terça-feira, 10 de abril de 2007

Precisamos de sacerdotes com fé e coragem

Num gesto pouco surpreendente, tendo deixado passar o prazo para submeter a nova lei ao juízo do Tribunal Constitucional, o Presidente da República decidiu hoje promulgar a nova lei do aborto:

Presidente promulga nova lei da despenalização do aborto

Antes de mais, devo dizer que tenho o Presidente da República em grande consideração e estima, e não duvido por um instante das suas boas intenções e da tremenda dificuldade do problema que teve em mãos.

Por outro lado, sendo que o Prof. Cavaco Silva é católico, o que hoje sucedeu reveste-se de uma gravidade moral objectiva, uma vez que o Prof. Cavaco Silva não pode facilmente alegar o desconhecimento do erro moral do seu acto de promulgação de uma lei iníqua e assassina.

A lei que foi hoje promulgada legitima a morte de seres humanos com menos de dez semanas de idade. É uma lei injusta, criminosa, eticamente ilícita e inconstitucional.
O Presidente da República estava perante um grande dilema, e não há dúvidas de que a sua presidência ficaria gravemente em risco, caso decidisse vetar a lei.

As hipóteses alternativas à promulgação não eram muitas, mas eram as suficientes para que uma pessoa de bem tomasse uma decisão acertada. O Presidente da República poderia ter vetado a lei. Ela regressaria ao Parlamento, de onde poderia regressar ao Palácio de Belém (alterada ou não), desde que aprovada por maioria simples. Caso a redação final da lei persistisse no erro ético do aborto a pedido, então o Presidente tinha duas alternativas, qualquer uma delas muito difícil em termos políticos:

a) dissolver a Assembleia e convocar eleições antecipadas
b) demitir-se, por se recusar a pactuar com uma lei iníqua

É certo: ouviremos muitos católicos virem em socorro do Prof. Cavaco Silva, afirmando que estava em jogo a estabilidade do país. De novo, a confusão intelectual reinante impede que até os católicos mais atentos se dêem conta da trágica troca de prioridades. A estabilidade política ou económica do país não se deve apoiar na morte de seres humanos. É disso que estamos a falar, e de nada menor do que isso.

O acto do Presidente da República é grave para qualquer ser humano. É mais grave para um católico, que deveria estar ciente da gravidade moral intrínseca do seu acto. Sigamos as palavras do Padre Nuno Serras Pereira, que tem diligentemente trabalhado no sentido de que se compreenda melhor o catolicismo, e de que este seja praticado, vivido e defendido com mais coerência e maturidade:

«Esta “lei”, hoje promulgada, é gravemente injusta e o acto da sua promulgação consiste numa cooperação formal com o mal intrínseco do aborto provocado, tornando o Presidente Aníbal Cavaco Silva moralmente imputável por todos os homicídios/abortos, e demais consequências nefandas, praticados ao abrigo desta “lei”, isto é, desta violência crudelíssima.

No Juízo particular e no Juízo final, depois da morte, Aníbal Cavaco Silva terá de responder perante Deus, e não perante os votos e as maiorias, não se podendo escudar na obediência aos mecanismos formais da democracia, como se estes fossem substitutos da moralidade ou da consciência. Ser-lhe-ão pedidas contas de todos e cada um dos assassínios/abortos, e demais consequências negativas, cometidos ao abrigo da iniquidade promulgada.»
- boletim electrónico "Infovitae", 10 de Abril de 2007.

De nada vale invocar, como é hábito, o "mito Nuno Serras Pereira", essa distorção da realidade que consiste em retratá-lo como padre fanático que não é em vez de ser visto como padre católico que é. Até porque muitos mais sacerdotes, sem dúvida "alvos" não tão preferidos pela da Comunicação Social, pensam do mesmo modo, a começar, obviamente, pelo Papa.
Por outro lado, será sempre de censurar o sacerdote católico que, administrando a comunhão ao Prof. Cavaco Silva sem que ele se arrependa da promulgação desta lei, abdique deste modo da sua obrigação pastoral. Aceito de bom grado, dada a imagem que tenho do Prof. Cavaco Silva como uma pessoa de boas intenções, que é apenas por puro desconhecimento que ele arrisca incorrer, com este seu acto de hoje, em excomunhão latae sententiae (automática), o que o impediria de se aproximar da Eucaristia.

Portugal precisa de sacerdotes com fé e coragem.
De sacerdotes como o Padre Nuno Serras Pereira.

Tenho a firme convicção de que, vendo negado o seu acesso à eucaristia por um sacerdote corajoso, o Prof. Cavaco Silva, como homem inteligente que é, rapidamente se aperceberia da gravidade moral do seu acto, e certamente que se arrependeria dessa decisão, que coloca a imoralidade objectiva deste seu acto ao serviço da estabilidade política do país.

Seria insensato pensar que todos os católicos que comungam o fazem em pleno direito. Normalmente, o sacerdote não sabe se o comungante está ou não preparado. No caso de figuras públicas católicas, a coisa muda de figura: quando a tomada de posição pública, e os actos públicos, contradizem o Magistério, a perda de comunhão com a doutrina católica torna-se notória aos olhos do Mundo. Dar a comunhão, nestas situações, pode causar escândalo aos fiéis e, bem pior, constituir um uso abusivo da Eucaristia.

Ser católico coerente (aliás, ser coerente nesta vida) é tarefa dura e gera muita incompreensão.
Sei-o bem porque prevejo consequências, no meu círculo de amigos e conhecidos, desta minha tomada de posição em defesa da posição de católicos coerentes como o Padre Nuno Serras Pereira, em detrimento da posição de católicos incoerentes como o Prof. Cavaco Silva.
Mas o que sei é que a coerência é condição necessária para se estar certo.
Pode não ser suficiente, mas é necessária.

Não é possível manter-se uma verdade moral pessoal, enquanto se que tolera uma "verdade alternativa" votada por maioria democrática. O católico que acreditar que pode ter a sua moral pessoal, enquanto pactua (com o seu acordo, com a sua assinatura) com a antitética "moral" do Mundo (mesmo que democraticamente distorcida), incorre em heresia.

Levar as coisas às últimas consequências seria, para Cavaco Silva, abdicar do seu mandato. Uma decisão difícil e dura, como sucede a todos os católicos que combatem e que não se deixam vencer pelo Mal. Mas poderia tal decisão, mesmo que dura, comparar-se à dos santos mártires que deram a sua vida corpórea por Cristo?

Se o Prof. Cavaco Silva levasse a sua coerência católica às últimas consequências, então, como diz o Padre Nuno, «renunciava ao mandato, explicando, em qualquer dos casos, as razões porque o fazia, a saber, a impossibilidade moral de cooperar numa injustiça de tal gravidade, dando, deste modo, testemunho de uma consciência verdadeira e recta, e mostrando ser um homem de boa vontade. Posto o povo diante de tal verticalidade e desassombro, bem poderia despertar para a extrema gravidade do que estava em questão e haver um geral sobressalto mobilizador contra o aborto, a favor da vida.».

Ora nem mais!
Esta oportunidade está perdida.
Mas ficamos, pelo menos, com um perfeito exemplo desta grande verdade milenar da Igreja: quando o sacerdote vacila e perde coragem ou a fé (a perda de uma acarreta a da outra), fracassando nos seus deveres pastorais, é toda a humanidade (não só a comunidade católica) que perde, seja pela falta de exemplo, seja pelo mau exemplo.
Mais um dia triste, este...

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