O modo de vida actual, as prioridades que tantas vezes nos são impostas para que possamos alcançar uma vida que se enquadre naquilo que é considerado uma vida de sucesso, leva-nos a crer que tudo depende apenas de nós, das nossas capacidades técnicas. Esta ideia que tantos homens carregam, limita a interpretação do mundo, levando parte da humanidade a acreditar que todo o desenvolvimento depende apenas da técnica. É esta forma de pensar que está na base da corrente filosófica, muito em voga desde o Sec. XIX, denominada por cientismo, filosofia materialista que pretende que apenas o conhecimento científico seja racional ou verdadeiro. Esta corrente de pensamento que nega a dimensão transcendente do desenvolvimento, considerando-o à sua inteira disposição, revela-nos uma visão de um mundo vazio, desconexo e absurdo, reduzindo o homem à categoria de meio para o desenvolvimento.
Em sentido inverso a esta forma limitada e limitadora de interpretar o mundo o Papa Bento XVI analisa na sua última carta encíclica Caritas In Veritate a mensagem que Paulo VI nos deixou sobre o verdadeiro desenvolvimento, na carta encíclica Populorum progressio: “Na Populorum progressio, Paulo VI quis dizer-nos, antes de mais nada, que o progresso é, na sua origem e na sua essência, uma vocação: «Nos desígnios de Deus, cada homem é chamado a desenvolver-se, porque toda a vida é vocação»” (…) “Dizer que o desenvolvimento é vocação equivale a reconhecer, por um lado, que o mesmo nasce de um apelo transcendente e, por outro, que é incapaz por si mesmo de atribuir-se o próprio significado último. Não é sem motivo que a palavra «vocação» volta a aparecer noutra passagem da encíclica, onde se afirma: «Não há, portanto, verdadeiro humanismo senão o aberto ao Absoluto, reconhecendo uma vocação que exprime a ideia exacta do que é a vida humana». Esta visão do desenvolvimento é o coração da Populorum progressio e motiva todas as reflexões de Paulo VI sobre a liberdade, a verdade e a caridade no desenvolvimento. É também a razão principal por que tal encíclica continua actual nos nossos dias.”
A verdade é que todas as formas de interpretar o mundo que estejam fechadas à vocação se revelam incompletas e, sobretudo, falsas. Voltando a pegar no exemplo do cientismo, e como afirmou Bernardo Motta na conferência A ciência conduz ao ateísmo: “o grande problema do cientismo está em que ele mesmo não se auto-demonstra, pois sendo uma tese filosófica, não pode ser demonstrado pelo método científico.” Contudo, apesar de falsas, estas correntes de pensamento lançam sobre a humanidade uma ideia errada acerca da interpretação da vida, tornando o homem escravo das coisas materiais e facilmente mensuráveis, fazendo-o acreditar que tudo para além disso é falso ou irrelevante para a conquista da tal vida de sucesso.
Isto torna o homem cada vez mais individualista e solitário, uma vez que se enraíza nele a percepção de que tudo está nas suas mãos, que a melhoria das suas capacidades técnicas é a finalidade última da vida, uma vez que tudo depende delas. É progressivamente mais especializado nas suas funções técnicas, mas menos conhecedor do mundo e da vida porque vive parcialmente alheado de tudo aquilo que transcende a sua especialidade. Está de tal forma centrado em si, nos seus sucessos e fracassos, que já não perscruta o sentido esotérico da vida e das coisas, limitando-se a encontrar o que é meramente observável. E aqui chegamos ao grande paradoxo da vida actual. Se por um lado o único conhecimento que é considerado válido é aquele que é observável e comprovado cientificamente, por outro lado somos levados a observar cada vez menos. Vivemos na era do conhecimento abstracto, na ideia que temos das coisas porque estamos cada vez mais limitados na observação que fazemos do mundo. A nossa capacidade de nos espantarmos com o mundo e de nos enamorarmos pelo próximo é mais e mais limitada, na medida em que a nossa vida estiver fechada à vocação e estiver apenas centrada naquilo que é técnico.
Na Parábola do Bom Samaritano Jesus fala-nos de quatro personagens; o homem que caiu nas mãos dos ladrões que o roubaram e o abandonaram meio morto à beira da estrada, de um levita e de um sacerdote, conhecedores da Lei, peritos quanto às grandes questões da Salvação, mas que não se compadeceram do homem que jazia à beira da estrada e seguiram o seu caminho, e, finalmente, de um samaritano. Este último, encheu-se de compaixão pelo sofrimento daquele homem, tratou dele e levou-o a uma estalagem. Aos olhos da moral e dos costumes dos judeus da altura, daqueles três homens, o samaritano seria o que teria menos obrigações perante aquela pessoa, uma vez que os samaritanos eram um povo proscrito pelos judeus e que não era considerado “próximo” deles, por ser visto como impuro. A verdade é que o samaritano não foi capaz de ficar indiferente ao sofrimento do outro, fê-lo seu próximo porque observou toda aquela cena com uma alma virgem, com um coração cheio de Deus.
Enquanto os outros dois personagens de que Jesus fala se limitaram a percorrer um caminho de terra e, provavelmente, rapidamente se esqueceram da cena que tinham presenciado pouco tempo antes, o samaritano transformou aquele caminho de terra e pedras num caminho interior, num caminho de carne que o uniu ao homem que jazia na beira da estrada no amor infinito de Deus. Este caminho de carne que o samaritano e o homem moribundo percorreram é algo que só uma vida aberta à vocação e ao amor de Deus pode alcançar, porque transcende tudo aquilo que a técnica consegue explicar.
O Papa Bento XVI dizia-nos na Homilia que proferiu na missa de Natal de 2009: “A respeito dos pastores, diz-se em primeiro lugar que eram pessoas vigilantes e que a mensagem pôde chegar até eles precisamente porque estavam acordados. Nós temos de despertar, para que a mensagem chegue até nós. Devemos tornar-nos pessoas verdadeiramente vigilantes. Que significa isto? A diferença entre um que sonha e outro que está acordado consiste, antes de mais nada, no facto de aquele que sonha se encontrar num mundo particular. Ele está, com o seu eu, fechado neste mundo do sonho que é apenas dele e não o relaciona com os outros. Acordar significa sair desse mundo particular do eu e entrar na realidade comum, na única verdade que a todos une” (…) “Acordai: diz-nos o Evangelho. Vinde para fora, a fim de entrar na grande verdade comum, na comunhão do único Deus. Acordar significa, portanto, desenvolver a sensibilidade para com Deus, para com os sinais silenciosos pelos quais Ele quer guiar-nos, para com os múltiplos indícios da sua presença.”
Duarte Macieira Fragoso
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