segunda-feira, 3 de julho de 2006

Pio XII e o Nazismo - Parte I

Pio XII (Eugenio Pacelli)
Fonte: Wikipedia

As opiniões anti-clericais relativamente ao tema das relações entre a Santa Sé e o regime de Hitler têm andado agitadas nos últimos tempos. A eterna questão, que vigora desde os anos sessenta, voltou à ordem do dia. É a título puramente pessoal que escreverei o que vou escrever, enquanto indivíduo apaixonado pela História e católico apaixonado pelo Catolicismo. As minhas palavras não pertendem representar nenhuma posição oficial da Igreja Católica uma vez que eu não tenho qualquer legitimidade para tal.

Em tempos, mesmo tendo sido sempre católico, tive uma opinião muito negativa acerca deste Papa, motivada principalmente pelos "media" e pela leitura de um livro pouco sério, Hitler's Pope, de John Cornwell. Nesta obra, o “católico” Cornwell revela ao leitor que, tendo começado a investigar com o objectivo de limpar a memória de Pio XII, teria entrado num estado de “choque moral” (“moral shock”) com o que tinha descoberto durante a investigação. As conclusões de Cornwell eram afinal as de que Pio XII tinha uma boa parte da culpa pelo sucedido durante a Shoa, e que os seus gestos ou a falta deles deveriam ser interpretados como tendo origem no seu espírito anti-semita e na sua preferência pelo nazismo como força de combate ao comunismo.
Esta leitura de Cornwell é totalmente incompatível com a documentação histórica.

De certo modo, tento sempre considerar como uma possibilidade real a mudança radical da minha opinião acerca da figura de Pio XII e do seu papel durante a Segunda Guerra Mundial. Deveria também ficar claro que, conceptualmente, não tenho quaisquer dificuldades com a possibilidade de um Papa cometer crimes, não só morais mas também materiais. A opinião pública confunde muitas vezes o dogma da Infalibilidade Papal (que apenas está definido num contexto "ex cathedra", quando o Sumo Pontífice se pronuncia sobre questões de doutrina no seu papel de "alter Petrus") com a ideia de que os Papas seriam infalíveis enquanto pessoas, o que deveria ser visto como uma ideia absurda por todos. Usando um exemplo exagerado, um Papa poderia cometer homicídio (o que seria claramente um pecado pessoal de grande gravidade), que isso não beliscaria a validade do seu Papado enquanto protector do "Depósito de Pedro", ou seja, desde que esse Papa, com os seus actos, não destruísse nem adulterasse a doutrina, o seu cargo enquanto Papa manter-se-ia válido. Uma coisa é a imagem de bom ou mau cristão que um Papa transmite com a sua vida e obra (e aqui, existiram certamente melhores e piores Papas), outra coisa totalmente diferente é o correcto desempenhar de uma missão de protecção de uma doutrina com dois mil anos de antiguidade. Como se vê, é possível que um Papa desempenhe bem esta última missão (basta não alterar a doutrina!), mesmo tendo uma vida corrupta ou dissoluta. O que sucedeu no passado algumas vezes: basta citar o exemplo do bórgia Rodrigo, que ascendeu ao papado com o nome de Alexandre VI, sendo certo que existiram mais casos semelhantes. Mas não queria perder a oportunidade, ao falar de Alexandre VI, para apresentar como curiosidade o facto de este Papa, cuja carreira será censurável em tantos aspectos, ter sido um grande protector dos Judeus! Alexandre VI instituiu a cátedra de Hebraico na Universidade de Roma. Durante o seu papado, o número de judeus acolhidos em Roma practicamente passou para o dobro porque Alexandre VI acolhia os judeus que haviam sido expulsos de Espanha e de Portugal. Na continuidade de uma tradição pontifícia secular, o médico pessoal de Alexandre VI era um judeu de seu nome Bonet de Lattes (natural da Provença). Este criou um artefacto astronómico e escreveu uma obra sobre a sua invenção, que dedicou «ao seu amigo e patrono Papa Alexandre VI» (1). A História mostra, como ficará evidente nos artigos seguintes que tenciono escrever, que a tendência pró-semita dos pontífices romanos, desde os últimos séculos tem-se mantido constante e firme.

Mas regressemos a Pio XII...
Pela força dos factos de que comecei a ter conhecimento, mudei totalmente a minha ideia acerca deste Papa, assim que me dei conta de que o material que tinha lido sobre ele estava totalmente viciado, e mais do que tudo, esse material tinha sido preparado minuciosamente para causar um forte efeito de repulsa por Pio XII.

Mas tenho a perfeita noção de que, sem o meu condicionalismo católico, se calhar eu não teria tido a vontade de pesquisar, e talvez não tivesse consequentemente mudado de opinião. Não nego que, sendo eu católico, exista em mim um desejo profundo e emocional de que Pio XII tenha sido uma boa pessoa. Do mesmo modo que, sendo os meus adversários ideológicos ateus e anti-clericais por convicção, exista neles um desejo profundo e emocional de que Pio XII tenha colaborado com o Nazismo. Somos falíveis, porque humanos. E separar a emoção da razão é tarefa desejável, mas quase impossível. De parte a parte. O que interessa, sendo-se crente ou ateu, é saber avaliar da forma mais neutra possível o que de facto se passou com base em documentação histórica que ninguém conteste.

Todos nós estamos, de certo modo, condicionados pelas nossas idiossincrasias. Mas, tendo isto bem presente, e se formos honestos, também sabemos encontrar formas de não estarmos tão presos a estas condicionantes, sem no entanto nunca nos libertarmos totalmente delas, porque fazem parte do nosso ser. É assim que tentam trabalhar os historiadores sérios, sejam eles ateus ou crentes. Como recorda Bruno Cardoso Reis, citando o exemplo da colectânea preparada por historiadores crentes e ateus coordenada por Jean Delumeau, L'Historien et la foi, o essencial relativamente à qualidade do trabalho historiográfico está no modo de trabalhar as fontes históricas e não nas convicções pessoais do historiador. Ao invés do que sugeria a editora do Hitler's Pope de John Cornwell, e do que disseram elogiosamente certos comentadores estrangeiros e portugueses, e que tentaram promover a isenção e a validade desta obra pelo facto de esta ter sido escrita por um católico, não interessa nada para a validade científica da sua obra que Cornwell seja católico! A fé pessoal, ou a ausência dela, de qualquer investigador ou historiador nada diz sobre a validade ou invalidade do seu trabalho, sobre a forma como esse trabalho foi conduzido.

Assim, supondo eu que a maioria dos ateus anti-clericais, com grande probabilidade, nunca irá defender a vida e a obra do Papa Pio XII, eu já ficaria satisfeito, e muito, se tivesse conseguido fazê-los ver que certas ideias concretas que possuem acerca deste papado estão condicionadas erroneamente por uma campanha difamatória que nasce na Alemanha com o surgimento da peça teatral de Rolf Hochhuth, O Vigário (1963). Desde então, uma bem montada campanha de difamação tem vindo a crescer, envolvendo os media em largo espectro, mas atingindo também, infelizmente, figuras do meio universitário que colocam objectivos ideológicos à frente dos científicos.

Tenciono, por isto tudo, trazer a pouco e pouco para a blogosfera algum material por mim recolhido de fontes diversas, tendo eu evitado, sempre que possível, basear-me demasiado na Internet. Trata-se de um problema demasiado delicado para ser estudado pela Internet: há riscos no uso excessivo, para argumentação, de ligações para sites na Internet cuja credibilidade não é facilmente atestada. Nestes textos que irei publicar acerca deste tema irei dar, quase sempre, referências bibliográficas. As obras de que falarei estão acessíveis em bibliotecas públicas e poderão também ser adquiridas "on-line" nos grandes sites de vendas de livros na Internet.
É também evidente que a isenção e a qualidade de uma obra não ficam garantidas, à partida, por esta estar editada em papel em vez de estar na Internet! Há, certamente, excelentes sites bem melhores do que muitas obras desonestas editadas em papel. Mas dado o maior âmbito temporal de uma obra editada em papel, existe uma maior dose de compromisso e de responsabilidade por parte de um autor com uma obra editada neste suporte tradicional do que com um site, que a qualquer altura, se não estiver apoiada numa instituição duradoura, poderá desaparecer ou ver o seu conteúdo alterado radicalmente.

As minhas referências principais são muito modestas, e puramente introdutórias. Tenho, por isso, a perfeita noção de que apenas aflorei a ponta do icebergue e de que tenho pela frente anos de trabalho árduo para me inteirar dos detalhes da questão. Mas, na minha opinião, o que pude ler é mais do que suficiente para colocarmos de lado os preconceitos de um Pio XII filo-nazi ou anti-semita. E também para colocarmos de lado o juízo injusto de que este Papa teria preferido o silêncio acerca da morte dos judeus só para aproveitar uma suposta proximidade com os nazis para beneficiar desse efeito no combate ao comunismo.
Baseei-me fundamentalmente na obra recente de Andrea Tornielli e de Matteo Napolitano, "Il Papa che salvò gli ebrei", Piemme, 2004. Trata-se, evidentemente, de uma obra apologética, mas baseada num manancial documental de valor e numa bibliografia com credibilidade, visto que os autores se socorrem dos grandes especialistas nesta temática, mesmo daqueles que são mais críticos das opções tomadas pela Santa Sé. Estes dois autores italianos puderam também beneficiar da abertura aos investigadores em 2003, por ordem de João Paulo II, do imenso dossiê "Germania", contendo, entre outras coisas, a fundamental correspondência diplomática entre a Santa Sé e Berlim durante aqueles anos quentes da ascensão e queda do nazismo na Alemanha.
Matteo Napolitano é docente de História na Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Urbino e Andrea Tornielli é um conhecido jornalista e vaticanista italiano.
Baseei-me na obra recente do judeu e rabi David Dalin, professor de História e Ciência Política na Unversidade Ave Maria, na Florida, E.U.A., sendo que este autor serve de actual porta-voz ao que de melhor se tem escrito por académicos judeus em defesa de Pio XII, numa linha de continuidade que passa por grandes figuras como Pinchas Lapide, Joseph Lichten, Jeno Levai, Michelle Tagliacozzo (ele próprio sobrevivente das purgas nazis ao ghetto de Roma), entre muitos outros.
Também me baseei num breve, mas valioso, artigo da autoria de Bruno Cardoso Reis, contendo uma análise crítica da referida obra de John Cornwell, publicado na Análise Social, número 157, vol. XXXV, 2000.
Em todo o caso, considero estas referências como uma excelente introdução, visto que são fontes concisas, e que ambas apontam para um elenco considerável de obras a consultar posteriormente, destacando-se as obras dos especialistas Andrea Riccardi, Robert Graham, e Annie Lacroix-Riz. De notar que não se tratam apenas de autores que apoiem a tese que defendo, uma vez que a obra desta última, e só para citar um exemplo, segundo Bruno Cardoso Reis, "é a verdadeira referência para quem queira atacar a política externa da Santa Sé". Cá fica a dica acerca desta autora para benefício dos meus adversários ideológicos!
Por último, necessariamente, recorri ao site da Santa Sé, que contém inúmera documentação, incluindo as encíclicas papais importantes para esta questão.

Começo por alertar aqueles que criticam Pio XII de que não basta uma leitura destas encíclicas, mesmo que seja uma leitura atenta, para se poder emitir uma opinião. Contra mim mesmo falo, mas deveria ser evidente para os meus caros adversários ideológicos que há que fazer uma auto-avaliação para nos darmos conta de se já estamos ou não preparados para emitir uma opinião válida. Opiniões, todos as podem ter. Mas uma opinião válida deve estar bem fundamentada. É pura perda de tempo emitir uma opinião acerca da política de Pio XI e de Pio II face ao nazismo e mesmo face ao fascismo apenas pela leitura das respectivas encíclicas. Há todo um imenso acervo documental, composto principalmente por correspondência entre a Santa Sé e Berlim, que deve ser analisado com minúcia.

Para além de tudo isto, deveria ser evidente que o simples facto de ter sido assinada uma Concordata entre a Santa Sé e a Alemanha nazi a 20 de Julho de 1933 não chega para se poder deduzir qualquer tipo de apoio à política de Hitler. Com a confirmação final do poder de Hitler após a sua estrondosa vitória na consulta popular de 5 de Março de 1933, a Santa Sé tinha forçosamente que ratificar o documento concordatário com o novo governo recém-eleito. O documento em questão era a sequência natural das anteriores concordatas assinadas com a República de Weimar, e anteriormente, com a Baviera e o Baden-Baden.
Deduzir qualquer apoio da Santa Sé ao governo recém-eleito de Hitler não faz qualquer sentido, tendo em consideração que a Concordata era um dos últimos recursos diplomáticos de que a Santa Sé dispunha para conseguir que Hitler se comprometesse por escrito com a preservação de alguns direitos fundamentais para a sobrevivência do catolicismo na Alemanha, direitos esses que já vinham de trás, e que a Santa Sé queria, naquele conturbado ano de 1933, confirmar de novo por escrito com a Alemanha.

Não negando a vocação da Igreja para a protecção de todos os que sofrem, e seguramente que os judeus foram os que mais sofreram às mãos de Hitler, não podemos também tecer falsos moralismos, retirando à Santa Sé a legitimidade para proteger e defender o catolicismo e os católicos na Alemanha nazi. O nazismo hitleriano não tinha como alvo apenas a erradicação dos judeus, tinha também como outros objectivos a erradicação dos portadores de deficiências psíquicas ou físicas, a erradicação de outras etnias (por exemplo, os ciganos), e por último, a erradicação do cristianismo. A Santa Sé, e pretendo dar exemplos concretos nas partes que se seguirão a esta, muito fez em prol dos judeus (não falo apenas dos convertidos, ou seja, de judeus baptizados, falo também dos judeus que praticavam o judaísmo), mas não podemos retirar-lhe o legítimo direito de proteger o catolicismo e os católicos que sofriam as perseguições do nazismo nos países ocupados.

O texto já vai longo, mas desta vez vou ficar por aqui, visto que a necessária introdução já obrigou a um grande dispêndio de tempo e espaço!
Termino esta primeira parte explicando o que eu não tenciono fazer com estes textos, contrapondo ao que tenciono fazer.
Não tenciono, de forma alguma, gerar uma demonstração e uma argumentação de carácter científico da validade da tese que defendo, uma vez que não possuo os conhecimentos para tal. Estes meus textos devem ser lidos como um trabalho individual de pesquisa histórica de carácter amador.
O que eu tenciono, sobretudo, é trazer para a linha da frente documentação e testemunhos que costumam andar “perdidos” ou esquecidos. Tenho a plena convicção de que é bem mais difícil a uma mente honesta continuar defender certas ideias preconceituosas depois de se tomar contacto com a documentação que pretendo apresentar.
Este meu trabalho pode ser visto como um trabalho apologético de defesa do bom-nome e da imagem de Eugenio Pacelli, Papa Pio XII, que na minha modesta opinião não merece a difamação de que tem sido alvo. Não quero classificar todos os actos deste Papa como perfeitos, nem fazer o mesmo face à sua carreira anterior ao Papado, como Secretário de Estado da Santa Sé desde 1930 a 1939, e antes disso como núncio em Munique, na Baviera. Importa sublinhar a importância diplomática do cargo de Pacelli antes de ser nomeado Papa: estando a Alemanha, naquele tempo, dividida entre a Prússia e a Baviera, e sendo que na Prússia a Santa Sé não tinha nunciatura, na prática, Pacelli era mais do que apenas o núncio na Baviera porque a sua esfera de influência diplomática católica englobava também a Prússia.
Não me compete a mim julgar Pio XII, nem de modo negativo nem de modo positivo porque considero que não tenho legitimidade para tal. Obviamente que ninguém é perfeito, e seguramente o próprio Pacelli admitiria, como o fazem todas as pessoas honestas e cientes das suas limitações, que poderia ter melhorado vários aspectos da sua actuação.
Se muitos querem criticar Pacelli, a sua vida e a sua obra, os seus silêncios, pois que o façam livremente, mas à luz da documentação e respeitando as regras do trabalho historiográfico. Quando se lê um determinado texto, seja ele uma simples e modesta carta diplomática ou uma formal proclamação encíclica papal, não podemos interpretar o que lemos apenas à procura de argumentos para chegar a uma conclusão por nós estabelecida “a priori”. Temos a obrigação moral de entender as motivações daqueles que escreveram esses documentos, temos a obrigação moral de conhecer os eventos que geraram esses documentos. E depois, munidos do devido contexto histórico, pronunciarmo-nos sobre esses factos conforme nos ditar a nossa consciência de ateu, agnóstico ou crente.

Bernardo

(1) David Dalin, The Myth of Hitler's Pope, pp. 23-24.

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