quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Sobre a resposta do Ludwig ao meu desafio

Ver texto original aqui:
O desafio do Bernardo

Ludwig...
Por simplicidade, os blocos de texto que aqui não forem citados são por mim considerados não problemáticos ou mesmo correctos.

«As religiões vão no sentido inverso. Cada religião define-se por um conjunto fixo de crenças, costumes e rituais.»

É totalmente falacioso escrever desta maneira. Insistes na expressão "as religiões", procurando em vão definir e contestar todas "as religiões" em bloco. E pelo menos a religião cristã não vai no sentido inverso do conhecimento científico, como é afirmado. Basta pegar numa questão qualquer, por exemplo, o heliocentrismo ou o evolucionismo, e analisar a reacção intelectual do cristianismo às novas ideias científicas, e entende-se que há uma constante reinterpretação da doutrina à luz de novos conhecimentos. Um outro exemplo: quando se dá o primeiro contacto da intelectualidade cristã com o aristotelismo, a reacção inicial é de desconfiança: que teria o filósofo pagão para ensinar aos cristãos? Nos séculos seguintes, o aristotelismo foi integrado numa visão filosófica cristã, sobretudo graças a São Tomás de Aquino. Após esta reacção cristã salutar ao que o aristotelismo tinha de bom, verificou-se no final da Idade Média uma crescente contestação às fragilidades da física aristotélica, que ao contrário do que se pensa, não começou com Galileu ou Newton (apesar de ambos serem cristãos convictos e praticantes), mas sim com Buridan e Oresme, uns séculos antes.

É sistemática e constante, não só a reacção da Igreja Católica ao conhecimento científico, mas também a produção de conhecimento científico. Foi o padre belga Lemaître quem pela primeira vez sugeriu a teoria do átomo primordial, que viria a ficar conhecida como teoria do "Big Bang".



Lemaître aparece nesta fotografia a dar uma aula de Física usando as vestes sacerdotais. Quem julga que essas vestes, símbolo exterior dos seus votos e da sua vocação, não têm nada a ver com o facto de este homem vir a dar aulas de Física, não faz ideia do que está a falar.

Seria preciso bastante tempo para te mostrar, Ludwig, inúmeros exemplos de pessoas concretas cuja vida e obra refutam totalmente a visão deturpada que tens acerca do cristianismo: Buridan, Oresme, Mersenne, Stensen, Mendel, Lemaître, são alguns dos nomes que me vêm à memória neste momento, em variadas áreas do saber científico.

«Enquanto a ciência visa escolher hipóteses segundo critérios objectivos de adequação à realidade, independentes do sujeito, as religiões são manifestações de subjectividade que projectam sobre a realidade o acto pessoal de crer.»

Tornas isto difícil pelo facto de que usas sistematicamente a expressão "as religiões", expressão essa que só poderias usar se realmente TODAS as religiões entrassem nesse padrão.

A religião cristã certamente não entra nesse padrão que traças e criticas.
Custa a entender a que é que te referes, num contexto cristão, quando falas em critérios objectivos de adequação à realidade... Será que te referes ao célebre adágio escolástico, "veritas est adaequatio rei et intellectus" (a verdade é a adequação do intelecto à realidade), explicada por exemplo por São Tomás de Aquino na sua questão disputada sobre a verdade?

É que é difícil dizer que um cristão está contra essa concepção "realista" do conhecimento, quando o maior doutor da Igreja, e longe de estar sozinho, o afirma de forma tão categórica...

Se, pela frase "veritas est adaequatio rei et intellectus", a filosofia escolástica quer precisamente erradicar a subjectividade para fora do conceito de verdade (ao dizer que o intelecto se tem que adequar ao real para atingir a verdade, considerada independente do sujeito), a que é que te referes quando falas em "manifestações de subjectividade, que projectam sobre a realidade" o que quer que seja? Se há alguém que critica essas irreais projecções subjectivas do intelecto para a realidade, esse alguém é o cristão, que sempre defendeu que o intelecto é que se deve adequar ao real, e não o inverso!

«Filósofos gregos especularam que o universo seria feito de água, fogo, ar ou terra. Os alquimistas elaboraram a especulação e, eventualmente, nasceu a química e a moderna teoria dos átomos.»

Ludwig: porque é que passas um rolo compressor por cima de questões tão complexas? Achas que estás a fazer uma boa síntese desses conceitos? Achas que tens uma ideia precisa acerca da alquimia? Eu também aprendi no ensino secundário que a alquimia era uma química primitiva. Mas isso tem uma explicação simples: ignorância dos professores que me ensinaram essas baboseiras. A alquimia não é uma proto-ciência experimental. Tem certamente uma componente experimental, mas é altamente dependente de uma cultura hermética, que a fez surgir e que a protegeu. Aliás, uma interpretação hermética da alquimia, que é transversal a toda a alquimia ocidental, e que tinha pretensões metafísicas e espirituais, foi fortemente criticada por isso mesmo pela Igreja Católica. Ao fazê-lo, a Igreja procurava erradicar o espírito de magia e hermetismo que considerava nocivo para a doutrina cristã e para o conhecimento em geral.

Chega a ser irónico que tu apresentes a alquimia como exemplo de método científico ou pré-científico quando a motivação por detrás de todo o alquimista sério (havia também o alquimista burlão, que só queria enganar, e o ganancioso, que só procurava fortuna fácil) era uma motivação ocultista ou hermética, a motivação diametralmente oposta à do cientista.

O surgimento da ciência moderna é um fenómeno complexo e ainda cheio de pontas soltas. Por exemplo, há umas décadas atrás, Frances Yates propôs a teoria singular e polémica (mas ainda em debate) de que a corrente hermética tinha sido muito importante para o surgimento da ciência moderna, ao procurar, com a sua rebeldia intelectual, fugir do "hiper-racionalismo" da tradição escolástica, e procurar através da magia, da cabala e da alquimia, manipular as "forças do mundo". É uma tese muito interessante e séria, que ainda hoje tem defensores e oponentes.

É certo que as experimentações alquímicas vão desembocar, mais tarde ou mais cedo, na química moderna. Não nego que estejas certo neste ponto. Mas vês uma linearidade, uma relação causa-efeito tão limpinha, que chocarias qualquer historiador da Alquimia. Parece-me que te está a passar completamente ao lado, pela visão que tens acerca destes assuntos (uma visão típica de um triunfalismo céptico-iluminista tão comum nos séculos XVIII e XIX), como é que estas transições se deram ao longo da História, e passa-te também ao lado o papel fundamental que a Igreja teve neste processo. Mersenne, por exemplo, pelo papel que teve no combate à cultura hermética, foi uma peça-chave nesse virar cultural que inaugurou a era científica moderna.

«Mais cedo ou mais tarde, empurradas pelo que se observa, estas especulações acabariam por convergir numa descrição mais próxima da realidade. Coisa que o fundamento subjectivo das religiões impede.»

Quem te lê, julga que a ciência moderna surgiu por milagre, no século XVIII, graças ao secularismo iluminista, e que surgiu APESAR do catolicismo dominante. Galileu, Newton, Leibniz, Descartes, e toda a elite intelectual do renascimento e do iluminismo andou aos ombros de gigantes. A começar pelas bases: quase todos os grandes cientistas e intelectuais da modernidade receberam os seus estudos básicos e universitários em instituições cristãs (católicas ou protestantes).

Quem julgas tu que, pela primeira vez na História, ensinou a alunos universitários como é que se montava um telescópio galileano? Achas que foi um desses cientistas seculares do iluminismo, um desses adversários da "superstição" religiosa? Foi o jesuíta Giovanni Lembo, do Collegio Romano, que estava a dar aulas no Colégio de Santo Antão, em Lisboa, instituição jesuíta.

Quem julgas tu que levou para o extremo oriente as descobertas científicas de Galileu? Achas que foi um desses cientistas seculares do iluminismo, um desses adversários da "superstição" religiosa? Foi o jesuíta Manuel Dias quem traduziu para chinês, em 1614, as descobertas astronómicas de Galileu, apenas poucos anos após terem sido feitas.

O Marquês de Pombal, esse “campeão” do iluminismo secularista em Portugal, conseguiu a notável proeza de destruir a rede de ensino jesuíta que existia em Portugal, deixando o país mergulhado no analfabetismo e desligado das redes internacionais de conhecimento (das quais se destacava, a larga distância, a rede jesuíta de ensino). Expulsou os detentores do saber. É preciso recuar uns séculos para encontrar uma estupidez do mesmo calibre, quando o nosso rei D. Manuel I decidiu expulsar os judeus, detentores dos recursos financeiros.

Os teus "subjectivistas religiosos" garantiram, durante séculos, não só a preservação do conhecimento científico (os copistas, as bibliotecas, as universidades) mas também a produção de genuíno conhecimento científico.

«Religiões e ciência são incompatíveis à partida porque não podemos subordinar as crenças aos dados que obtemos ao mesmo tempo que assentamos uma visão do mundo num crer arbitrário.»

E cais no mesmo... Das duas uma: ou admites que estás a aglutinar todas as religiões no mesmo saco, passando por cima das enormes diferenças entre elas, ou então admites que é por teimosia que continuas a dizer que o crer cristão é arbitrário. No último texto que escrevi, frisei de forma clara que esse crer arbitrário, baseado exclusivamente em argumentos de autoridade, e desconfiado da razão humana, é considerado pela Igreja, e há muitos séculos, como uma HERESIA, chamada "fideísmo". Ludwig: o que é que quer dizer “teologia”? Não vem de “theos-logos”, ou seja, a procura da razão, da lógica, de Deus?

«Isto não impede que alguém seja religioso e cientista. Também há pára-quedistas que fazem mergulho. Mas a capacidade humana para fazer e pensar coisas incompatíveis não faz com que deixem de o ser. Não é por um cientista ir à missa que provam a compatibilidade. Para isso teriam de mostrar como se faz ciência com rezas, fé e dogmas religiosos.»

Alguma vez leste a introdução do "De revolutionibus orbium coelestium", do Copérnico? O que é que lá aparece? Não me refiro ao prefácio espúrio do protestante Osiander, refiro-me às próprias palavras do Copérnico na introdução, às palavras que ele usa para explicar ao leitor porque razão decidiu escrever aquela obra...
Ah, Copérnico era cristão.

Só desconhecendo totalmente a mentalidade dos cientistas cristãos é que se pode dizer que eles faziam ciência separadamente das suas crenças religiosas. Dá mesmo vontade de rir. Está no dogma cristão, está na doutrina cristã, toda a motivação para a descoberta científica: todos estes grandes nomes investigavam o mundo com a profunda convicção de quem está a ler "o livro de Deus", de quem está a entrar no intelecto divino através das Suas obras, interpretando o desígnio de Deus através do estudo da Criação. É judaico-cristã a ideia de que a Criação é boa, racional, inteligível, obra de um Deus bom.

Dizes que não se faz ciência com rezas... Talvez concorde contigo, mas o cientista cristão reza para pedir a Deus a inspiração necessária para um trabalho intelectual de qualidade, para que o intelecto humano limitado do cientista possa penetrar nas verdades acerca da realidade natural. E isto porque o cientista cristão, aquele a quem deves quase toda a ciência que tens hoje em dia, vê o seu trabalho científico como um diálogo intelectual com Deus. Para alguns cientistas cristãos, não poucos, a sua investigação científica é apenas mais uma forma de rezar, ou seja, de estabelecer um diálogo racional com Deus através do estudo da Sua obra.

Tu, porém, regulaste tudo com medida, número e peso.
Livro da Sabedoria, 11,20

O que é que achas que esta citação quer dizer, Ludwig?

«Por exemplo, muitas religiões – entre as quais a católica – afirmam a existência de seres conscientes e imateriais. Deus, almas, anjos, espíritos santos. E isto a ciência diz, claramente, ser impossível.»

Onde é que ela diz isso?
Vamos ver se eu percebi. A ciência, cujo domínio é 100% empírico, ao excluir do seu campo de estudo tudo o que não é empírico (como Deus, almas, anjos, espíritos santos), ainda assim, diz que esses conceitos são irreais? Como?

Seria como tentar medir temperaturas com uma balança, ou medir pesos com um termómetro. Explica-me como é que a ciência prova, cientificamente, que esses conceitos fora do âmbito científico não existem...

«É algo que segue da física mais fundamental. O processamento de informação, no sentido mais lato que abrange certamente qualquer forma de consciência, exige energia e acarreta custos em entropia. Disso não há escapa. A menos que a ciência moderna esteja redondamente enganada.»

Não é preciso, de forma alguma, dizer mal da ciência moderna. Mas entendes que falas de processamento de informação feito por consciências humanas? Que podes dizer tu acerca do consumo de energia, acerca da entropia, do raciocínio divino? Que pode a ciência natural dizer acerca disso?

Que pode a ciência moderna dizer acerca de uma alma imaterial?
Entendes que, por definição, a ciência exclui trabalhar sobre esse tipo de conceitos?

O meu desafio mantém-se: mostra-me onde é que a ciência moderna refuta a doutrina cristã. Só me estás a dar razão... Os teus exemplos são inaplicáveis. Metes abusivamente a ciência a falar fora da sua esfera de trabalho.

«Quando nos diz que não se pode acelerar objectos à velocidade da luz é mesmo isso que quer dizer.»

Onde é que me viste defender a ideia de que Deus seria capaz de fazer um objecto ultrapassar a velocidade da luz? Deus, como os cristãos O entendem, é racional. Se faz realmente parte da estrutura do nosso cosmos, como tudo indica, esse limite da velocidade da luz, porque razão haveria Deus, que criou o cosmos, e portanto esse mesmo limite, querer ultrapassá-lo? Só para provar a sua omnipotência?

Para os cristãos, Deus fez as regras do jogo. Caramba, Deus criou o jogo! Logo, seria irracional Deus querer quebrá-las. E Deus não é irracional.

«Para disfarçar esta contradição é costume alegar-se que Deus opera num domínio diferente ou que ele é que criou as leis da natureza e pode fazer o que quiser. Nada disso serve.»

Claro que serve.
Eu não estou a dizer que Deus viola leis da Natureza. Porque razão haveria de dar esse salto arriscado? Posso apenas dizer que Deus criou o mundo dotado de certas leis que Ele mesmo desenhou e projectou. Ao fazê-lo terá certamente pensado em formas de intervir na Sua criação. E, do ponto de vista de Deus, essas formas de intervir são perfeitamente "lícitas" em termos das leis que Ele mesmo concebeu. Sucede apenas que essas “intromissões” de Deus no mundo, apesar de serem “legais” e “lícitas” do ponto de vista de Deus, são impossíveis de analisar pela ciência, pelo facto de que causas sobrenaturais estão fora do método científico.

Um milagre, da forma como este fenómeno é entendido pelo cristão, não é uma violação de qualquer tipo de leis da Natureza.

«Torçam-se como quiserem, mas dizer que há um deus que o pode fazer é contradizer a ciência.»

Estás a bater num espantalho. Eu não disse nada disso.

«Quando alguém se cura e dá jeito mais um santo, reúne-se cientistas para certificar que a cura é cientificamente impossível e oficializa-se o milagre.»

Não é nada disso que se passa. A comissão científica que analisa o suposto milagre, após análise de todos os dados, e se não encontrar explicação científica, apenas diz que não a encontrou. Não diz nunca, nem nunca disse, que a cura por via natural do caso em estudo era cientificamente impossível. Se uma dada comissão dessas conclui que não encontra explicação científica, isso apenas abre caminho para uma explicação sobrenatural (esta explicação apenas sugere que se coloque a causa do fenómeno "fora" da realidade natural, e não altera nem os efeitos naturais do milagre, nem os processos naturais que decorrem juntamente com os efeitos naturais).

A base explicativa do milagre, que é claramente metafísica e não científica, está em apontar uma causa externa à Natureza. Mas tal explicação metafísica não tem que, e não pode, levar à conclusão de que se violaram leis científicas. Se um dado fenómeno, devido a uma causa sobrenatural, não pode ser logicamente analisado puramente com causas naturais, não tenho que deduzir que se violaram leis científicas.

«É claro que o Bernardo vai dizer que Deus é um ser transcendente»

Sim...

«...que está para além do tempo e do espaço...»

Sim, não entendendo o termo "além" em sentido espacial ou temporal...

«...é incompreensível para a mente humana...»

Depende. Se tomares "incompreensível" no sentido de que o intelecto humano não consegue abarcar a divindade, é realmente isso que eu defendo. Se tomares "incompreensível" no sentido de irracional, então discordo radicalmente. De novo, a ideia de uma suposta "irracionalidade" da revelação cristã é precisamente uma das ideias condenadas pela Igreja, ao atacar a heresia fideísta.

«O que o leva a mais uma contradição com a ciência.»

Eu não entendo mais este ponto no teu discurso: quando usas a palavra "contradição", estás a assumir que a não existência de contradição equivale a uma espécie de equiparação? Ou seja, julgas que eu, por defender que não há contradição entre Ciência e doutrina cristã, vou defender algum tipo de equiparação?

Esse risco não existe. Quando eu digo que a ciência moderna não contradiz a doutrina cristã, estou a dizer que não há verdades científicas em colisão com verdades de doutrina cristã. Não estou a dizer que elas operam com as mesmas ferramentas. Por exemplo, o conceito de "prova" é totalmente diferente para o trabalho científico e para a discussão filosófica ou teológica. Mas isso não quer dizer que a razão tenha sido posta a andar do debate filosófico ou teológico: a razão é intrínseca a este debate. Esta diferença tem a ver com método de trabalho e com âmbito de trabalho. Ciência e doutrina cristã estão interessadas em aspectos tipicamente diferentes da realidade (se bem que, como referi, há por vezes sobreposição): a ciência foca-se nas explicações naturais para os fenómenos naturais, enquanto que a doutrina cristã se foca em realidades sobrenaturais. Por vezes, como nos milagres, a doutrina cristã foca-se em explicações sobrenaturais para fenómenos naturais. Mas porque razão não haveriam ambas as coisas, naturas e sobrenaturais, de coexistir numa mesma realidade?

Pergunto-te: porque razão não poderia toda a realidade estar dividida em dois domínios distintos, mas co-existentes: o natural e o sobrenatural? Se assim fosse, e não percebo porque razão excluis "a priori" esta explicação, o mais natural era que conceitos como os de "prova" ou de "demonstração" tivessem que ser diferentes para os diferentes domínios do real.

Mesmo no dia-a-dia, eu uso "prova" nestes dois sentidos diferentes. Uma coisa é uma prova científica, outra coisa é eu achar que pessoa A gosta de mim. Posso estar seguro de ambas as coisas, mas eu sei bem que as valido de forma diferente.

«Em ciência, essas desculpas são inaceitáveis. Porque não há maneira nenhuma de saber se isso é mesmo assim ou se é tudo treta. Nem faz qualquer diferença...»

O teu problema principal, Ludwig, é que na tua guerra louvável contra as tretas, estás a mandar fora o bebé com a água do banho. E olha que esse bebé, nascido numas palhotas em Belém há 2.000 anos, é o único bebé realmente eficaz contra todo o tipo de tretas, científicas e metafísicas.

Um abraço!

6 comentários:

Vítor Mácula disse...

Olá, Bernardo.

Dois reparos, porventura um pouco “minudentes”:

1. O termo “céptico-iluminista” é interessante e legítimo historico-filosoficamente; note-se no entanto que o iluminismo é um movimento que pretende superar as aporias do cepticismo, assim como as ilegitimidades racionais do dogmatismo: a suspensão de adesão aos juízos que a crítica iluminista executa é uma suspensão indagatória, processual e metódica, com vista a proceder a um levantamento e avaliação dos juízos e dos seus fundamentos; tanto Descartes como Kant pretendiam fundar racionalmente o conhecimento, e não desvinculá-lo de toda a certeza apodígtica, como ocorre no cepticismo, de Sexto Empírico a Cioran; haveria também de distinguir, nas suas semelhanças e dissemelhanças, o cepticismo filosófico do cepticismo científico, patente nos métodos hipotético-dedutivos: este não parece sofrer de nenhuma crise epistemológica; bem pelo contrário, um certo positivismo tem até pretensões de reduzir a legitimidade epistemológica às suas representações e modelos, às suas hipóteses e resultados...; acrescente-se que nem tudo isto é mutuamente exclusivo como por vezes nos parece na nossa tendência de simplismo dicotómico: há mais complementaridade debaixo do céu e da terra do que apreendem as nossas vaidosas mentes ;)
2. A redução do sentido à inteligibilidade é vitalmente problemática: nenhuma representação nem sistema do entendimento detém a gratuidade ontológica (o puro facto do haver real); e por outro lado, há indícios de aleatoridade, da psique ao átomo, que se devem ter em conta em qualquer “teoria acerca de como se passam realmente as coisas e nós”.

Andam muito pertinentes e interpelantes, os seus posts :)

Um abraço

Espectadores disse...

Caríssimo Vítor,

1. Sobre este ponto, totalmente de acordo. Leia "céptico" como "anti-dogmático", era esse o sentido que eu queria dar ao termo. Saiu um bocado mal... É evidente que do anti-dogmático ao céptico radical (que desconfia de qualquer tipo de certeza intelectual) vai um salto muito grande

2. Penso que não terei entendido este ponto. Pode esmiuçá-lo? ;)

Um abraço,

Bernardo

Ludwig Krippahl disse...

Bernardo,

O teu post é um bocado longo para o tempo que tenho agora, mas vou ver se consigo dar-lhe mais atenção em breve.

Entretanto, penso que um mal-entendido importante.

Citas-me:
«As religiões vão no sentido inverso. Cada religião define-se por um conjunto fixo de crenças, costumes e rituais.» e respondes que

«É totalmente falacioso escrever desta maneira.»

A diferença entre disciplinas científicas é o método de estudo. A física foca partículas e movimentos, a química reacções e suas propriedades estatísticas, a biologia os seres vivos, etc. Mas todas contribuem para o mesmo conjunto consistente de crenças -- as teorias científicas -- e todas seguem o mesmo método de confrontar hipóteses com observações.

As religiões usam um "método" diferente da ciência, baseado em alegados testemunhos de suposta autoridade. Nisso todas têm um ponto comum. E todas focam o mesmo assunto. A nossa relação com os seus supostos deuses, e os direitos, deveres e rituais que isso implica.

Onde as religiões diferem entre si é nos dogmas. Se deixares de acreditar que o Papa é um representante priveligiado do teu deus deixas de ser católico. Passas a protestante, por exemplo. Se acreditares que Jesus foi um profeta e não a encarnação do teu deus mas que Maomé foi um profeta mais importante ainda, passas a ser muçulmano. E assim por diante.

Cada religião define-se por um conjunto de dogmas. Mudas os dogmas, mudas a religião.

A ciência muda as suas crenças constantemente sem deixar de ser ciência.

Nisto são o mais diferente que se pode ser...

Vítor Mácula disse...

Pois, o 2 está ultra-rolo-comprimido ;) Tentemos esbater o ultra.

“A redução do sentido à inteligibilidade é vitalmente problemática: (...)”
O sentido é sempre adjectivo, isto é, tem sempre de reportar-se a algo para ter significação; ele exprime uma relação. Para manter-nos no âmbito do seu post, o sentido científico de algo não é o seu sentido imediato, por exemplo (não faz sentido sentar-se num conjunto de átomos em movimento; toda a gente sabe que é a imobilidade das cadeiras que nos permite sentar nelas ;). O sentido não é o em-si da coisa, mas as relações que tem num determinado conjunto, num contexto, precisamente – de sentido; como o seu nome indica, tem que ver com orientação: saber mover-se numa investigação científica ou numa sala para ir sentar-se na cadeira, num jogo de xadrez ou numa obra literária, a fazer comida ou numa relação humana, etc

(cont.)

Vítor Mácula disse...

Isto não significa que não haja uma unidade diferenciada; não se trata de haver a realidade científica, a realidade imediata, a realidade estética, a realidade simbólica, etc, mas sim da multiplicidade de sentido da mesma ocorrância, do mesmo acontecimento, da mesma realidade. O que se passa é que nem todos os elementos de orientação e contexto de sentido são da ordem da inteligibilidade. Isto aborrece uma das tendências da nossa mente que pretende que a totalidade vital seja uma obra de engenharia mental, mas paciência; a realidade não se compadece com as exigências utilitárias e despóticas das nossas mentes. Esse foi aliás um dos problemas do criticismo iluminista: por exemplo, a suspeita de que a causa final é, na maioria das suas aplicações, um abuso instrumental de interpretação e codificação da natureza. E é por isso que o criticismo iluminista corresponde também e sobretudo a estabelecer os limites do entendimento, ou, se preferirmos, e mais restrito ao âmbito do seu post: a actividade científica não esgota a realidade, não a detém nem domina na sua totalidade de acontecer; e isto, não no sentido da finitude do entendimento humano, a que bastaria ter capacidade informativa, analítica e sintética, para aceder a uma inteligibilidade absoluta do ínfimo ao infinito de todas as coisas, mas precisamente no sentido de haver planos na ordem da realidade – que não são passíveis de transcrição inteligível. E que não deixam de existir por isso.
No limite, a exigência de inteligibilidade absoluta, conduz a ilusões da razão, ou ao cepticismo radical (e daí o sentido da minha minudância historico-filosófica: nem a ciência moderna nem o positivismo são filosoficamente cépticos, sendo aliás o segundo a forma dogmática da primeira).
Relembro aqui a complementaridade, isto é, não deixa de ser verdade que o universo é uma obra engenhosa – até certo ponto ;)

(cont.)

Vítor Mácula disse...

“(...) nenhuma representação nem sistema do entendimento detém a gratuidade ontológica (o puro facto do haver real); (...)”
Um dos elementos que não é da ordem da inteligibilidade é o ontológico, quer-se dizer o “ser efectivo”, o “ser real”, o “ser concreto”; não me refiro aqui aos modos de ser – ser árvore, ser átomo, ser madeira, ser cadeira, ser animal, etc – mas ao puro facto de “haver realidade”, seja do que fôr; a transcrição mental para o plano da representação não carrega a densidade ontológica; carrega mais ou menos adequadamente os “modos de ser”, mas o “ser efectivo”, o facto de X existir realmente – não é uma determinação apeensível conceptualmente, mas um puro “de facto”. Ou seja, a diferença que há entre uma representação e o fenómeno correspondente (uma árvore pensada e uma árvore no jardim) não é uma característica essencial (cor, forma, género, etc, que por si não põem existência real) mas o estar ou não estar posto temporal e materialmente na vida.
A causa eficiente não é analisável: toda a transcrição para o plano mental, que exige a análise, a elide enquanto tal, enquanto “produtora de real”. O “ser real”, o “haver concreto”, não se deduz: constata-se; e não se constata numa intuição intelectual, como se constatam os princípios indemonstráveis do entendimento (a causalidade, a unidade, etc); é-nos dado em bruto no “haver de nós”, na experiência bruta e total de sermos reais.

“(...) e por outro lado, há indícios de aleatoridade, da psique ao átomo, que se devem ter em conta em qualquer “teoria acerca de como se passam realmente as coisas e nós”.”
Com “aleatório” quis dizer “sem determinação prévia ao seu acontecer”.

abraço