas próprias volições, conhecemo-nos a nós mesmos como vontades. A coisa-em-si é a vontade";

5. O niilismo: "no nosso tédio, conhecemo-nos a nós mesmos como nadas. A coisa-em-si é Não-Ser".

Regressemos então ao texto de Popper:

"Escolhi os meus exemplos de um modo que me permite dizer relativamente a cada uma destas cinco teorias, e após cuidadosa ponderação, que estou convencido da sua falsidade. Ou, para pôr a questão em termos mais precisos: eu sou, primeiro que tudo, um indeterminista, em segundo lugar um realista, em terceiro um racionalista. No que toca aos meus quarto e quinto exemplos, admito de bom grado - tal como Kant e outros críticos racionalistas - que nós não podemos possuir nada que se pareça com um conhecimento pleno do mundo real, na sua infinita diversidade e beleza. Nem a Física nem nenhuma outra ciência nos pode auxiliar nesse objectivo. Estou, contudo, seguro de que a fórmula voluntarista "O mundo é vontade" tão-pouco nos pode ajudar. E quando aos nossos niilistas e existencialistas que se entediam (e entediam talvez os outros), só posso ter pena deles. (...)

Ainda que eu considere que cada uma destas cinco teorias é falsa, estou, não obstante, convencido de que são, todas elas, irrefutáveis.
Escutando esta afirmação, podeis bem interrogar-vos como é que é possível que eu considere uma teoria simultaneamente falsa e irrefutável - eu, que afirmo ser um racionalista. Pois, como pode um racionalista dizer que uma teoria é falsa e irrefutável? Não é ele obrigado, como racionalista, a refutar uma teoria antes de a classificar como falsa? E inversamente, não é ele obrigado a admitir que, se uma teoria é irrefutável, é porque é verdadeira? Com estas perguntas, cheguei finalmente ao nosso problema.
A última pergunta pode ser respondida de uma forma bastante simples. Houve pensadores que acreditaram que a verdade de uma teoria podia ser inferida da sua irrefutabilidade. Este é, no entanto, um erro óbvio, atendendo a que pode haver duas teorias incompatíveis igualmente irrefutáveis - por exemplo, o determinismo e o seu oposto, o indeterminismo. (...)
Inferir a verdade de uma teoria da sua irrefutabilidade será, por conseguinte, inadmissível."


Interrompamos um pouco... Depreendemos, e concordo plenamente com Popper, que S. Tomás de Aquino, trabalhando no domínio da teologia e da metafísica (esta última ao estilo de Aristóteles, bem entendido), trabalha sobre teorias que, aos olhos da ciência moderna, são irrefutáveis. Por isso, falando de um modo estritamente científico, não podemos, e Popper está correctíssimo, inferir a veracidade científica das teses do Aquinate do carácter irrefutável das mesmas.

Mas em que sentido, ou sentidos, entende Popper que uma teoria seja irrefutável? Em dois:

1. Irrefutável em sentido lógico: ou seja, "irrefutável por meios puramente lógicos", que no fundo é o mesmo que dizer que a teoria é coerente e que sobrevive ao teste da integridade lógica. Mas como diz Popper, "é bastante óbvio que a verdade de uma teoria não pode ser, de modo algum, inferida da sua coerência".

2. Irrefutável em sentido empírico: ou seja, "não refutável empiricamente" ou "compatível com qualquer possível enunciado empírico" ou "compatível com toda a experiência possível".

A Summa Theologica é irrefutável em sentido lógico, a meu ver. Se os meus amigos ateus não concordarem, poderemos ir por esse caminho. Mas, considerando eu a Summa irrefutável em sentido lógico, continuo com pouca coisa, uma vez que a coerência das teses do Aquinate não permite concluir que estas são verdadeiras.

E em relação à irrefutabilidade empírica? Aqui o caso muda de figura. Popper diz que a grande dificuldade com a irrefutabilidade empírica é que não é humanamente possível proceder à refutação, em virtude da vastidão do Espaço e do Tempo. Na óptica de Popper, refutar empirica e científicamente a existência de Deus implicaria esquadrinhar todos os pontos do espaço e do tempo e, não O encontrando, inferir a Sua inexistência.

Por isso, as conclusões teológicas e metafísicas do Aquinate, expostas na Summa, são empiricamente irrefutáveis. Para mim, esta era a mais óbvia de todas, porque Deus não é um ente empírico, e como tal, não vale a pena procurar por Ele no tempo e no espaço, porque não há tempo nem espaço que O pudessem conter.

Continuamos num impasse! As doutrinas ensinadas por S. Tomás, a par com todas as restantes doutrinas filosóficas e metafísicas, permanecem cientificamente irrefutáveis, sem forma de as podermos testar para ajuizarmos se são falsas ou verdadeiras!
Que fazer então com elas?
Popper dá uma pista valiosa:

"Há cerca de vinte e cinco anos, propus-me distinguir teorias empíricas ou científicas de teorias não-empíricas ou não-científicas, definindo precisamente as empíricas como refutáveis e as não-empíricas como irrefutáveis. (...) Se aceitarmos este «critério de refutabilidade», veremos de imediato que as teorias filosóficas, ou as teorias metafísicas, serão irrefutáveis por definição. (...)

Se as teorias filosóficas são todas irrefutáveis, como poderemos nós distinguir entre as verdadeiras e as falsas? (...)

Ora, se nós encararmos uma teoria como uma proposta de solução para um conjunto de problemas, ela prestar-se-á de imediato a uma discussão crítica - mesmo que seja não-empírica e irrefutável. E isso na medida em que podemos fazer perguntas como «Será que resolve o problema? Resolve-o melhor do que outras teorias? Não se limitará, talvez, a alterar o problema? A solução é simples? É fecunda? Será que contradiz outras teorias filosóficas, necessárias para resolver outros problemas?

Questões deste género demonstram que é bem possível discutir criticamente até mesmo teorias irrefutáveis."
- Karl Popper, "Conjecturas e Refutações", Livraria Almedina, Abril de 2003, pp. 264-274.

Como estou de acordo com Popper!
Este breve trecho da obra "Conjecturas e Refutações" é verdadeiramente surpreendente. Mostra-nos que, face à análise crítica de obras teológicas e metafísicas como a Summa Theologica, a abordagem correcta, mesmo do ponto de vista de um cientista que quer manter íntegras e coerentes as suas convicções como um todo, não é nunca a de inferir a falsidade da teoria metafísica, nem tão pouco a de se precipitar numa insensata inferência da veracidade científica da teoria metafísica. Popper demonstrou particularmente bem que tal é impossível.

Conclusão:
1. É impossível provar cientificamente que, por exemplo, Deus existe;
2. Correlativamente, é impossível provar cientificamente que Deus não existe.

Fica o caminho aberto para muito e profundo trabalho crítico. Como disse Popper, apenas porque uma teoria é irrefutável não quer dizer que se desista de a analisar, criticar, considerar, corrigir, e assim por diante. Este trabalho, contudo, terá que ser feito a um nível meta-científico, porque já não podemos dispor das ferramentas científicas de teste. Terá que ser feito recorrendo, por exemplo, às doutrinas tradicionais conforme expostas por René Guénon, que se regem por ferramentas totalmente diferentes como a que este designou por "intuição intelectual" (que opera a um nível supra-racional), e recorrendo aos abundantes exemplos e lições que se podem retirar do simbolismo tradicional.

Bernardo

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