quarta-feira, 25 de abril de 2007

Promulgação da lei do aborto - Parte II: o problema religioso

Assim, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor. Portanto, examine-se cada um a si próprio e só então coma deste pão e beba deste vinho; pois aquele que come e bebe, sem distinguir o corpo do Senhor, come e bebe a própria condenação.
- 1ª Carta de São Paulo aos Coríntios, 11, 27-29.

Quando encontramos um texto que consegue verter de forma clara e límpida as ideias que não conseguimos transmitir por palavras próprias sem ser de forma confusa, não vale a pena insistir. Citamos o texto na íntegra e passamos adiante!

Com um grande agradecimento aos autores, aqui citamos, na íntegra, o seu artigo:

Referendo do Aborto, Cânone 915 e Comunhão Eucarística

por Gonçalo Gomes Figueiredo e Nuno Serras Pereira
In Alameda Digital - Ano I - Nº 7, Março/Abril de 2007 -
http://www.alamedadigital.com.pt/n7/aborto_canone_915.php

Explicado magistralmente o valor e a origem do sacramento da Eucaristia como Dom de Deus celebrado na Nova Aliança do Sangue de Cristo Filho de Deus (I parte, números 6 a 15 da Exortação Apostólica, O Sacramento do Amor, do Papa Bento XVI), o Santo Padre reflecte nas consequências lógicas para a vida daqueles que celebram esse Mistério admirável da fé. Como Mistério de Comunhão, a Eucaristia diz respeito à comunhão intra-trinitária das Pessoas Divinas, à comunhão do crente com Cristo, de Cristo com a Igreja, e dos cristãos entre si. Donde introduzir qualquer divisão nestas relações é diminuir gravemente o valor da Eucaristia. Comungar as espécies eucarísticas é comungar com a Pessoa de Cristo e com a Igreja “Em comunhão com toda a Igreja” ou como afirma o Papa “um olhar contemplativo para «Aquele que trespassaram» (Jo. 19, 37) leva-nos a considerar a ligação causal entre o sacrifício de Cristo, a Eucaristia e a Igreja” (n.º 14), a sugestiva circularidade, entre a Eucaristia que edifica a Igreja e a própria Igreja que faz a Eucaristia, “um influxo causal da Eucaristia nas próprias origens da Igreja” (João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia, 1).

Este dado, confirmado pela Tradição, reforça a consciência da indissolubilidade entre Cristo e a Igreja. “A unicidade e indivisibilidade do Corpo Eucarístico do Senhor implicam a unicidade do seu corpo místico, que é a Igreja una e indivisível” (Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 11). Donde se conclui que a Eucaristia estabelece objectivamente um forte vinculo de unidade entre a Igreja Católica.

Os baptizados, configurados com Cristo, incorporados na Igreja e feitos filhos de Deus, só podem celebrar a Eucaristia em Comunhão com a Igreja, o que quer dizer “em comunhão com o vosso servo o Papa, o nosso Bispo, e todos os Bispos que são fiéis à verdade e professam a fé católica e apostólica” (Missal Romano, Oração Eucarística I). Esta comunhão não é meramente afectiva, mas reclama a adesão da inteligência da fé a toda a doutrina da Igreja, no assumir de todas as verdades da fé.

“O mistério «acreditado» e «celebrado» possui em si mesmo um tal dinamismo, que faz dele princípio de vida nova em nós e forma da existência cristã” (Bento XVI, Sacramentum Caritatis [O Sacramento do Amor], 70) ao ponto de não ser já “o alimento eucarístico que se transforma em nós, mas somos nós que acabamos misteriosamente mudados por ele”. A exigência da conversão face à Eucaristia é uma evidência: “o sacrifício — sacrum facere, «tornar sagrado» — exprime aqui toda a densidade existencial que está implicada na transformação da nossa realidade humana alcançada por Cristo (Fil 3, 12)” (Bento XVI, Sacramentum Caritatis, 70).

Em cada momento da sua vida o cristão é desafiado a manifestar a concretização do mistério Eucarístico, configurando as suas opções com o que celebra, oferecendo assim um culto agradável a Deus na encarnação do homem novo. Sublinha-se a evidência da ligação entre a realidade eucarística e a vida cristã no seu dia-a-dia, a devoção eucarística abraça a vida inteira. E a Eucaristia torna-se o critério de valorização de tudo o que o cristão encontra nas diversas expressões culturais.

“Descoberta a beleza da forma eucarística da existência cristã, somos levados a reflectir também sobre as energias morais que, por tal forma, se desencadeiam em apoio da liberdade autêntica e própria dos filhos de Deus... Este apelo ao valor moral do culto espiritual não deve ser interpretado em chave moralista; é, antes de mais, a descoberta feliz do dinamismo do amor no coração de quem acolhe o dom do Senhor, abandona-se a Ele e encontra a verdadeira liberdade. A transformação moral, que o novo culto instituído por Cristo implica, é uma tensão e um anseio profundo de querer corresponder ao amor do Senhor com todo o próprio ser, embora conscientes da própria fragilidade.” (Bento XVI, Sacramentum Caritatis, 82)

Os padres sinodais tinham-se dado conta da discrepância entre a vida sacramental e moral como grave dano para a santidade da Eucaristia e prejuízo para a unidade da Igreja e consequente afastamento da santidade dos fiéis: “Não poucas respostas aos Lineamenta insistem no sentido pessoal e eclesial da Eucaristia em relação à vida moral, à santidade e à missão no mundo. A presença e acção permanentes do Espírito Santo, dom do Senhor ressuscitado, recebido através da Comunhão, são fonte do dinamismo da vida espiritual, da santidade e do testemunho dos fiéis.

Portanto, a Eucaristia e a vida moral são inseparáveis, já porque, alimentando-se do santo Sacramento, se obtém a transformação interior, já porque a Eucaristia leva o homem renascido no Baptismo a uma vida segundo o Espírito, uma nova vida moral, que não é segundo a carne. A Eucaristia reforça verdadeiramente o sentido cristão da vida, enquanto a sua celebração é um serviço a Deus e aos irmãos e leva a um testemunho dos valores evangélicos no mundo. Assim, as três dimensões da vida cristã, liturgia - martyria - diakonia, exprimem a continuidade entre o Sacramento celebrado e adorado, o empenho de testemunhar Cristo no meio das realidades temporais e a comunhão construída através do serviço da caridade, sobretudo em favor dos pobres... Diversas respostas insistiram na relação entre Eucaristia e vida moral, evidenciando uma notável tomada de consciência da importância do empenho moral derivado da comunhão eucarística. Não faltam referências ao facto de demasiados fiéis se abeirarem do Sacramento sem reflectir suficientemente sobre a moralidade da sua vida.

Há quem receba a Comunhão mesmo negando a doutrina da Igreja ou dando público apoio a opções imorais, como o aborto, sem pensar que estão cometendo actos de grave desonestidade pessoal e dando escândalo. Existem, de facto, católicos que não compreendem porque seja pecado grave apoiar politicamente um candidato abertamente favorável ao aborto ou a outros actos graves contra a vida, a justiça e a paz. Desse comportamento deduz-se, entre o mais, que o sentido de pertença à Igreja está em crise e que não é clara a distinção entre pecado venial e pecado mortal... É frequente separar as exigências específicas da vida moral da função da Igreja como mestra de vida, pensando que os ensinamentos desta tenham de passar pelo filtro da consciência individual... Insiste-se no dever dos fiéis de procurar a verdade e de formar uma consciência recta...

As respostas aos Lineamenta dão sugestões para superar a dicotomia entre o ensinamento da Igreja e o comportamento moral dos fiéis. Assinala-se, antes de mais, a conveniência de dar mais ênfase à necessidade da santificação e conversão pessoais e de insistir ainda mais na unidade entre o ensinamento da Igreja e a vida moral. Além disso, os fiéis deverão ser constantemente encorajados a se capacitar de que a Eucaristia é a fonte da força moral, da santidade e de todo o progresso espiritual. Por fim, considera-se de importância fundamental sublinhar na catequese a ligação entre a Eucaristia e a construção de uma sociedade justa, através da responsabilidade pessoal de cada um de participar activamente na missão da Igreja no mundo. Nesse sentido, especial responsabilidade cabe aos católicos que ocupam lugares de destaque na política e nas várias actividades sociais.” (Sínodo das Bispos, Instrumentum laboris, 72-74).

Estas preocupações e constatações dos Padres Sinodais foram magistralmente resumidas e assumidas pelo Santo Padre quando afirma: “o culto agradável a Deus nunca é um acto meramente privado, sem consequências nas nossas relações sociais: requer o testemunho público da própria fé. Evidentemente isto vale para todos os baptizados, mas impõe-se com particular premência a quantos, pela posição social ou política que ocupam, devem tomar decisões sobre valores fundamentais como o respeito e defesa da vida humana desde a concepção até à morte natural, a família fundada sobre o matrimónio entre um homem e uma mulher, a liberdade de educação dos filhos e a promoção do bem comum em todas as suas formas. Estes são valores não negociáveis. Por isso, cientes da sua grave responsabilidade social, os políticos e os legisladores católicos devem sentir-se particularmente interpelados pela sua consciência rectamente formada a apresentar e apoiar leis inspiradas nos valores impressos na natureza humana. Tudo isto tem, aliás, uma ligação objectiva com a Eucaristia (1 Cor 11, 27-29: “E, assim, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se cada qual a si mesmo e, então, coma desse pão e beba desse cálice. Aquele que come e bebe, sem distinguir o corpo do Senhor, come e bebe a própria condenação.”)”. (BENTO XVI, Sacramentum Caritatis, 83).

Esta afirmação de Bento XVI encontra-se na mesma linha doutrinal do seu antecessor João Paulo II que na encíclica Evangelium Vitae afirmava: “O aborto e a eutanásia são … crimes que nenhuma lei humana pode pretender legitimar. Leis deste tipo não só não criam obrigação alguma para a consciência, como, ao contrário, geram uma grave e precisa obrigação de opor-se a elas... Desde os princípios da Igreja, a pregação apostólica inculcou nos cristãos o dever de obedecer às autoridades públicas legitimamente constituídas (cf. Rm 13, 1-7; 1 Ped 2, 13-14), mas, ao mesmo tempo, advertiu firmemente que «importa mais obedecer a Deus do que aos homens» (Act 5, 29)... Portanto, no caso de uma lei intrinsecamente injusta, como aquela que admite o aborto ou a eutanásia, nunca é lícito conformar-se com ela, «nem participar numa campanha de opinião a favor de uma lei de tal natureza, nem dar-lhe a aprovação com o próprio voto»” (JOÃO PAULO II, Evangelium Vitae, 73).

No entanto, se bem reparamos, enquanto o Papa João Paulo II fala principalmente do que nunca se pode fazer, sob pena de pecado mortal, o Papa Bento XVI, recorda a obrigação moral grave de agir pela positiva, isto é, não basta não apoiar leis injustas como é preciso “apresentar e apoiar leis inspiradas nos valores impressos na natureza humana” - como quem diz que o pecado mortal também pode ser de omissão. E mais adianta que: “Os bispos são obrigados a recordar sem cessar tais valores; faz parte da sua responsabilidade pelo rebanho que lhes foi confiado.” (BENTO XVI, Sacramentum Caritatis, 83).

Mas que fazer, se houver católicos, que de modo obstinado e público, não acolhem estas verdades sobre o amor, que o Magistério da Igreja ensina em nome de Jesus Cristo?

Este problema é esclarecido pela declaração que o Conselho Pontifício para os Textos Legislativos (ano 2000) - de acordo com a Congregação para a Doutrina da Fé e com a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos - , fez sobre a interpretação do cânon 915, do Código de Direito Canónico. Em síntese, diz o seguinte:

A proibição feita no cânon 915, por sua natureza, deriva da lei divina (1 Cor 11, 27-29) e transcende o âmbito das leis eclesiásticas positivas: estas não podem introduzir modificações legislativas que se oponham à doutrina da Igreja.

Este texto diz respeito primeiramente ao próprio fiel e à sua consciência como consta no cânon 916. Porém o ser-se indigno por se achar em estado de pecado põe também um grave problema jurídico na Igreja: precisamente ao termo «indigno» refere-se o cânon do Código dos Cânones das Igrejas Orientais que é paralelo ao cân. 915 latino: «Devem ser impedidos de receber a Divina Eucaristia aqueles que são publicamente indignos» (cân. 712). Com efeito, receber o Corpo de Cristo sendo publicamente indigno é um comportamento que atenta contra os direitos da Igreja e de todos os fiéis de viver em coerência com as exigências dessa comunhão. Deve-se evitar o escândalo, concebido como acção que move os outros ao mal. Tal escândalo subsiste mesmo se, lamentavelmente, um tal comportamento já não despertar admiração alguma: pelo contrário, é precisamente diante da deformação das consciências, que se torna mais necessária por parte dos Pastores, uma acção tão paciente quanto firme, que tutele a santidade dos sacramentos, em defesa da moralidade cristã e da recta formação dos fiéis.

2. Qualquer interpretação do cân. 915 que se oponha ao conteúdo substancial, declarado ininterruptamente pelo Magistério e pela disciplina da Igreja ao longo dos séculos, é claramente fonte de desvios. A fórmula: «e outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto» é clara e deve ser compreendida de modo a não deformar o seu sentido, tornando a norma inaplicável. As três condições requeridas são:

a) o pecado grave, entendido objectivamente, porque da imputabilidade subjectiva o ministro da Comunhão não poderia julgar;
b) a perseverança obstinada, que significa a existência de uma situação objectiva de pecado que perdura no tempo e à qual a vontade do fiel não põe termo, não sendo necessários outros requisitos (atitude de desacato, admonição prévia, etc.) para que se verifique a situação na sua fundamental gravidade eclesial;
c) o carácter manifesto da situação de pecado grave habitual.

3. A prudência pastoral aconselha vivamente a evitar que se chegue a casos de recusa pública da sagrada Comunhão. Os Pastores devem esforçar-se por explicar aos fiéis envolvidos o verdadeiro sentido eclesial da norma, de modo que a possam compreender ou ao menos respeitar. Quando, porém, se apresentarem situações em que tais precauções não tenham obtido efeito ou não tenham sido possíveis, o ministro da distribuição da Comunhão deve recusar-se a dá-la a quem seja publicamente indigno, com firmeza, consciente do valor que estes sinais de fortaleza têm para o bem da Igreja e das almas.

4. Nenhuma autoridade eclesiástica pode dispensar em caso algum desta obrigação do ministro da sagrada Comunhão, nem emanar directrizes que a contradigam.

5. O dever de reafirmar esta impossibilidade de admitir à Eucaristia é condição de verdadeira pastoral, de autêntica preocupação pelo bem dos fiéis e de toda a Igreja. (A síntese e os destaques são nossos. O texto completo encontra-se aqui)

O Papa Bento XVI ao remeter no número 83 da sua exortação apostólica para a primeira carta de S. Paulo aos Coríntios (1 Cor 11, 27-29) quer relembrar-nos este texto, acabado de resumir, que ele enquanto Perfeito para a Congregação para a Doutrina da Fé aprovou.

Mais do que uma desobediência grave seria uma manifesta falta de amor verdadeiro continuar a dar a Sagrada Comunhão aos que perseveram publicamente em pecado mortal.

A fé verdadeira, o culto devoto e a vida santa, são três vertentes que não se podem separar sob o risco de se perder a coerência do sacramento, fazer grave dano à Igreja e perder o horizonte último de cada cristão que é a santidade, urge por isso “traduzir na vida o que celebramos no dia do Senhor” (BENTO XVI, Sacramentum caritatis, 95).

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Promulgação da lei do aborto - Parte I: o problema ético

Houve tempos em que ética e moral eram sinónimos. Ambos os termos referiam-se à licitude da conduta humana. Uma determinada conduta humana pode ser:

a) eticamente lícita, ou moralmente lícita;
b) eticamente ilícita, ou moralmente ilícita;
c) eticamente neutra, ou moralmente neutra.

Obviamente, em cada uma destas categorias, há um gradiente contínuo de maior ou menor licitude ou neutralidade.
Contudo, hoje em dia, a interpretação corrente destes dois termos "ética" e "moral" já divergiu de tal modo que cada vez são interpretados de forma mais distante.
Durante o Iluminismo, uma mão cheia de "intelectuais" procurou separar a "ética" da "moral", sendo que a ética passaria a abarcar a justeza da conduta humana fora de um contexto religioso, ficando a moral limitada a esse contexto.

Hoje, a mera referência ao termo "moral" faz pensar que se está a falar de religião. Dado o carácter conservador da religião, com a erosão intelectual iluminista e pós-iluminista, a categoria filosófica da Ética foi sendo esvaziada, enquanto que a categoria religiosa da Moral se manteve practicamente inalterada, tendo ambas partido em pé de igualdade na alta Idade Média.

Tomemos como exemplo os sete pecados capitais católicos:
1. Soberba
2. Avareza
3. Luxúria
4. Ira
5. Gula
6. Inveja
7. Preguiça

Estas sete categorias determinam um universo de comportamentos morais incorrectos. Todo o comportamento humano incorrecto cai numa destas categorias ou numa mistura ponderada de várias delas. É certo que se poderia ter chegado a um leque maior ou menor destas categorias, que a universalidade dos comportamentos não deixava de ser a mesma.
Com a procura de uma ética independente da religião, gerou-se, não só a tal separação conceptual entre ética e moral (que nunca deveriam ter sido separadas, uma vez que representam a mesma realidade), mas também o gradual empobrecimento da Ética religiosamente neutra.

Este era o ponto de vista medieval, intelectualmente coerente:
- A Ética/Moral determina se um dado comportamento humano é correcto, incorrecto ou neutro

Este passou a ser o ponto de vista moderno, intelectualmente incoerente:
- A Ética determina a aceitabilidade ou tolerância social de um determinado comportamento

Estou a ser, certamente, injusto, porque haverá bom trabalho ético, independente de postulados religiosos, que não restringe a Ética à sua dimensão social. Mas não há como negar: a Ética moderna tornou-se convenção social, ou pelo menos, é determinada por esta.
O Iluminismo trouxe então consigo o relativismo ético. Neste aspecto, a Democracia fez graves estragos: do mesmo modo que se passaram a votar leis por sufrágio popular, achou-se que a Democracia também poderia ser útil em Ética, e que passaria a ser a maioria a ditar (por convenção) a justeza ou injusteza dos comportamentos humanos em sociedade.

Ora isto é profundamente errado: o voto popular, mesmo maioritário, não altera a licitude ou ilicitude ética de um comportamento. Foi o que procurei demonstrar com o meu artigo acerca da ilicitude ética universal do aborto provocado. Deste modo, nenhuma maioria de plebiscito altera o quadro ético: o aborto é um crime abominável e um erro ético gravíssimo porque atenta contra o primeiro direito de todos: o direito à vida.

Vejamos ainda outro aspecto interessante, que se prende com um dos fenómenos que ajudou ao actual quadro de relativismo ético: a questão do confronto de culturas. A colonização da América (apenas um exemplo de entre vários) trouxe enormes transformações sociais, que não deixaram de apresentar inúmeros excessos. O contacto da sociedade europeia com as civilizações da América gerou um turbilhão intelectual que não fez pouco para o actual estado da Ética. Por um lado, um excesso de puritanismo dos sectores religiosos ou conservadores da sociedade fez ver a nudez dos indígenas como o factor civilizacional mais chocante e grave no choque entre a moral europeia e os hábitos indígenas. Ora é certo que a nudez, ou quase nudez, praticada por essas culturas seria o menor dos problemas éticos de tais culturas. Como qualquer sociedade humana, também as várias sociedades indígenas padeceriam de inúmeros problemas éticos e morais.
Por outro lado, surgiu um outro excesso do lado dos pensadores iluministas, que passaram a ver os indígenas de uma forma idílica. Rousseau, com o seu "mito" do "bom selvagem" popularizou a ideia de que tais culturas não padeciam de maleitas sociais, morais ou éticas, porque seria a própria civilização europeia a responsável pelo surgimento de tais maleitas. Deste modo, muitos passaram a ver a própria civilização europeia, durante séculos o garante da moralidade e da ética humana, como a fonte da corrupção do "selvagem primordial", essa criatura imaginada que seria sempre boa, desde que deixada no seu estado selvagem.
Claramente, falamos de pseudo-antropologia, uma vez que qualquer sociedade humana, tanto de ontem como de hoje, viva ela no centro da Europa como na distante Polinésia, padece sempre, em maior ou menor grau, dos defeitos éticos do próprio ser humano.

Regressando ao confronto de culturas, dá-se neste fenómeno social à escala global uma situação que promove o relativismo ético. A sociedade europeia passa a colocar em questão a sua matriz moral, e a procurar um "máximo denominador comum" de comportamento humano correcto que possa acomodar outras culturas. Isto gera dois fenómenos distintos e coetâneos:

a) o empobrecimento da Ética e da Moral
b) o surgimento do relativismo

Deveria ser evidente, e como estamos longe disso, que qualquer comportamento humano pode ser classificado como lícito, ilícito ou indiferente do ponto de vista ético ou moral, e essa classificação deve ser universal. Por exemplo, matar um ser humano é sempre um mal, mesmo que existam tribos remotas que recorram ainda ao sacrifício de seres humanos. Só mesmo uma pseudo-antropologia eticamente mediocre poderia suster que tais culturas deveriam ser respeitadas cada vez que actuam de forma eticamente inaceitável.
É, então, bem difícil para a Ética e para a Moral o confronto de cuturas, uma vez que não se afigura imediato harmonizar comportamentos sociais distintos. Mas há, ao mesmo tempo, a ajuda surpreendente de comportamentos análogos. O monge budista advoga um decoro em matéria de moral sexual análogo ao da moral sexual católica, por exemplo. É evidente que é apenas por "moda" (uma "moda" intelectualmente pobre) que um ocidental dos nossos dias vive fascinado pelo budismo, decorando frases inteiras de mantras em páli, enquanto abomina a moral sexual da Santa Sé e proclama impropérios acerca do uso do Latim na liturgia romana.

Defendo então que os juízos acerca do comportamento humano sejam matéria de âmbito universal, devendo ser aplicadas do mesmo modo em qualquer lugar ou tempo. E isto serve ainda para os comportamentos humanos fora da sociedade. O estatuto de eremita coloca graves problemas à Ética iluminista e pós-iluminista. Como ajuizar, à luz da Ética oitocentista, o comportamento de um anacoreta, de um indivíduo que vive isolado de qualquer contacto social?

Deveria ser evidente que o comportamento de um homem isolado também é alvo de tratamento por parte da Ética e da Moral. Contudo, a Ética moderna é de tal forma pobre e deturpada que já não serve para tais comportamentos. E isto porque a Ética moderna não passa hoje de um modelo comportamental definido pelo "consenso da maioria".

Olhando para as categorias morais demarcadas pelos sete pecados capitais do catolicismo, encontramos uma série de comportamentos incorrectos que um anacoreta pode assumir. Já a Ética moderna, pelo seu formato bizarro, não imagina uma só forma de um eremita agir de modo não ético.

Corrijo-me: imagina uma única forma de não agir eticamente. Se o eremita atentar contra a Natureza, então comporta-se de forma não ética! O que não deixa de ser paradoxal: a sociedade moderna passou a dar ao comportamento humano em relação à Natureza uma preponderância inaudita em detrimento do comportamento dos seres humanos entre si. Em três tempos se gera uma enorme compaixão por uma baleia alvo de predadores humanos, enquanto um ávido defensor dos direitos dos animais se pode encaminhar, sem problemas éticos, para uma cabine de voto para votar pela legalização do aborto.

A moral católica recorda-nos ainda de que a eticidade se pode revestir de vários aspectos comportamentais:

a) pensamentos
b) palavras
c) actos
d) omissões

A ética moderna, no seu fanático pragmatismo, já abdicou de considerações éticas sobre pensamentos. Na ética dos nossos tempos, deixaram de existir pensamentos não éticos. Sobre as palavras, muito se perdeu, mas ainda restam alguns resquícios deste aspecto da classificação ética: é proibido, em muitos países dos nossos tempos, proferir palavras de cariz racista, bem como ainda é proibido mentir em muitas situações legais. A ética moderna centra-se quase exclusivamente nos actos (sobretudo contra outrém, porque a ética moderna dos actos de um indivíduo contra si mesmo desapareceu), se bem que nalguns aspectos também ainda considera algumas omissões como eticamente tratáveis (por exemplo, não pagar os impostos não é ético).

Mas deveria ser claro que todas estas quatro categorias, que a liturgia católica invoca do rito penitencial, são universais. É possível tratar de forma ética todas as quatro categorias, que envolvem as várias facetas do comportamento humano.

Deste modo, é fácil afirmar que, sendo errado cometer um determinado acto eticamente ilícito, também pode ser errado não cometer um acto lícito que impede um determinado mal. Por exemplo, se votar pela legalização do aborto é um mal ético, abdicar de votar contra a dita (com menor gravidade) também pode ser censurado em termos éticos. É certo que até o Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa afirmou que, em caso de grave dúvida do votante, o melhor seria a abstenção no referendo. Mas tal situação, a de enorme dúvida, é confrangedora intelectualmente. Sobretudo para o católico, que tem acesso directo à verdade moral. O católico consciente, nos nossos dias, e mais do que o ateu ou o agnóstico, não tem razões para ter dúvidas acerca de o aborto ser um mal ético, pelo que todo e qualquer católico capaz deveria ter votado contra a actual lei iníqua.

Chegamos agora ao juízo ético do comportamento do Presidente da República, Prof. Cavaco Silva. Sendo certo que, por voto popular, o Presidente representa os portugueses, legitimado pela democracia que o elegeu, também é certo que os seus comportamentos pessoais, públicos ou privados, não deixam por essa razão de estar fora do alcance da Ética.
No fundo, isto é o essencial: nenhum comportamento humano, seja ele público, privado, social ou não social, gregário ou não gregário, contra outrém ou contra si mesmo, sai do âmbito da Ética, evidentemente com a ressalva de que há comportamentos neutros nesta matéria.

No que toca aos comportamentos eticamente neutros, o Presidente da República deve, no seu papel de consenso e representatividade, atender às várias sensibilidades. Nesta matéria, o Presidente pode procurar servir a maioria dos interesses pessoais e nacionais deste colectivo a que chamamos Portugal. E isto porque tratando-se de comportamentos eticamente neutros, estão abrangidos e caem na lógica da democracia: a maioria dita, por voto, os comportamentos eticamente neutros de um representante eleito.

Já o caso muda radicalmente de figura quando um determinado comportamento de um representante eleito cai na categoria de acto eticamente ilícito. Como referi no início, a maioria democrática não muda uma vírgula à eticidade de um acto. Não é pelo voto que se torna correcto um comportamento que é intrinsecamente incorrecto. E por isto é que o Presidente não tem qualquer legitimidade para violar a Ética alegando razões de representatividade democrática. Ou pior ainda, alegando razões de estabilidade política ou económica do país.

A promulgação da actual lei do aborto não é apenas uma omissão. Há omissão (erro ético comportamental) pelo facto de o Presidente da República não ter vetado a lei nem tomado outras medidas necessárias que impedissem a legalização da iniquidade do aborto provocado. Mas, com a sua assinatura, o Presidente dá um passo em frente na direcção da sua catástrofe ética: passa da omissão à colaboração. Mesmo que, pessoalmente, o Presidente nunca executasse um aborto, ele tinha poder para impedir uma iniquidade e não o exerceu.

Não duvidamos (alguns duvidam, mas ainda são minoritários) de que não é ético abdicar de ajudar pessoas em perigo. Se podemos fazer algo para impedir uma catástrofe, ou para salvar alguém, e não o fazemos, temos um caso de acto eticamente ilícito na forma de omissão.

Perante a concretização da morte em massa de embriões e fetos humanos, nas mãos de clínicas abortistas facínoras, o Presidente, em vez de agir para impedir tal catástrofe, assina o papel. É mais grave este acto presidencial que o dos votantes que se abstiveram no referendo do aborto. Na verdade, o comportamento ético do Presidente é equivalente ao dos que votaram "sim", aprovando implicitamente tal proposta de lei.

Vemos então que o acto do Presidente, ao promulgar uma lei desumana, bárbara e eticamente errada, é mais do que uma omissão eticamente grave, é também um acto eticamente ilícito e censurável. E isto de um ponto de vista estritamente neutro em termos religiosos. Deixarei a questão religiosa para um texto que se seguirá a este muito em breve.

terça-feira, 10 de abril de 2007

Precisamos de sacerdotes com fé e coragem

Num gesto pouco surpreendente, tendo deixado passar o prazo para submeter a nova lei ao juízo do Tribunal Constitucional, o Presidente da República decidiu hoje promulgar a nova lei do aborto:

Presidente promulga nova lei da despenalização do aborto

Antes de mais, devo dizer que tenho o Presidente da República em grande consideração e estima, e não duvido por um instante das suas boas intenções e da tremenda dificuldade do problema que teve em mãos.

Por outro lado, sendo que o Prof. Cavaco Silva é católico, o que hoje sucedeu reveste-se de uma gravidade moral objectiva, uma vez que o Prof. Cavaco Silva não pode facilmente alegar o desconhecimento do erro moral do seu acto de promulgação de uma lei iníqua e assassina.

A lei que foi hoje promulgada legitima a morte de seres humanos com menos de dez semanas de idade. É uma lei injusta, criminosa, eticamente ilícita e inconstitucional.
O Presidente da República estava perante um grande dilema, e não há dúvidas de que a sua presidência ficaria gravemente em risco, caso decidisse vetar a lei.

As hipóteses alternativas à promulgação não eram muitas, mas eram as suficientes para que uma pessoa de bem tomasse uma decisão acertada. O Presidente da República poderia ter vetado a lei. Ela regressaria ao Parlamento, de onde poderia regressar ao Palácio de Belém (alterada ou não), desde que aprovada por maioria simples. Caso a redação final da lei persistisse no erro ético do aborto a pedido, então o Presidente tinha duas alternativas, qualquer uma delas muito difícil em termos políticos:

a) dissolver a Assembleia e convocar eleições antecipadas
b) demitir-se, por se recusar a pactuar com uma lei iníqua

É certo: ouviremos muitos católicos virem em socorro do Prof. Cavaco Silva, afirmando que estava em jogo a estabilidade do país. De novo, a confusão intelectual reinante impede que até os católicos mais atentos se dêem conta da trágica troca de prioridades. A estabilidade política ou económica do país não se deve apoiar na morte de seres humanos. É disso que estamos a falar, e de nada menor do que isso.

O acto do Presidente da República é grave para qualquer ser humano. É mais grave para um católico, que deveria estar ciente da gravidade moral intrínseca do seu acto. Sigamos as palavras do Padre Nuno Serras Pereira, que tem diligentemente trabalhado no sentido de que se compreenda melhor o catolicismo, e de que este seja praticado, vivido e defendido com mais coerência e maturidade:

«Esta “lei”, hoje promulgada, é gravemente injusta e o acto da sua promulgação consiste numa cooperação formal com o mal intrínseco do aborto provocado, tornando o Presidente Aníbal Cavaco Silva moralmente imputável por todos os homicídios/abortos, e demais consequências nefandas, praticados ao abrigo desta “lei”, isto é, desta violência crudelíssima.

No Juízo particular e no Juízo final, depois da morte, Aníbal Cavaco Silva terá de responder perante Deus, e não perante os votos e as maiorias, não se podendo escudar na obediência aos mecanismos formais da democracia, como se estes fossem substitutos da moralidade ou da consciência. Ser-lhe-ão pedidas contas de todos e cada um dos assassínios/abortos, e demais consequências negativas, cometidos ao abrigo da iniquidade promulgada.»
- boletim electrónico "Infovitae", 10 de Abril de 2007.

De nada vale invocar, como é hábito, o "mito Nuno Serras Pereira", essa distorção da realidade que consiste em retratá-lo como padre fanático que não é em vez de ser visto como padre católico que é. Até porque muitos mais sacerdotes, sem dúvida "alvos" não tão preferidos pela da Comunicação Social, pensam do mesmo modo, a começar, obviamente, pelo Papa.
Por outro lado, será sempre de censurar o sacerdote católico que, administrando a comunhão ao Prof. Cavaco Silva sem que ele se arrependa da promulgação desta lei, abdique deste modo da sua obrigação pastoral. Aceito de bom grado, dada a imagem que tenho do Prof. Cavaco Silva como uma pessoa de boas intenções, que é apenas por puro desconhecimento que ele arrisca incorrer, com este seu acto de hoje, em excomunhão latae sententiae (automática), o que o impediria de se aproximar da Eucaristia.

Portugal precisa de sacerdotes com fé e coragem.
De sacerdotes como o Padre Nuno Serras Pereira.

Tenho a firme convicção de que, vendo negado o seu acesso à eucaristia por um sacerdote corajoso, o Prof. Cavaco Silva, como homem inteligente que é, rapidamente se aperceberia da gravidade moral do seu acto, e certamente que se arrependeria dessa decisão, que coloca a imoralidade objectiva deste seu acto ao serviço da estabilidade política do país.

Seria insensato pensar que todos os católicos que comungam o fazem em pleno direito. Normalmente, o sacerdote não sabe se o comungante está ou não preparado. No caso de figuras públicas católicas, a coisa muda de figura: quando a tomada de posição pública, e os actos públicos, contradizem o Magistério, a perda de comunhão com a doutrina católica torna-se notória aos olhos do Mundo. Dar a comunhão, nestas situações, pode causar escândalo aos fiéis e, bem pior, constituir um uso abusivo da Eucaristia.

Ser católico coerente (aliás, ser coerente nesta vida) é tarefa dura e gera muita incompreensão.
Sei-o bem porque prevejo consequências, no meu círculo de amigos e conhecidos, desta minha tomada de posição em defesa da posição de católicos coerentes como o Padre Nuno Serras Pereira, em detrimento da posição de católicos incoerentes como o Prof. Cavaco Silva.
Mas o que sei é que a coerência é condição necessária para se estar certo.
Pode não ser suficiente, mas é necessária.

Não é possível manter-se uma verdade moral pessoal, enquanto se que tolera uma "verdade alternativa" votada por maioria democrática. O católico que acreditar que pode ter a sua moral pessoal, enquanto pactua (com o seu acordo, com a sua assinatura) com a antitética "moral" do Mundo (mesmo que democraticamente distorcida), incorre em heresia.

Levar as coisas às últimas consequências seria, para Cavaco Silva, abdicar do seu mandato. Uma decisão difícil e dura, como sucede a todos os católicos que combatem e que não se deixam vencer pelo Mal. Mas poderia tal decisão, mesmo que dura, comparar-se à dos santos mártires que deram a sua vida corpórea por Cristo?

Se o Prof. Cavaco Silva levasse a sua coerência católica às últimas consequências, então, como diz o Padre Nuno, «renunciava ao mandato, explicando, em qualquer dos casos, as razões porque o fazia, a saber, a impossibilidade moral de cooperar numa injustiça de tal gravidade, dando, deste modo, testemunho de uma consciência verdadeira e recta, e mostrando ser um homem de boa vontade. Posto o povo diante de tal verticalidade e desassombro, bem poderia despertar para a extrema gravidade do que estava em questão e haver um geral sobressalto mobilizador contra o aborto, a favor da vida.».

Ora nem mais!
Esta oportunidade está perdida.
Mas ficamos, pelo menos, com um perfeito exemplo desta grande verdade milenar da Igreja: quando o sacerdote vacila e perde coragem ou a fé (a perda de uma acarreta a da outra), fracassando nos seus deveres pastorais, é toda a humanidade (não só a comunidade católica) que perde, seja pela falta de exemplo, seja pelo mau exemplo.
Mais um dia triste, este...