Houve tempos em que ética e moral eram sinónimos. Ambos os termos referiam-se à licitude da conduta humana. Uma determinada conduta humana pode ser:
a) eticamente lícita, ou moralmente lícita;
b) eticamente ilícita, ou moralmente ilícita;
c) eticamente neutra, ou moralmente neutra.
Obviamente, em cada uma destas categorias, há um gradiente contínuo de maior ou menor licitude ou neutralidade.
Contudo, hoje em dia, a interpretação corrente destes dois termos "ética" e "moral" já divergiu de tal modo que cada vez são interpretados de forma mais distante.
Durante o Iluminismo, uma mão cheia de "intelectuais" procurou separar a "ética" da "moral", sendo que a ética passaria a abarcar a justeza da conduta humana fora de um contexto religioso, ficando a moral limitada a esse contexto.
Hoje, a mera referência ao termo "moral" faz pensar que se está a falar de religião. Dado o carácter conservador da religião, com a erosão intelectual iluminista e pós-iluminista, a categoria filosófica da Ética foi sendo esvaziada, enquanto que a categoria religiosa da Moral se manteve practicamente inalterada, tendo ambas partido em pé de igualdade na alta Idade Média.
Tomemos como exemplo os sete pecados capitais católicos:
1. Soberba
2. Avareza
3. Luxúria
4. Ira
5. Gula
6. Inveja
7. Preguiça
Estas sete categorias determinam um universo de comportamentos morais incorrectos. Todo o comportamento humano incorrecto cai numa destas categorias ou numa mistura ponderada de várias delas. É certo que se poderia ter chegado a um leque maior ou menor destas categorias, que a universalidade dos comportamentos não deixava de ser a mesma.
Com a procura de uma ética independente da religião, gerou-se, não só a tal separação conceptual entre ética e moral (que nunca deveriam ter sido separadas, uma vez que representam a mesma realidade), mas também o gradual empobrecimento da Ética religiosamente neutra.
Este era o ponto de vista medieval, intelectualmente coerente:
- A Ética/Moral determina se um dado comportamento humano é correcto, incorrecto ou neutro
Este passou a ser o ponto de vista moderno, intelectualmente incoerente:
- A Ética determina a aceitabilidade ou tolerância social de um determinado comportamento
Estou a ser, certamente, injusto, porque haverá bom trabalho ético, independente de postulados religiosos, que não restringe a Ética à sua dimensão social. Mas não há como negar: a Ética moderna tornou-se convenção social, ou pelo menos, é determinada por esta.
O Iluminismo trouxe então consigo o relativismo ético. Neste aspecto, a Democracia fez graves estragos: do mesmo modo que se passaram a votar leis por sufrágio popular, achou-se que a Democracia também poderia ser útil em Ética, e que passaria a ser a maioria a ditar (por convenção) a justeza ou injusteza dos comportamentos humanos em sociedade.
Ora isto é profundamente errado: o voto popular, mesmo maioritário, não altera a licitude ou ilicitude ética de um comportamento. Foi o que procurei demonstrar com o meu artigo acerca da ilicitude ética universal do aborto provocado. Deste modo, nenhuma maioria de plebiscito altera o quadro ético: o aborto é um crime abominável e um erro ético gravíssimo porque atenta contra o primeiro direito de todos: o direito à vida.
Vejamos ainda outro aspecto interessante, que se prende com um dos fenómenos que ajudou ao actual quadro de relativismo ético: a questão do confronto de culturas. A colonização da América (apenas um exemplo de entre vários) trouxe enormes transformações sociais, que não deixaram de apresentar inúmeros excessos. O contacto da sociedade europeia com as civilizações da América gerou um turbilhão intelectual que não fez pouco para o actual estado da Ética. Por um lado, um excesso de puritanismo dos sectores religiosos ou conservadores da sociedade fez ver a nudez dos indígenas como o factor civilizacional mais chocante e grave no choque entre a moral europeia e os hábitos indígenas. Ora é certo que a nudez, ou quase nudez, praticada por essas culturas seria o menor dos problemas éticos de tais culturas. Como qualquer sociedade humana, também as várias sociedades indígenas padeceriam de inúmeros problemas éticos e morais.
Por outro lado, surgiu um outro excesso do lado dos pensadores iluministas, que passaram a ver os indígenas de uma forma idílica. Rousseau, com o seu "mito" do "bom selvagem" popularizou a ideia de que tais culturas não padeciam de maleitas sociais, morais ou éticas, porque seria a própria civilização europeia a responsável pelo surgimento de tais maleitas. Deste modo, muitos passaram a ver a própria civilização europeia, durante séculos o garante da moralidade e da ética humana, como a fonte da corrupção do "selvagem primordial", essa criatura imaginada que seria sempre boa, desde que deixada no seu estado selvagem.
Claramente, falamos de pseudo-antropologia, uma vez que qualquer sociedade humana, tanto de ontem como de hoje, viva ela no centro da Europa como na distante Polinésia, padece sempre, em maior ou menor grau, dos defeitos éticos do próprio ser humano.
Regressando ao confronto de culturas, dá-se neste fenómeno social à escala global uma situação que promove o relativismo ético. A sociedade europeia passa a colocar em questão a sua matriz moral, e a procurar um "máximo denominador comum" de comportamento humano correcto que possa acomodar outras culturas. Isto gera dois fenómenos distintos e coetâneos:
a) o empobrecimento da Ética e da Moral
b) o surgimento do relativismo
Deveria ser evidente, e como estamos longe disso, que qualquer comportamento humano pode ser classificado como lícito, ilícito ou indiferente do ponto de vista ético ou moral, e essa classificação deve ser universal. Por exemplo, matar um ser humano é sempre um mal, mesmo que existam tribos remotas que recorram ainda ao sacrifício de seres humanos. Só mesmo uma pseudo-antropologia eticamente mediocre poderia suster que tais culturas deveriam ser respeitadas cada vez que actuam de forma eticamente inaceitável.
É, então, bem difícil para a Ética e para a Moral o confronto de cuturas, uma vez que não se afigura imediato harmonizar comportamentos sociais distintos. Mas há, ao mesmo tempo, a ajuda surpreendente de comportamentos análogos. O monge budista advoga um decoro em matéria de moral sexual análogo ao da moral sexual católica, por exemplo. É evidente que é apenas por "moda" (uma "moda" intelectualmente pobre) que um ocidental dos nossos dias vive fascinado pelo budismo, decorando frases inteiras de mantras em páli, enquanto abomina a moral sexual da Santa Sé e proclama impropérios acerca do uso do Latim na liturgia romana.
Defendo então que os juízos acerca do comportamento humano sejam matéria de âmbito universal, devendo ser aplicadas do mesmo modo em qualquer lugar ou tempo. E isto serve ainda para os comportamentos humanos fora da sociedade. O estatuto de eremita coloca graves problemas à Ética iluminista e pós-iluminista. Como ajuizar, à luz da Ética oitocentista, o comportamento de um anacoreta, de um indivíduo que vive isolado de qualquer contacto social?
Deveria ser evidente que o comportamento de um homem isolado também é alvo de tratamento por parte da Ética e da Moral. Contudo, a Ética moderna é de tal forma pobre e deturpada que já não serve para tais comportamentos. E isto porque a Ética moderna não passa hoje de um modelo comportamental definido pelo "consenso da maioria".
Olhando para as categorias morais demarcadas pelos sete pecados capitais do catolicismo, encontramos uma série de comportamentos incorrectos que um anacoreta pode assumir. Já a Ética moderna, pelo seu formato bizarro, não imagina uma só forma de um eremita agir de modo não ético.
Corrijo-me: imagina uma única forma de não agir eticamente. Se o eremita atentar contra a Natureza, então comporta-se de forma não ética! O que não deixa de ser paradoxal: a sociedade moderna passou a dar ao comportamento humano em relação à Natureza uma preponderância inaudita em detrimento do comportamento dos seres humanos entre si. Em três tempos se gera uma enorme compaixão por uma baleia alvo de predadores humanos, enquanto um ávido defensor dos direitos dos animais se pode encaminhar, sem problemas éticos, para uma cabine de voto para votar pela legalização do aborto.
A moral católica recorda-nos ainda de que a eticidade se pode revestir de vários aspectos comportamentais:
a) pensamentos
b) palavras
c) actos
d) omissões
A ética moderna, no seu fanático pragmatismo, já abdicou de considerações éticas sobre pensamentos. Na ética dos nossos tempos, deixaram de existir pensamentos não éticos. Sobre as palavras, muito se perdeu, mas ainda restam alguns resquícios deste aspecto da classificação ética: é proibido, em muitos países dos nossos tempos, proferir palavras de cariz racista, bem como ainda é proibido mentir em muitas situações legais. A ética moderna centra-se quase exclusivamente nos actos (sobretudo contra outrém, porque a ética moderna dos actos de um indivíduo contra si mesmo desapareceu), se bem que nalguns aspectos também ainda considera algumas omissões como eticamente tratáveis (por exemplo, não pagar os impostos não é ético).
Mas deveria ser claro que todas estas quatro categorias, que a liturgia católica invoca do rito penitencial, são universais. É possível tratar de forma ética todas as quatro categorias, que envolvem as várias facetas do comportamento humano.
Deste modo, é fácil afirmar que, sendo errado cometer um determinado acto eticamente ilícito, também pode ser errado não cometer um acto lícito que impede um determinado mal. Por exemplo, se votar pela legalização do aborto é um mal ético, abdicar de votar contra a dita (com menor gravidade) também pode ser censurado em termos éticos. É certo que até o Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa afirmou que, em caso de grave dúvida do votante, o melhor seria a abstenção no referendo. Mas tal situação, a de enorme dúvida, é confrangedora intelectualmente. Sobretudo para o católico, que tem acesso directo à verdade moral. O católico consciente, nos nossos dias, e mais do que o ateu ou o agnóstico, não tem razões para ter dúvidas acerca de o aborto ser um mal ético, pelo que todo e qualquer católico capaz deveria ter votado contra a actual lei iníqua.
Chegamos agora ao juízo ético do comportamento do Presidente da República, Prof. Cavaco Silva. Sendo certo que, por voto popular, o Presidente representa os portugueses, legitimado pela democracia que o elegeu, também é certo que os seus comportamentos pessoais, públicos ou privados, não deixam por essa razão de estar fora do alcance da Ética.
No fundo, isto é o essencial: nenhum comportamento humano, seja ele público, privado, social ou não social, gregário ou não gregário, contra outrém ou contra si mesmo, sai do âmbito da Ética, evidentemente com a ressalva de que há comportamentos neutros nesta matéria.
No que toca aos comportamentos eticamente neutros, o Presidente da República deve, no seu papel de consenso e representatividade, atender às várias sensibilidades. Nesta matéria, o Presidente pode procurar servir a maioria dos interesses pessoais e nacionais deste colectivo a que chamamos Portugal. E isto porque tratando-se de comportamentos eticamente neutros, estão abrangidos e caem na lógica da democracia: a maioria dita, por voto, os comportamentos eticamente neutros de um representante eleito.
Já o caso muda radicalmente de figura quando um determinado comportamento de um representante eleito cai na categoria de acto eticamente ilícito. Como referi no início, a maioria democrática não muda uma vírgula à eticidade de um acto. Não é pelo voto que se torna correcto um comportamento que é intrinsecamente incorrecto. E por isto é que o Presidente não tem qualquer legitimidade para violar a Ética alegando razões de representatividade democrática. Ou pior ainda, alegando razões de estabilidade política ou económica do país.
A promulgação da actual lei do aborto não é apenas uma omissão. Há omissão (erro ético comportamental) pelo facto de o Presidente da República não ter vetado a lei nem tomado outras medidas necessárias que impedissem a legalização da iniquidade do aborto provocado. Mas, com a sua assinatura, o Presidente dá um passo em frente na direcção da sua catástrofe ética: passa da omissão à colaboração. Mesmo que, pessoalmente, o Presidente nunca executasse um aborto, ele tinha poder para impedir uma iniquidade e não o exerceu.
Não duvidamos (alguns duvidam, mas ainda são minoritários) de que não é ético abdicar de ajudar pessoas em perigo. Se podemos fazer algo para impedir uma catástrofe, ou para salvar alguém, e não o fazemos, temos um caso de acto eticamente ilícito na forma de omissão.
Perante a concretização da morte em massa de embriões e fetos humanos, nas mãos de clínicas abortistas facínoras, o Presidente, em vez de agir para impedir tal catástrofe, assina o papel. É mais grave este acto presidencial que o dos votantes que se abstiveram no referendo do aborto. Na verdade, o comportamento ético do Presidente é equivalente ao dos que votaram "sim", aprovando implicitamente tal proposta de lei.
Vemos então que o acto do Presidente, ao promulgar uma lei desumana, bárbara e eticamente errada, é mais do que uma omissão eticamente grave, é também um acto eticamente ilícito e censurável. E isto de um ponto de vista estritamente neutro em termos religiosos. Deixarei a questão religiosa para um texto que se seguirá a este muito em breve.
Sem comentários:
Enviar um comentário