Assim, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor. Portanto, examine-se cada um a si próprio e só então coma deste pão e beba deste vinho; pois aquele que come e bebe, sem distinguir o corpo do Senhor, come e bebe a própria condenação.- 1ª Carta de São Paulo aos Coríntios, 11, 27-29.
Quando encontramos um texto que consegue verter de forma clara e límpida as ideias que não conseguimos transmitir por palavras próprias sem ser de forma confusa, não vale a pena insistir. Citamos o texto na íntegra e passamos adiante!
Com um grande agradecimento aos autores, aqui citamos, na íntegra, o seu artigo:
Referendo do Aborto, Cânone 915 e Comunhão Eucarística
por Gonçalo Gomes Figueiredo e Nuno Serras Pereira
In Alameda Digital - Ano I - Nº 7, Março/Abril de 2007 -
http://www.alamedadigital.com.pt/n7/aborto_canone_915.php
Explicado magistralmente o valor e a origem do sacramento da Eucaristia como Dom de Deus celebrado na Nova Aliança do Sangue de Cristo Filho de Deus (I parte, números 6 a 15 da Exortação Apostólica, O Sacramento do Amor, do Papa Bento XVI), o Santo Padre reflecte nas consequências lógicas para a vida daqueles que celebram esse Mistério admirável da fé. Como Mistério de Comunhão, a Eucaristia diz respeito à comunhão intra-trinitária das Pessoas Divinas, à comunhão do crente com Cristo, de Cristo com a Igreja, e dos cristãos entre si. Donde introduzir qualquer divisão nestas relações é diminuir gravemente o valor da Eucaristia. Comungar as espécies eucarísticas é comungar com a Pessoa de Cristo e com a Igreja “Em comunhão com toda a Igreja” ou como afirma o Papa “um olhar contemplativo para «Aquele que trespassaram» (Jo. 19, 37) leva-nos a considerar a ligação causal entre o sacrifício de Cristo, a Eucaristia e a Igreja” (n.º 14), a sugestiva circularidade, entre a Eucaristia que edifica a Igreja e a própria Igreja que faz a Eucaristia, “um influxo causal da Eucaristia nas próprias origens da Igreja” (João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia, 1).
Este dado, confirmado pela Tradição, reforça a consciência da indissolubilidade entre Cristo e a Igreja. “A unicidade e indivisibilidade do Corpo Eucarístico do Senhor implicam a unicidade do seu corpo místico, que é a Igreja una e indivisível” (Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 11). Donde se conclui que a Eucaristia estabelece objectivamente um forte vinculo de unidade entre a Igreja Católica.
Os baptizados, configurados com Cristo, incorporados na Igreja e feitos filhos de Deus, só podem celebrar a Eucaristia em Comunhão com a Igreja, o que quer dizer “em comunhão com o vosso servo o Papa, o nosso Bispo, e todos os Bispos que são fiéis à verdade e professam a fé católica e apostólica” (Missal Romano, Oração Eucarística I). Esta comunhão não é meramente afectiva, mas reclama a adesão da inteligência da fé a toda a doutrina da Igreja, no assumir de todas as verdades da fé.
“O mistério «acreditado» e «celebrado» possui em si mesmo um tal dinamismo, que faz dele princípio de vida nova em nós e forma da existência cristã” (Bento XVI, Sacramentum Caritatis [O Sacramento do Amor], 70) ao ponto de não ser já “o alimento eucarístico que se transforma em nós, mas somos nós que acabamos misteriosamente mudados por ele”. A exigência da conversão face à Eucaristia é uma evidência: “o sacrifício — sacrum facere, «tornar sagrado» — exprime aqui toda a densidade existencial que está implicada na transformação da nossa realidade humana alcançada por Cristo (Fil 3, 12)” (Bento XVI, Sacramentum Caritatis, 70).
Em cada momento da sua vida o cristão é desafiado a manifestar a concretização do mistério Eucarístico, configurando as suas opções com o que celebra, oferecendo assim um culto agradável a Deus na encarnação do homem novo. Sublinha-se a evidência da ligação entre a realidade eucarística e a vida cristã no seu dia-a-dia, a devoção eucarística abraça a vida inteira. E a Eucaristia torna-se o critério de valorização de tudo o que o cristão encontra nas diversas expressões culturais.
“Descoberta a beleza da forma eucarística da existência cristã, somos levados a reflectir também sobre as energias morais que, por tal forma, se desencadeiam em apoio da liberdade autêntica e própria dos filhos de Deus... Este apelo ao valor moral do culto espiritual não deve ser interpretado em chave moralista; é, antes de mais, a descoberta feliz do dinamismo do amor no coração de quem acolhe o dom do Senhor, abandona-se a Ele e encontra a verdadeira liberdade. A transformação moral, que o novo culto instituído por Cristo implica, é uma tensão e um anseio profundo de querer corresponder ao amor do Senhor com todo o próprio ser, embora conscientes da própria fragilidade.” (Bento XVI, Sacramentum Caritatis, 82)
Os padres sinodais tinham-se dado conta da discrepância entre a vida sacramental e moral como grave dano para a santidade da Eucaristia e prejuízo para a unidade da Igreja e consequente afastamento da santidade dos fiéis: “Não poucas respostas aos Lineamenta insistem no sentido pessoal e eclesial da Eucaristia em relação à vida moral, à santidade e à missão no mundo. A presença e acção permanentes do Espírito Santo, dom do Senhor ressuscitado, recebido através da Comunhão, são fonte do dinamismo da vida espiritual, da santidade e do testemunho dos fiéis.
Portanto, a Eucaristia e a vida moral são inseparáveis, já porque, alimentando-se do santo Sacramento, se obtém a transformação interior, já porque a Eucaristia leva o homem renascido no Baptismo a uma vida segundo o Espírito, uma nova vida moral, que não é segundo a carne. A Eucaristia reforça verdadeiramente o sentido cristão da vida, enquanto a sua celebração é um serviço a Deus e aos irmãos e leva a um testemunho dos valores evangélicos no mundo. Assim, as três dimensões da vida cristã, liturgia - martyria - diakonia, exprimem a continuidade entre o Sacramento celebrado e adorado, o empenho de testemunhar Cristo no meio das realidades temporais e a comunhão construída através do serviço da caridade, sobretudo em favor dos pobres... Diversas respostas insistiram na relação entre Eucaristia e vida moral, evidenciando uma notável tomada de consciência da importância do empenho moral derivado da comunhão eucarística. Não faltam referências ao facto de demasiados fiéis se abeirarem do Sacramento sem reflectir suficientemente sobre a moralidade da sua vida.
Há quem receba a Comunhão mesmo negando a doutrina da Igreja ou dando público apoio a opções imorais, como o aborto, sem pensar que estão cometendo actos de grave desonestidade pessoal e dando escândalo. Existem, de facto, católicos que não compreendem porque seja pecado grave apoiar politicamente um candidato abertamente favorável ao aborto ou a outros actos graves contra a vida, a justiça e a paz. Desse comportamento deduz-se, entre o mais, que o sentido de pertença à Igreja está em crise e que não é clara a distinção entre pecado venial e pecado mortal... É frequente separar as exigências específicas da vida moral da função da Igreja como mestra de vida, pensando que os ensinamentos desta tenham de passar pelo filtro da consciência individual... Insiste-se no dever dos fiéis de procurar a verdade e de formar uma consciência recta...
As respostas aos Lineamenta dão sugestões para superar a dicotomia entre o ensinamento da Igreja e o comportamento moral dos fiéis. Assinala-se, antes de mais, a conveniência de dar mais ênfase à necessidade da santificação e conversão pessoais e de insistir ainda mais na unidade entre o ensinamento da Igreja e a vida moral. Além disso, os fiéis deverão ser constantemente encorajados a se capacitar de que a Eucaristia é a fonte da força moral, da santidade e de todo o progresso espiritual. Por fim, considera-se de importância fundamental sublinhar na catequese a ligação entre a Eucaristia e a construção de uma sociedade justa, através da responsabilidade pessoal de cada um de participar activamente na missão da Igreja no mundo. Nesse sentido, especial responsabilidade cabe aos católicos que ocupam lugares de destaque na política e nas várias actividades sociais.” (Sínodo das Bispos, Instrumentum laboris, 72-74).
Estas preocupações e constatações dos Padres Sinodais foram magistralmente resumidas e assumidas pelo Santo Padre quando afirma: “o culto agradável a Deus nunca é um acto meramente privado, sem consequências nas nossas relações sociais: requer o testemunho público da própria fé. Evidentemente isto vale para todos os baptizados, mas impõe-se com particular premência a quantos, pela posição social ou política que ocupam, devem tomar decisões sobre valores fundamentais como o respeito e defesa da vida humana desde a concepção até à morte natural, a família fundada sobre o matrimónio entre um homem e uma mulher, a liberdade de educação dos filhos e a promoção do bem comum em todas as suas formas. Estes são valores não negociáveis. Por isso, cientes da sua grave responsabilidade social, os políticos e os legisladores católicos devem sentir-se particularmente interpelados pela sua consciência rectamente formada a apresentar e apoiar leis inspiradas nos valores impressos na natureza humana. Tudo isto tem, aliás, uma ligação objectiva com a Eucaristia (1 Cor 11, 27-29: “E, assim, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se cada qual a si mesmo e, então, coma desse pão e beba desse cálice. Aquele que come e bebe, sem distinguir o corpo do Senhor, come e bebe a própria condenação.”)”. (BENTO XVI, Sacramentum Caritatis, 83).
Esta afirmação de Bento XVI encontra-se na mesma linha doutrinal do seu antecessor João Paulo II que na encíclica Evangelium Vitae afirmava: “O aborto e a eutanásia são … crimes que nenhuma lei humana pode pretender legitimar. Leis deste tipo não só não criam obrigação alguma para a consciência, como, ao contrário, geram uma grave e precisa obrigação de opor-se a elas... Desde os princípios da Igreja, a pregação apostólica inculcou nos cristãos o dever de obedecer às autoridades públicas legitimamente constituídas (cf. Rm 13, 1-7; 1 Ped 2, 13-14), mas, ao mesmo tempo, advertiu firmemente que «importa mais obedecer a Deus do que aos homens» (Act 5, 29)... Portanto, no caso de uma lei intrinsecamente injusta, como aquela que admite o aborto ou a eutanásia, nunca é lícito conformar-se com ela, «nem participar numa campanha de opinião a favor de uma lei de tal natureza, nem dar-lhe a aprovação com o próprio voto»” (JOÃO PAULO II, Evangelium Vitae, 73).
No entanto, se bem reparamos, enquanto o Papa João Paulo II fala principalmente do que nunca se pode fazer, sob pena de pecado mortal, o Papa Bento XVI, recorda a obrigação moral grave de agir pela positiva, isto é, não basta não apoiar leis injustas como é preciso “apresentar e apoiar leis inspiradas nos valores impressos na natureza humana” - como quem diz que o pecado mortal também pode ser de omissão. E mais adianta que: “Os bispos são obrigados a recordar sem cessar tais valores; faz parte da sua responsabilidade pelo rebanho que lhes foi confiado.” (BENTO XVI, Sacramentum Caritatis, 83).
Mas que fazer, se houver católicos, que de modo obstinado e público, não acolhem estas verdades sobre o amor, que o Magistério da Igreja ensina em nome de Jesus Cristo?
Este problema é esclarecido pela declaração que o Conselho Pontifício para os Textos Legislativos (ano 2000) - de acordo com a Congregação para a Doutrina da Fé e com a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos - , fez sobre a interpretação do cânon 915, do Código de Direito Canónico. Em síntese, diz o seguinte:
A proibição feita no cânon 915, por sua natureza, deriva da lei divina (1 Cor 11, 27-29) e transcende o âmbito das leis eclesiásticas positivas: estas não podem introduzir modificações legislativas que se oponham à doutrina da Igreja.
Este texto diz respeito primeiramente ao próprio fiel e à sua consciência como consta no cânon 916. Porém o ser-se indigno por se achar em estado de pecado põe também um grave problema jurídico na Igreja: precisamente ao termo «indigno» refere-se o cânon do Código dos Cânones das Igrejas Orientais que é paralelo ao cân. 915 latino: «Devem ser impedidos de receber a Divina Eucaristia aqueles que são publicamente indignos» (cân. 712). Com efeito, receber o Corpo de Cristo sendo publicamente indigno é um comportamento que atenta contra os direitos da Igreja e de todos os fiéis de viver em coerência com as exigências dessa comunhão. Deve-se evitar o escândalo, concebido como acção que move os outros ao mal. Tal escândalo subsiste mesmo se, lamentavelmente, um tal comportamento já não despertar admiração alguma: pelo contrário, é precisamente diante da deformação das consciências, que se torna mais necessária por parte dos Pastores, uma acção tão paciente quanto firme, que tutele a santidade dos sacramentos, em defesa da moralidade cristã e da recta formação dos fiéis.
2. Qualquer interpretação do cân. 915 que se oponha ao conteúdo substancial, declarado ininterruptamente pelo Magistério e pela disciplina da Igreja ao longo dos séculos, é claramente fonte de desvios. A fórmula: «e outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto» é clara e deve ser compreendida de modo a não deformar o seu sentido, tornando a norma inaplicável. As três condições requeridas são:
a) o pecado grave, entendido objectivamente, porque da imputabilidade subjectiva o ministro da Comunhão não poderia julgar;
b) a perseverança obstinada, que significa a existência de uma situação objectiva de pecado que perdura no tempo e à qual a vontade do fiel não põe termo, não sendo necessários outros requisitos (atitude de desacato, admonição prévia, etc.) para que se verifique a situação na sua fundamental gravidade eclesial;
c) o carácter manifesto da situação de pecado grave habitual.
3. A prudência pastoral aconselha vivamente a evitar que se chegue a casos de recusa pública da sagrada Comunhão. Os Pastores devem esforçar-se por explicar aos fiéis envolvidos o verdadeiro sentido eclesial da norma, de modo que a possam compreender ou ao menos respeitar. Quando, porém, se apresentarem situações em que tais precauções não tenham obtido efeito ou não tenham sido possíveis, o ministro da distribuição da Comunhão deve recusar-se a dá-la a quem seja publicamente indigno, com firmeza, consciente do valor que estes sinais de fortaleza têm para o bem da Igreja e das almas.
4. Nenhuma autoridade eclesiástica pode dispensar em caso algum desta obrigação do ministro da sagrada Comunhão, nem emanar directrizes que a contradigam.
5. O dever de reafirmar esta impossibilidade de admitir à Eucaristia é condição de verdadeira pastoral, de autêntica preocupação pelo bem dos fiéis e de toda a Igreja. (A síntese e os destaques são nossos. O texto completo encontra-se aqui)
O Papa Bento XVI ao remeter no número 83 da sua exortação apostólica para a primeira carta de S. Paulo aos Coríntios (1 Cor 11, 27-29) quer relembrar-nos este texto, acabado de resumir, que ele enquanto Perfeito para a Congregação para a Doutrina da Fé aprovou.
Mais do que uma desobediência grave seria uma manifesta falta de amor verdadeiro continuar a dar a Sagrada Comunhão aos que perseveram publicamente em pecado mortal.
A fé verdadeira, o culto devoto e a vida santa, são três vertentes que não se podem separar sob o risco de se perder a coerência do sacramento, fazer grave dano à Igreja e perder o horizonte último de cada cristão que é a santidade, urge por isso “traduzir na vida o que celebramos no dia do Senhor” (BENTO XVI, Sacramentum caritatis, 95).