Ainda é surpresa para muitas pessoas, mesmo para quem tem formação católica, que a Igreja Católica defende que a existência de Deus pode ser conhecida com certeza racional a partir da observação das coisas existentes. O Concílio Vaticano I declarou que «(…) Deus, a causa primeira (principium) e o fim de todas as coisas, pode, a partir das coisas criadas, ser conhecido com certeza pelo poder natural da razão humana (…)» (1).
São Tomás de Aquino (1225-1274) é uma referência incontornável no que diz respeito a demonstrações filosóficas da existência de Deus e dos Seus atributos. São Tomás trata do tema na Suma Teológica (2) e também na Suma contra os Gentios (3). Outros nomes importantes para este tema são, por exemplo, Santo Anselmo de Cantuária (1033-1109), Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) e Samuel Clarke (1675-1729). Mas a procura e a defesa de argumentos filosóficos para demonstrar a existência de Deus (Teologia Natural) é uma actividade intelectual bem longe de passar de moda, e um bom número de académicos nas áreas da Teologia e da Filosofia continuam dedicados a ela, tendo-se verificado nos últimos anos um aumento substancial do número de publicações académicas na área da Teologia Natural.
A Igreja Católica reservou um lugar especial para São Tomás de Aquino e para a sua obra, pelo que, na cultura católica, os argumentos tomistas sempre tiveram a primazia e a preferência, não obstante o trabalho de qualidade que se encontra em inúmeros outros pensadores cristãos que procuraram defender racionalmente a existência de Deus. O que é interessante nos argumentos de São Tomás é que o passar do tempo, e as sucessivas vagas de críticos dos seus argumentos, não trouxe a sua refutação. Os argumentos tomistas para demonstrar racionalmente a existência de Deus continuam tão válidos hoje como no momento em que foram escritos, com a particularidade de que os argumentos, sendo do tipo filosófico-ontológico, permanecem imunes às constantes descobertas científicas e mudanças de paradigma científico. Imunes no sentido em que a terminologia e os conceitos usados por São Tomás são independentes de qualquer teoria científica, e não no sentido em que o progresso científico fosse irrelevante para a compreensão destes argumentos tomistas: antes pelo contrário, é sempre muito importante uma sólida formação científica para melhor apreciar a força destes argumentos (ver o post scriptum). Dependem apenas de algumas teses filosóficas acerca da realidade, e da observação das coisas à nossa volta.
Talvez o maior obstáculo para a boa compreensão dos argumentos tomistas esteja na terminologia usada por São Tomás, uma terminologia de base aristotélica, cujo conhecimento é indispensável para entender os argumentos. Grande parte dos críticos destes argumentos falham, precisamente, por não compreenderem a terminologia ou por a interpretarem à luz do significado moderno dessa terminologia.
Há muito tempo que queria fazer a experiência de colocar por escrito um argumento para a existência de Deus, descaradamente baseado nos argumentos de São Tomás, mas escrito em linguagem mais acessível para o leitor moderno. Nunca é demais frisar que o melhor é sempre ir ao original, e procurar compreender São Tomás no seu contexto e dominar os seus termos e conceitos. Para isso, disponibilizei, no âmbito do meu Curso Ciência e Fé, um módulo inteiramente dedicado a São Tomás de Aquino e aos seus argumentos para demonstrar a existência de Deus.
De seguida, vou então atrever-me a estruturar um argumento que talvez possa ser aceite pelo ateu mais renitente, desde que este esteja disposto a ser levado pela razão, termine ela onde terminar...
Como todo e qualquer argumento, este também depende de premissas, ou seja, de teses que eu vou tomar como verdadeiras sem as ter demonstrado. Uma saída fácil para qualquer ateu ou agnóstico passa por, simplesmente, rejeitar qualquer uma (basta uma) dessas premissas, porque o argumento não funciona sem elas (todas). De notar também que este argumento está escrito em linguagem comum, sem o rigor e o formalismo da lógica.
Premissas
- Os princípios da identidade e da não-contradição aplicam-se à realidade natural: uma dada coisa existente na natureza não pode ser o que é, e simultaneamente algo diferente do que é, do mesmo ponto de vista.
- Existe uma realidade objectiva à minha volta, que é independente dos meus pensamentos, ou seja, a realidade externa a mim não é uma invenção da minha mente.
- Os meus sentidos são relativamente fiáveis, ou seja, não tendo que ser infalíveis, os meus sentidos reflectem de forma suficientemente adequada a realidade à minha volta, de tal forma que eu posso confiar neles ao ponto de achar que não estou permanentemente iludido por falsa informação sensorial. Não digo que eu não possa ser vítima de ilusões ópticas, ou enganado por um som parecido com outro, e assim por diante. Digo apenas que posso confiar que, por exemplo, quando converso com as pessoas que conheço, estou, na esmagadora maioria das vezes, mesmo a conversar com elas, e não estou iludido nisso, ou quando observo a estrada que passa à frente da minha porta de casa, tenho quase a certeza absoluta de que ela está lá e não é uma miragem.
- Que a teoria correcta acerca do tempo é a de tipo A (seguindo a nomenclatura de McTaggart), ou seja, que o passado já não existe e que o futuro ainda não existe. Isto implica negar a teoria oposta a ela, a teoria de tipo B, que defende que passado, presente e futuro existem sempre e perpetuamente. Nessa teoria de tipo B, as coisas não começam a existir, ou deixam de existir: elas existem sempre, algures numa coordenada temporal qualquer. Não quero aqui e agora defender os méritos e deméritos de cada teoria: tomo como verdadeira a teoria de tipo A, que aliás é a teoria que a esmagadora maioria das pessoas tomam como verdadeira, mesmo sem conhecerem esta nomenclatura.
- Que do nada, nada vem. Ou seja, sendo o "nada" um termo usado para designar a não existência de coisas, então rigorosamente coisa alguma pode surgir do que não existe. Dito de outra forma, se rigorosamente nada existisse, então nada poderia começar a existir. De notar que, mesmo para um ateu, esta premissa não tem que ser polémica: muitos ateus, quando pensam no fundamento último de toda a realidade, e porque sabem que esse fundamento não pode ser o nada, substituem uma coisa eterna e pessoal (o Deus dos teístas, que eles rejeitam) por uma coisa eterna e impessoal (a matéria, ou um ente impessoal como a divindade dos deístas - Espinosa, Einstein, etc.). Em suma, a explicação e causa última da realidade de tudo o que existe, não pode ser o nada. Tem que ser algo.
- Que há essências nas coisas, ou seja, que as distinções que vemos nas diferentes coisas à nossa volta reflectem essências distintas dessas coisas, que nos permitem agrupá-las em categorias reais, e não meramente subjectivas e convencionais. Dito de outro modo, que usamos nomes diferentes para coisas que nos parecem diferentes porque acreditamos que elas têm mesmo essências diferentes. Por exemplo, se aceitamos que há realmente uma essência na coisa que chamamos "ouro" que é distinta da essência da coisa a que chamamos "prata", isso quer dizer que consideramos o ouro essencial e realmente diferente da prata. Em termos técnicos, aceitar a realidade do essencialismo implica abandonar o nominalismo. Aceitar esta premissa implica também aceitar a realidade objectiva dos conceitos de perfeição e imperfeição. Uma coisa será tão mais perfeita quão melhor representar a categoria a que pertence, e será tão mais imperfeita quão pior representar a categoria a que pertence. Por exemplo, se tivermos uma liga metálica de Ouro misturado com vestígios de outros elementos, quanto mais perto da unidade for o rácio entre a massa de Ouro presente nessa liga metálica e a massa total dessa liga metálica, mais pura e perfeita será essa liga metálica. No limite, dizer que determinada liga metálica é uma amostra perfeita de Ouro implica dizer que cem por cento da massa dessa amostra é Ouro. Um outro exemplo: uma planta saudável é mais perfeita que uma planta doente. Esta premissa, para efeitos do argumento abaixo, apenas é fundamental para aferirmos a propriedade divina da perfeição. Se ela for rejeitada, apenas essa propriedade divina fica por demonstrar no argumento abaixo.
Argumento
- Quando observamos a realidade natural, constatamos que há mudança (contra Parménides, que dizia que toda a mudança era ilusória, e que tudo era permanência), ou seja, há coisas que mudam.
- Quando observamos a realidade natural, constatamos que há permanência (contra Heráclito, que dizia que tudo era mudança, e que nada permanecia), ou seja, que há coisas que permanecem, pelo menos ao longo de um determinado intervalo temporal.
- Pode haver mudança mesmo nas coisas que permanecem durante algum intervalo de tempo, e isso implica que certas coisas podem mudar sem deixarem de ser o que são; chamemos "substância" a todas as coisas que persistem durante algum tempo, sofrendo ou não mudanças sem deixarem de ser o que são, e chamemos "acidente" a todo o tipo de propriedade inerente a uma substância, uma propriedade que esta poderia ou não possuir sem deixar de ser o que é: por exemplo, a maçã é uma substância porque designa algo que permanece durante um determinado período de tempo, e é um acidente de certa maçã que ela esteja a certa altura numa dada posição, porque ela continuaria a ser a mesma maçã se estivesse noutro lugar. Outro exemplo de acidente: o peso de uma dada maçã pode variar ao longo do tempo, que ela continua a ser a mesma maçã.
- Toda a mudança implica que algo deixa de existir e que algo passa a existir. Sendo uma verdade evidente para substâncias, também é válida para acidentes: quando uma maçã muda de posição X para uma posição Y, o que deixa de existir é o acidente "posição X" associado à maçã e passa a existir o acidente "posição Y" associado à mesma maçã.
- Quando uma mudança consiste na transformação de uma substância noutra, essa mudança é substancial. Numa mudança substancial, a substância anterior desaparece para dar lugar à nova substância. Por exemplo, na electrólise da água, esta desaparece para dar lugar a duas novas substâncias: Hidrogénio e Oxigénio.
- Quando uma mudança consiste na transformação de um acidente noutro, essa mudança é acidental. Numa mudança acidental, a substância permanece, mas o acidente anterior desaparece para dar lugar ao novo acidente. Por exemplo, se movemos uma molécula de água de uma posição para outra, essa mudança é acidental.
- Para que possa ocorrer qualquer mudança de A para B, substancial ou acidental, três factos têm que estar presentes:
- A, que vai desaparecer para dar lugar a B, não pode ser já B, senão não haveria qualquer mudança de A para B;
- A, que vai desaparecer para dar lugar a B, tem que ter a(s) característica(s) necessária(s) para poder mudar para B; ou seja, não é qualquer A que pode mudar para B, mas apenas mudará para B aquele A que tenha a capacidade, ou a potencialidade, para mudar para B; ou seja, em A tem que existir a capacidade (ou potencialidade) de A se transformar em B;
- Um C que provoca a mudança de A para B (uma causa para a mudança).
- Esse C não pode ser B porque, como vimos, a mudança de A para B implica que B ainda não existe antes da mudança, e só começa a existir depois da mudança. B nunca poderia ser a causa do surgimento de B, senão B teria que existir antes de fazer surgir B, o que é contraditório.
- Esse C também não pode ser A. Compreende-se este ponto refutando todas as hipóteses alternativas:
- Dado que B não pode ser A (senão não havia real mudança);
- Dado que B não pode surgir do nada (porque do nada, nada vem);
- Para explicar a mudança de A para B só resta:
- Supor que basta a capacidade (ou potencialidade) que existe em A para mudar para B; mas esta capacidade (ou potencialidade) que existe em A para mudar para B, sendo algo meramente potencial e inerente a A, ainda não é algo que exista actualmente, mas apenas potencialmente (virtualmente) em A, pelo que também esta mera potencialidade que A tem para ser B não é suficiente para fazer surgir B;
- Finalmente, admitir um C distinto de A e de B.
- Para que C possa provocar a mudança de A para B, é necessário que C já exista quando muda A para B.
- Se C começou a existir algures no passado, então um D já existiria antes de C, e fez surgir C a partir de algo existente. E se D começou a existir algures no passado, então um E já existia antes de D, e fez surgir D a partir de algo existente, e assim por diante.
- Mas a cadeia explicativa apresentada no ponto anterior não pode regredir perpetuamente para o passado, e tem que principiar em algo eterno, ou seja, em algo que sempre existiu. Porque se tudo o que existe fosse não eterno, então a certa altura do passado, nada existiria. E tomámos como premissa que do nada, nada vem. Pelo que se, a certa altura do passado, nada existiria, então porque do nada, nada vem, hoje nada existiria. Mas vemos que existem coisas, pelo que tem que haver alguma (pelo menos uma) coisa que sempre existiu. Pode existir uma coisa eterna apenas, ou podem existir várias coisas eternas, mas tem que existir pelo menos uma coisa eterna.
- Objecção: E se a cadeia explicativa apresentada no ponto anterior pudesse regredir perpetuamente para o passado?
- Para analisar esta possibilidade, é importante distinguir entre dois tipos de causalidade: ou uma coisa B causa outra coisa C de forma "instrumental", porque B não tem em si mesma o que é necessário para causar C, mas B recebe essa causalidade de outra coisa A (essa coisa A "usa" B como um "instrumento" para causar C); ou uma coisa B causa outra coisa C de forma "essencial", porque B tem em si mesma o que é necessário para causar C;
- Poderíamos supor uma cadeia infinita de relações causa-efeito do tipo "essencial", na qual uma determinada coisa C poderia causar por si mesma outra coisa D, mesmo que a causa de C, uma outra coisa B, já não existisse, porque apesar de C ter surgido por causa de B, a coisa C é capaz, em si mesma ("essencialmente"), de causar D; por exemplo, num modelo cósmico cíclico, seria possível supor uma cadeia infinita de causas e efeitos físicos, uma cadeia sem princípio nem fim, sem nunca ser necessária uma "causa primeira" algures no passado;
- No entanto, já não é possível uma cadeia infinita de relações causa-efeito do tipo "instrumental", pois se uma coisa C causa "instrumentalmente" outra coisa D é por causa de B, que confere à coisa C a capacidade de causar outra coisa D, e assim por diante; mas desta vez, esta cadeia não pode regredir perpetuamente, ou seja, todos os elos da cadeia até poderiam ser instrumentais, excepto o primeiro, que teria que ser uma coisa capaz, em si mesma ("essencialmente"), de exercer poder causal no resto dos elos "instrumentais" da cadeia; por exemplo, para que uma molécula de água exista no presente é necessária a existência, no presente, de dois átomos de Hidrogénio e um átomo de Oxigénio que a constituam; por sua vez, a existência destes átomos no presente requer a existência de determinada quantidade de quarks e leptões que os constituam; no entanto, esta cadeia explicativa da existência presente de uma molécula de água tem que terminar numa "causa primeira" e não causada ("primeira" em sentido ontológico, como causa fundamental da existência da matéria, e não "primeira" em sentido temporal), caso contrário a molécula de água não existiria no presente; esta "causa primeira" está na origem da cadeia de causas materiais que garante a existência actual da molécula de água (e de qualquer outra coisa material, o raciocínio seria idêntico); sendo não causada, esta "causa primeira" seria eterna porque tudo o que começa a existir é, necessariamente, algo causado por algo já existente; para ver porque só há uma "causa primeira" ver o ponto 18;
- Assim, a história do Cosmos até poderia ser eterna, explicada por uma (ou várias) eterna cadeia de relações causa-efeito do tipo "essencial", o que dispensaria uma "causa primeira" de tipo temporal; mas para existir algo no presente (em vez de nada existir), as cadeias de relações causa-efeito do tipo "instrumental" têm que terminar numa "causa primeira" de tipo ontológico, causa essa que é não causada e é eterna;
- Objecção: E se uma cadeia de relações causa-efeito do tipo "instrumental" fosse circular; ela não seria infinita, dispensando assim uma "causa primeira" não instrumental?
- Mesmo admitindo esse hipotético cenário, note-se que todos os elos dessa cadeia circular, mesmo que fossem infinitos, seriam de tipo "instrumental", ou seja, não teriam em si mesmos o que é necessário para causar o elo seguinte na cadeia, e dependeriam de um elo anterior para exercer a sua causalidade; isto sucederia com todos os elos da cadeia, sem excepção (porque postulámos uma cadeia circular de tipo "instrumental");
- Logo, teria que existir uma causa distinta dessa cadeia, uma causa capaz de causar essa cadeia circular, e de a dotar da sua peculiar estrutura causal;
- Se essa causa distinta da cadeia, por sua vez, não tivesse em si mesma o necessário para causar a cadeia, e fosse apenas "instrumental" no causar da cadeia, então ela dependeria de uma outra causa, e assim por diante, mas pelas razões invocadas atrás, esta outra cadeia de tipo "instrumental" teria que terminar numa "causa primeira" de tipo ontológico, causa essa que não é causada e é eterna;
- Uma coisa eterna, ou tem a sua eternidade explicada (causada, justificada) por outra coisa eterna e mais fundamental, ou então essa coisa eterna tem em si mesma a explicação da sua eternidade. No primeiro caso, se uma coisa eterna tem a sua eternidade explicada por outra coisa eterna e mais fundamental, essa cadeia explicativa não pode regredir indefinidamente: tem que principiar numa coisa eterna que tem em si mesma a explicação da sua eternidade.
- Essa coisa eterna, que tem em si mesma a explicação da sua eternidade, é algo que: a) existe desde sempre; b) não recebeu a sua existência de nenhuma outra coisa; c) a sua inexistência é impossível. Por isso, essa coisa terá que ser a sua própria existência, ou melhor, terá que ser idêntica ao seu acto de existir, terá que ser auto-existente. Nela, essência e existência são idênticas.
- Essa coisa eterna e auto-existente não muda, é imutável, porque mudar implicaria deixar de existir, substancial ou acidentalmente, e implicaria uma outra coisa qualquer pré-existente para provocar (causar) essa mudança.
- Essa coisa eterna, auto-existente e imutável não pode ser o próprio Universo, ou qualquer substrato material ou energético, porque matéria e energia mudam continuamente, e portanto, não servem para fundamento último de toda a realidade. Para além disso, o Universo poderia ser diferente do que é (poderia ter mais ou menos massa-energia do que a que tem, poderia ser mais antigo ou mais recente do que é, etc.), e por isso, o Universo não tem em si mesmo a razão de ser como é, ou seja, não pode ser auto-existente.
- Se essa coisa eterna, auto-existente e imutável não pode ser matéria ou energia, então é imaterial. Se é imaterial, não tem partes ou componentes, e portanto é simples.
- Essa coisa eterna, auto-existente, imutável, imaterial e simples tem que ser una, ou seja, não pode haver mais do que uma. Isto deduz-se porque não haveria forma de distinguir duas ou mais coisas cuja essência fosse idêntica à sua existência. Dito de outra forma, para as distinguir, teríamos que o fazer por eventuais diferenças substanciais, ou por eventuais diferenças acidentais. Mas a substância de uma coisa auto-existente seria sempre idêntica à substância de uma outra hipotética coisa auto-existente. Haveria forma de as distinguir acidentalmente? Não, porque uma coisa simples não pode ter acidentes, porque só as coisas não simples (compostas) têm composição de substância com acidentes. Regredindo todas as cadeias explicativas de tudo o que existe até essa coisa una, ela é a causa primeira da existência de tudo o que existe.
- Essa coisa eterna, auto-existente, imutável, imaterial, simples, una e causa primeira é ainda sumamente perfeita. Se essa coisa fosse imperfeita, ou não fosse sumamente perfeita, isso quereria dizer que ela teria, em si mesma, a capacidade ou o potencial para ser melhorada ou aperfeiçoada. Ora, como vimos atrás, isso implicaria uma outra coisa pré-existente para provocar essa mudança no sentido do melhoramento ou aperfeiçoamento, e como já chegámos a existência de uma causa primeira, já não há qualquer possibilidade de melhoramento ou aperfeiçoamento dessa causa primeira porque já não há qualquer capacidade para essa causa primeira sofrer qualquer tipo de mudança (ela é, como vimos, imutável).
- Essa coisa eterna, auto-existente, imutável, imaterial, simples, una, causa primeira e sumamente perfeita é algo que corresponde ao conceito teísta de Deus.
Esta é a segunda versão do argumento. Este argumento não pretende justificar todos os atributos divinos defendidos pelos teístas, mas apenas alguns deles. Por exemplo, este argumento ainda não procura defender atributos divinos como o da omnisciência, omnipotência, omnipresença, infinitude, etc. O meu objectivo é vir a enriquecer em breve este argumento com a defesa de mais atributos divinos. Muito agradeceria os comentários e críticas, de forma a que sejam encontradas falhas ou imperfeições no argumento, para este ser aperfeiçoado até onde for possível.
PS: Haveria muito a dizer acerca da conciliação entre estes argumentos e o actual conhecimento científico, sobretudo nas áreas da física e da cosmologia. Algumas das premissas usadas na base deste argumento têm importantes implicações científicas. Por exemplo, a premissa 4, que assume a teoria A do tempo, é incompatível com uma interpretação realista do espaço-tempo de Minkowski. A conveniência matemática deste modelo espácio-temporal no contexto da relatividade restrita de Einstein não tem que ser negada: basta que, em defesa de uma teoria A do tempo, não se interprete o espaço-tempo de Minkowski como algo real, mas apenas como algo matematicamente útil. Há também toda uma literatura académica (Kenny, e outros) que pretende demonstrar a incompatibilidade dos argumentos cosmológicos de São Tomás de Aquino (que eu segui na construção deste meu argumento) com a física moderna, seja ela newtoniana ou einsteiniana. Nem sempre é fácil encontrá-los, mas há excelentes artigos escritos por filósofos tomistas que mostram cabalmente que não existe qualquer incompatibilidade entre os argumentos tomistas e a física moderna. Veja-se, por exemplo, o artigo de David Oderberg (Universidade de Reading, Reino Unido), "Whatever is Changing is Being Changed by Something Else": A Reappraisal of Premise One of the First Way, ou os artigos de Edward Feser (Pasadena City College, EUA) no Volume 10 dos Proceedings of the Society for Medieval Logic and Metaphysics.
(1) Terceira Sessão, 24 de Abril de 1870, Capítulo 2, parágrafo 1.
(3) Suma contra os Gentios, Livro I (“Deus”), Capítulo 13 (“Argumentos para provar a existência de Deus”).
PPS: Este "post" foi modificado a 25 de Março de 2013, no sentido de substituir o termo "axioma" por "premissa", dado que o uso do termo "axioma" foi contestado pelo Ludwig Krippahl, e apesar de ele não ter razão nas suas críticas, eu não quero prejudicar a compreensão do argumento, e preferi usar o termo "premissa" para classificar as teses que tomo como verdadeiras, sem as demonstrar, e que dvem estar na base deste argumento para que ele funcione.
PPS: Este "post" foi modificado a 25 de Março de 2013, no sentido de substituir o termo "axioma" por "premissa", dado que o uso do termo "axioma" foi contestado pelo Ludwig Krippahl, e apesar de ele não ter razão nas suas críticas, eu não quero prejudicar a compreensão do argumento, e preferi usar o termo "premissa" para classificar as teses que tomo como verdadeiras, sem as demonstrar, e que dvem estar na base deste argumento para que ele funcione.
32 comentários:
Olá Bernardo,
Eu tive alguma dificuldade com esta parte:
''' c) uma coisa C que provoca a mudança. Essa coisa C não pode ser A, porque se assim fosse, isso quereria dizer que A se mudava a si própria, o que é incoerente porque, como vimos, a mudança de A para B implica que A deixa de existir e que B começa a existir. '''
Uma coisa não se pode mudar a si própria e ao mudar deixar de ser aquilo que era...?
Olá!
Obrigado pelo seu comentário! Sim, essa é a parte que eu menos gosto... Estou a pensar em como a melhorar, porque é um dos passos mais importantes do argumento.
Espero em breve actualizar o texto com essa parte melhorada. Muito obrigado, porque me ajuda a melhorar o argumento!
Um abraço,
Bernardo
Espero que agora, nesta segunda versão, já esteja mais claro, Cristóvão!
Um abraço
Já está muito melhor, agora já percebi.
Deixo apenas a sugestão de no ponto 9 pôr subpontos, como no ponto 7, para enumerar as "hipóteses alternativas".
Abraço.
Feito!
Obrigado pela sugestão, Cristóvão!
Um abraço
Sem entrar na discussão teológica (quanto a ela posso dizer que concordo na generalidade com o artigo do Ludwig que me trouxe aqui), tenho problemas com isto:
"A conveniência matemática deste modelo espácio-temporal no contexto da relatividade restrita de Einstein não tem que ser negada: basta que, em defesa de uma teoria A do tempo, não se interprete o espaço-tempo de Minkowski como algo real, mas apenas como algo matematicamente útil."
Não estou bem a ver como.
Na relatividade restrita a cronologia dos eventos depende do referencial. Há referenciais em que o evento A acontece ANTES do evento B e outros em que o mesmo evento B acontece ANTES do evento A.
Assim sendo, uma teoria do tempo do tipo A seria completamente impossível, visto teríamos de concluir que o evento que ainda não existe num determinado referencial já é passado num outro.
Não vejo como dar a volta a isto.
(Muito embora também me parece muito mais intuitiva uma teoria do tipo A)
João Vasco,
Obrigado pela tua visita e comentário!
O Ludwig comete vários erros na sua análise, e irei responder a eles num "post" a fazer em princípio ainda hoje (talvez à noite).
Responder com qualidade ao teu comentário é algo que requer da minha parte alguma releitura e reflexão. Voltarei a ele mais tarde.
Deliberadamente, eu evitei a discussão entre as teorias A e B acerca do tempo. Certamente que quase toda a gente vive como se a teoria A fosse a correcta. Eu não considero isso, obviamente, uma prova de que a teoria A está certa, mas sim como algo que nos deve fazer reflectir.
A teoria B tem inúmeros problemas, sendo o mais grave de todos o problema de que choca com duas coisas que nos parecem evidentes:
a) que há mudança
b) que tomamos decisões livres
O que a teoria B implica é que todos os instantes de tempo são apenas coordenadas num eixo sempre existente, e que portanto, passado e futuro existem sempre. As consequências disto são esmagadoras, e não se deve admitir a teoria B sem ter pensado pelo menos um pouco nessas consequências.
A teoria B implica que nós não estamos a viver a nossa própria vida, a tomar decisões, a mudar o futuro, ou seja, escolher um futuro específico, pelas nossas acções, a partir de inesgotáveis futuros potenciais.
Implica que a nossa vida é um bloco espácio-temporal, e que não a estamos a viver de forma processual. Muito pelo contrário, os vários momentos da nossa vida são nada mais nada menos do que coordenadas do nosso "eu", tal como a distância entre o meu coração e o meu dedo grande do pé.
Se não há mudança, o que deriva da teoria B do tempo, então não há progresso intelectual. Não aprendemos. O nosso intelecto é um bloco único, e lá dentro, há coordenadas nas quais nós estávamos a dizer "X" e outras coordenadas nas quais nós estávamos a dizer "Y", mesmo que Y fosse diferente de X. Visto em bloco, o nosso intelecto é uma bosta, uma mistela recheada de "tumores" que são as contradições das nossas mudanças de ideias.
Um abraço!
Bernardo
Bernardo,
Creio que me interpretaste mal. Eu não estou a defender que uma teoria do tipo B é verdadeira. Pessoalmente não só não tenho ideia, como até afirmei que uma teoria do tipo A me parece mais intuitiva.
Parece-me é que existe uma certa incompatibilidade com a relatividade restrita, que até levou Einstein a defender uma teoria do tipo B - inclusivamente até chegou a responder às considerações meta-físicas que fizeste.
A teoria da relatividade restrita considera um absoluto - a velocidade da luz. Mas para garantir esse absoluto, torna relativo (i.e. dependente de cada referencial sem que exista um "mais verdadeiro" que qualquer outro) aquilo que antes era absoluto: o tempo. E com o tempo, a cronologia dos eventos. Repito: a cronologia depende do referencial.
Eu não estou a defender uma teoria do tipo B, apenas estou a defender a incompatibilidade entre uma teoria do tipo A e a relatividade restrita.
Como também existem dificuldade de conciliar a mecânica quântica com a relatividade restrita em alguns aspectos, não me parece que isso vá ferir uma teoria do tipo A de morte. A MQ é uma aliada de peso ;)
Mas não deixa de ser interessante pensar que uma teoria tão aceite como a relatividade restrita tenha implicações tão "preocupantes" no que diz respeito à natureza do tempo. As pessoas raramente pensam nisso.
João Vasco,
Obrigado pelo teu comentário!
Eu acho que percebi muito bem a tua objecção, e mesmo as tuas ideias sobre o tema. Quando dei razões contra a teoria B, percebi que tu não a estavas a defender. Mas aproveitei para lançar alguns problemas da teoria B.
É verdade que muita gente raramente pensa nas implicações destas coisas todas juntas. Puxando a brasa à minha sardinha, devo dizer que um católico interessado pela Ciência e preocupado com a conciliação entre cristianismo e ciência, está mais do que habituado a tentar "encaixar" tudo isto num todo coerente.
O meu ponto de vista, que poderei desenvolver mais tarde, assenta na ideia de que podemos considerar a relatividade restrita como essencialmente correcta, SEM termos que adoptar teorias metafísicas bizarras acerca do tempo.
Logo à noite, vou revisitar o livro do católico Anthony Rizzi, um físico de topo, que para além de uma carreira de sucesso em física, sobretudo na área da relatividade einsteiniana, é também um excelente filósofo e estudioso da teologia católica. Sei que ele trata deste tema, e mais logo vou espreitar, e depois volto cá.
Abraço
PS: O site académico do Anthony Rizzi:
http://touro.ligo-la.caltech.edu/~arizzi/
"Que a teoria correcta acerca do tempo é a de tipo A" ... "que a esmagadora maioria das pessoas tomam como verdadeira"
A esmagadora maioria das pessoas não explorou o problema e considera que a simultaneidade é absoluta sem saber que, por exemplo, Einstein a considerou relativa. Segundo a plato.stanford.edu, quem defende a Teoria A, deve argumentar escolhendo negar a teoria da relatividade ou que existe simultaneidade absoluta.
A interpretação rival de Minkowski, a de Lorentz (defendida por William Lane Craig), presume a existência de simultaneidade e espaço absolutos, assumindo que o éter existe, que é o que está mais de acordo com o senso comum.
Mas, por outro lado, dizes que basta que "não se interprete o espaço-tempo de Minkowski como algo real, mas apenas como algo matematicamente útil", o que não é abonatório, lembrando que o sistema heliocêntrico também era apenas uma conveniência matemática. Carece de esclarecimento. Aliás, o João Vasco indicou as suas dificuldades para percebê-lo. Eu também não, por isso devo investigar quando tiver tempo.
"Se não há mudança, o que deriva da teoria B do tempo, então não há progresso intelectual." (comentário)
Mudança não exige que seja em termos de séries A, exigindo que exista um apontador único e universal para indicar onde estamos no filme.
A teoria B é uma explicação do fluxo temporal: só é possível explicá-lo através de relações de eventos com antes, depois e ao mesmo tempo.
Podemos estabelecer relações entre posições. Se algo estava numa certa posição, ou estará noutra posição, então há movimento. Da mesma forma, mesmo que exista um bloco espacio-temporal, o progresso intelectual pode ser notado comparando o antes do depois, sem necessitar de pensar em que tempo estamos. Em "coordenadas num eixo sempre existente" podemos comparar o antes do depois das posições e intelecto, existindo assim movimento e progresso intelectual, sem que que o passado, presente e futuro sejam fundamentalmente diferentes.
Já agora: existindo um ser omnisciente, é necessário que pelo menos a teoria B possa ser instanciada mentalmente, para ser possível conhecer o futuro mesmo que que não tenha sido concretizado. Senão, não seria possível haver conhecimento do que o futuro nos reserva, logo a omnisciência seria impossível.
João Vasco,
Responder ao problema que levantas daria origem a um lençol infindável! ;)
"Na relatividade restrita a cronologia dos eventos depende do referencial. Há referenciais em que o evento A acontece ANTES do evento B e outros em que o mesmo evento B acontece ANTES do evento A."
Nestas tuas duas frases misturas duas coisas muito distintas: considerações empiriométricas (medições dos aspectos quantitativos da realidade física) com considerações ontológicas (afirmações acerca da realidade).
Desta tese pacífica (tese empiriométrica):
1. A relatividade restrita implica que a medição do tempo dependa do referencial
Deduzes implicitamente uma tese polémica (e a meu ver errada)
2. A relatividade restrita implica que o próprio tempo dependa do referencial (e não apenas a sua medição)
É preciso recuar um pouco, e ir mesmo antes do valioso contributo de Einstein. O que pensavam os escolásticos acerca do tempo? Podes perguntar: "que me interessa isso?". E eu respondo-te deste modo incompleto mas curioso: ao Anthony Rizzi interessa, ao ponto de ele ter tirado uns anos de sabática do seu trabalho de ponta em Física para ir estudar filosofia medieval, e depois escrever um livro no qual ele usa a filosofia medieval para deslindar este e outros paradoxos acerca de filosofia da Física:
http://www.amazon.com/The-Science-Before-Thinking-Century/dp/1418465046/ref=sr_1_1?ie=UTF8&qid=1364252639&sr=8-1&keywords=anthony+rizzi
Os escolásticos afirmavam o seguinte sobre o tempo e sobre o espaço:
a) o tempo decorre da mudança; se algo não muda, não há tempo
b) o espaço é o que fica quando um determinado corpo o deixa para trás
Quer num caso, quer noutro, tempo e espaço são definidos com base na matéria. Ou seja, dependem ontologicamente da matéria (matéria-energia, claro). Mas apesar de terem isso em comum, são totalmente diferentes. Tempo e espaço são realidades muito distintas, e todavia, Einstein juntou-as na sua relatividade restrita, usando a geometria de Minkowski. É inegável que isso representou um progresso científico, chegando-se a um modelo muito mais elegante. Mas isso foi feito à custa de um artifício empiriométrico: o de considerar o tempo como apenas mais um eixo a juntar aos do espaço. A relatividade geral vai fazer algo análogo: juntar os efeitos da gravidade, da massa, para criar esse artifício matemático que é um espaço-tempo cuja geometria deixa de ser euclideana. Trata-se de um engenhoso artifício que aumenta o poder de previsão de uma teoria, ao mesmo tempo que o faz através de fórmulas de rara beleza e simetria.
Mas, quer num caso, quer noutro, estamos a falar de modelos matemáticos erigidos sobre dados empiriométricos, e estamos a tentar fazer essa coisa arriscada que é tentar deduzir deles o que é a realidade.
(continua)
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Creio que estás, sem te dar conta, apegado ainda a uma noção newtoniana de tempo. O Newton, e quase todos os físicos da Revolução Científica, abandonaram os escolásticos. Em certa medida, porque eles se meteram a fazer experiências com muito mais intensidade, isso foi uma bênção para a Ciência. Noutra medida, isso foi um desastre, porque se é verdade que os escolásticos experimentaram pouco (mas experimentaram algo, e algo não é nada), também é verdade que Newton e amigos cometeram erros filosóficos desnecessários.
O erro da "reificação" do tempo sem matéria é um erro crasso da filosofia newtoniana, que nenhum escolástico adoptaria. Para a escolástica, não há tempo sem mudança, e na Natureza, isso implica que não há tempo sem mudança material. Logo, para um escolástico o "plenum" newtoniano é bizarro, tal como o conceito de um referencial temporal absoluto SEM referência à matéria, é uma coisa bizarra em metafísica.
Curiosamente, a relatividade restrita de Einstein "faz as pazes" com o passado, porque a ideia brilhante de incorporar o tempo no espaço vai no sentido de mostrar que tempo e espaço têm uma dependência clara da matéria, e que por isso, nunca haveria tempo sem matéria, nem espaço sem matéria. A melhor ciência de hoje dá razão a essa lição da escolástica que o Newton desprezou.
Mas não nos podemos precipitar. O facto de termos enorme sucesso nas previsões empíricas não nos permite deduzir que podemos equiparar o tempo ao espaço.
E, apesar de os referenciais serem indiferentes do ponto de vista dos números, eles não são indiferentes em termos ontológicos. Se pegarmos no teu exemplo, é fácil ver como o paradoxo desaparece, e deixamos de ter que nos preocupar com ele, se postularmos, na nossa análise, um referencial em repouso em relação ao Universo como um todo. Esse referencial pode ser, se quisermos, o centro de massa do Universo. E porque não, se todos os referenciais são válidos do ponto de vista empiriométrico?
Assim, temos o seguinte:
a) todos os referenciais são válidos em termos empiriométricos, porque todos dão previsões que são validadas na realidade por métodos empíricos
b) todavia, há pelo menos um referencial que nos ajuda a fazer sentido ontológico dos paradoxos temporais: quando o tempo num dado referencial A ou B é medido contra o referencial do centro de massa do Universo, os problemas que tu levantas desaparecem
Não sei se estou a ser claro.
Estou a tentar passar para aqui o que o Anthony Rizzi explica no livro dele, e sendo eu um mero Engenheiro, admito que possa estar a dizer asneiras.
Isto faz-te sentido, João Vasco?
Algo de parecido pode também ser feito no contexto da relatividade geral. É costume nesse caso postular, por utilidade ontológica, um referencial em repouso face à radiação cósmica de fundo, apesar de ser verdade que QUALQUER referencial seria válido e conduziria (certamente com mais trabalho) às mesmas previsões.
Nota que, no caso do tempo, e da relatividade geral, os físicos fazem precisamente isso quando falam do tempo cósmico, que é medido em função do "eixo" de simetria do modelo dinâmico de expansão do Universo. É por isso que (hoje) sabemos que o Universo tem 13,82 mil milhões de anos.
Em resumo: apesar de todos os referenciais serem indiferentes em termos das previsões empirométricas, eles não são indiferentes na altura de tentar fazer sentido da realidade física que se esconde por detrás dos modelos. Aí, a filosofia da Física ajuda-nos a evitar erroos filosóficos que só podem representar impossibilidades físicas.
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Tu dizes ainda:
"Assim sendo, uma teoria do tempo do tipo A seria completamente impossível, visto teríamos de concluir que o evento que ainda não existe num determinado referencial já é passado num outro.
Não vejo como dar a volta a isto."
E não há volta a dar, porque isso seria uma impossibilidade ontológica. Como isso não pode acontecer, procuramos interpretações filosóficas dos resultados empíricos, que não violem a relatividade einsteiniana, mas que preservem intactas as nossas razoáveis expectativas ontológicas.
"A teoria da relatividade restrita considera um absoluto - a velocidade da luz. Mas para garantir esse absoluto, torna relativo (i.e. dependente de cada referencial sem que exista um "mais verdadeiro" que qualquer outro) aquilo que antes era absoluto: o tempo."
Está tudo certo, desde que fales apenas da relatividade de medições. É a medição do tempo que é dilatada pelo movimento dos corpos. E é a extensão dos corpos que é alongada pelo seu movimento. Necessariamente, isto introduz relatividade nos VALORES medidos, mas isso não nos permite aferir que o passado ainda existe, ou que o futuro já existe.
O Rizzi diz isto (p. 219):
"It may be that there is no frame from which any physical being will measure all things in such a way that they measure exactly the way they are; in other words, we may not be able to pick out one frame that looks, to our measurements, like all it corresponds to "now". This, of course, does not mean there is no "now". "Now" is the sum total of what exists at this moment wheter I measure it or not; my inability to find a coordination of places (a frame) from which my measurements look nice cannot militate against the reality of the sum total of what exists at this moment (or the next)."
Ao fim e ao cabo, o próprio uso de Einstein das analogias dos relógios e das varas está a trair a base epistémica da relatividade einsteiniana: baseia-se em medições, medições feitas com coisas materiais que não escapam, elas mesmas, à relatividade do tempo e do espaço perante o movimento dos corpos. Se existisse um relógio imaterial ou um equipamento imaterial para medir distâncias, e postulássemos um referencial inercial em repouso face a todo o Universo, então poderíamos fazer todas estas medidas sem entrarmos em paradoxos espaciais ou temporais, e sem violarmos a relatividade restrita.
É como dizes: pode ser que ela contenha lacunas a colmatar no futuro, quando a relatividade geral for unificada com a mecânica quântica. Mas eu acho que, para entendermos a verdade da teoria A do tempo, não precisamos de maltratar o legado de Einstein.
"E com o tempo, a cronologia dos eventos. Repito: a cronologia depende do referencial."
Em suma: a medição do tempo e do espaço, porque é sempre feita usando equipamentos físicos, e sempre feita sobre referenciais em movimento face a outros referenciais, é uma medição sempre relativa. Mas a relatividade epistémica da medição não implica uma relatividade real dos acontecimentos. Um observador no referencial em repouso face a todo o Universo, e dotado de infinitas capacidades de medição imaterial, resolveria estes paradoxos.
Um abraço!
ERRATA
Pelo avançado da hora, peço desculpas... mas:
Onde se lê:
"É por isso que (hoje) sabemos que o Universo tem 13,82 mil milhões de anos.""
Leia-se:
"É sobre esse eixo que hoje medimos que o Universo tem 13,82 mil milhões de anos."
E onde se lê:
"E é a extensão dos corpos que é alongada pelo seu movimento."
Leia-se, obviamente:
"E é a extensão dos corpos que é encurtada pelo seu movimento."
Pedro Amaral Couto,
"A esmagadora maioria das pessoas não explorou o problema e considera que a simultaneidade é absoluta sem saber que, por exemplo, Einstein a considerou relativa. Segundo a plato.stanford.edu, quem defende a Teoria A, deve argumentar escolhendo negar a teoria da relatividade ou que existe simultaneidade absoluta."
Bom, mas o artigo "Time" não diz apenas isso. Vê o que o artigo diz logo a seguir:
"It looks as if the A Theorist must choose between two possible responses to the argument from relativity: (1) deny the theory of relativity, or (2) deny that the theory of relativity actually entails that there can be no such thing as absolute simultaneity. Option (1) has had its proponents (including Arthur Prior), but in general has not proven to be widely popular. This may be on account of the enormous respect philosophers typically have for leading theories in the empirical sciences. Option (2) seems like a promising approach for A Theorists, but A Theorists who opt for this line are faced with the task of giving some account of just what the theory of relativity does entail with respect to absolute simultaneity. (Perhaps it can be plausibly argued that while relativity entails that it is physically impossible to observe whether two events are absolutely simultaneous, the theory nevertheless has no bearing on whether there is such a phenomenon as absolute simultaneity.)"
A posição que eu defendo, e que o Rizzi defende, é esta, precisamente:
"(2) deny that the theory of relativity actually entails that there can be no such thing as absolute simultaneity."
Um ser imaterial dotado de poderes espantosos de medição, e partindo de um referencial em repouso face ao Universo, teria acesso à simultaneidade absoluta. Acho que a teoria da relatividade, devido à sua base empiriométrica, não está em condições de legitimar a tese ontológica de que não há eventos simultâneos.
Ou seja, de:
1. Não é possível a instrumentos de medição que são materiais e não estão em repouso face ao Universo fazerem medições de simultaneidade absoluta
Não podemos deduzir:
2. Não existem eventos absolutamente simultâneos no Universo
O que é exactamente o que está entre parêntesis no final da citação do referido artigo.
(continua)
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"A interpretação rival de Minkowski, a de Lorentz (defendida por William Lane Craig), presume a existência de simultaneidade e espaço absolutos, assumindo que o éter existe, que é o que está mais de acordo com o senso comum."
Não me recordo totalmente dos detalhes da tese do Craig. Sei que ele defende o Lorentz, e ele até aludiu aos testes no CERN, dizendo que a existência de fenómenos superluminosos legitimariam o Lorentz. Não sei comentar isso, mas julgo que os testes no CERN concluiram que as ditas partículas não viajaram acima da velocidade da luz. Não sei que impacto isso tem para a interpretação lorentziana.
O que sei é que o Rizzi postula um certo tipo de "éter" não material (não energético), e que por isso mesmo, é radicalmente distinto do éter newtoniano.
Está tudo no livro do Rizzi que está espetado à minha frente, mas admito-te que ainda o estou a estudar.
Dado que este tipo, ao contrário do Craig, é um físico de ponta a trabalhar no LIGO sobre as ondas gravíticas, dou-lhe mais credibilidade do que ao Craig, e todavia, acho curioso que eles digam coisas muito parecidas (julgo eu), dado que Craig é também um experiente filósofo do tempo.
Talvez isto ajude:
"In some ways, the non-mechanical ether we're discussing is parallel to what Einstein tried to do in his theory of relativity, where he wanted to impose boundary conditions so that no inertia would exist as a body moved far from all mass. His reasoning was that without bodies to reference to, inertia didn't have a cause".
Depois dizes:
"Mas, por outro lado, dizes que basta que "não se interprete o espaço-tempo de Minkowski como algo real, mas apenas como algo matematicamente útil", o que não é abonatório, lembrando que o sistema heliocêntrico também era apenas uma conveniência matemática."
Não sei se é um bom exemplo, dado que as previsões empiriométricas do modelo ptolemaico eram superiores aos do modelo copernicano. Recorda-te de que foi necessário durante uns tempos (até Kepler postular órbitas elípticas) acrescentar uns graus extra de liberdade (como os epiciclos e deferentes do modelo ptolemaico) ao modelo copernicano para este ter uma precisão decente. A beleza do modelo de Copérnico estava na sua simplicidade, e não na sua precisão. O modelo de ptolemaico era bastante "ad hoc", e pouco credível nos seus despropositados graus de liberdade, lá enfiados só para melhorar as previsões. Todavia, o modelo de Copérnico não foi adoptado por ser mais preciso, mas sim porque era mais elegante e mais simples que o ptolemaico.
Quer queiramos, quer não, a física moderna é cada vez mais testemunha do lema "sozein ta phainomena", da tentativa de "salvar os fenómenos" empíricos usando modelos cada vez mais sofisticados, modelos que superam os seus antecessores por terem maior âmbito de aplicação e maior elegância.
Acredito que estamos claramente a melhorar os nossos modelos da realidade física, e nesse sentido, estamos a descobrir cada vez com mais precisão essa mesma realidade física sob os seus aspectos quantitativos (e apenas sob esses aspectos, que são os que o método científico nos dá).
Mas continuamos na senda da matematização dos aspectos quantitativos da realidade, e por isso, temos que ter pudor na hora de tentar converter modelos matemáticos com excelentes capacidades preditivas numa espécie de "fotografia" da realidade.
Até porque os modelos estão cada vez mais abstractos, e mais longe das imagens sensoriais, o que nos dificulta nas nossas capacidades de imaginação.
(continua)
(continuação)
"Mudança não exige que seja em termos de séries A, exigindo que exista um apontador único e universal para indicar onde estamos no filme.
A teoria B é uma explicação do fluxo temporal: só é possível explicá-lo através de relações de eventos com antes, depois e ao mesmo tempo."
A teoria B, na verdade, destrói o fluxo temporal. Na teoria B, distâncias temporais são como distâncias espaciais. Dizer que eu estou 17 mais velho do que quando terminei a adolescência é análogo a dizer que vão 1,75 metros do meu couro cabeludo aos meus pés. Ora isso é um problema grave, porque destrói a assimetria que há entre o tempo e o espaço. O espaço é sempre espaço medido em qualquer direcção. O tempo é apenas medido de forma artificial, porque medir o tempo entre dois eventos 1 e 2 é um exercício mental sobre coisas que existem e coisas que já não existem, dado que quando o evento 2 existe, o evento 1 já não existe.
A assimetria do tempo impede que o tratemos como tratamos o espaço.
Se a teoria B estiver correcta, não há mudança. Ponto final. Comparar pontos diferentes do espaço/tempo não nos legitima a falar sobre mudança, mas apenas sobre distâncias espácio-temporais. Nada mudou. Nem sequer começamos a existir. Nem sequer deixamos de existir. Somos um bloco espácio/temporal, com fronteiras espácio-temporais.
"Podemos estabelecer relações entre posições. Se algo estava numa certa posição, ou estará noutra posição, então há movimento."
Mas de que vale falares em "movimento" se apenas estás a falar de distâncias espácio-temporais? O que é que mudou, numa teoria B? Nada muda. É tudo estático.
"Da mesma forma, mesmo que exista um bloco espacio-temporal, o progresso intelectual pode ser notado comparando o antes do depois, sem necessitar de pensar em que tempo estamos."
Quando digo que não há progresso intelectual quero dizer que cada um de nós, na teoria B, é um todo compacto e estático. Dizer que há mudança entre o antes e o depois de aprender faz tanto sentido como dizer que há mudança entre o dedo do pé e a orelha. Sim, podemos espremer a palavra "mudança" nesse sentido, mas não é a mesma coisa que algo mudar como sucede na teoria A, na qual a mudança é real.
"Em "coordenadas num eixo sempre existente" podemos comparar o antes do depois das posições e intelecto, existindo assim movimento e progresso intelectual, sem que que o passado, presente e futuro sejam fundamentalmente diferentes."
Não podes ter tudo! Sim, podes comparar. Mas até a pessoa que usasse o seu intelecto para fazer essa comparação nunca poderia dizer: "ah, agora compreendi que a pessoa B era um bloco espácio-temporal", porque isso implicaria uma mudança da pessoa, mudança essa que é irreal e ilusória na teoria B do tempo.
A teoria B do tempo também é insustentável porque vai contra a nossa própria experiência de mudança pessoal. Nós damo-nos conta de que há dois tipos de mudança:
a) acidental, quando mudamos mas permanecemos o que somos (quando envelhecemos, por exemplo)
b) substancial, quando começamos a existir ou deixamos de existir (por exemplo, quando surgimos pela fertilização, ou quando morremos); neste caso, falo claro, do nosso corpo, porque é possível entender que há uma parte de nós, o intelecto, que sendo imaterial é incorruptível, mas isso levava-nos oara outro tema
A teoria B também destrói o livre-arbítrio que nós experimentamos a toda a hora, e que tudo indica ser real.
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(continuação)
"Já agora: existindo um ser omnisciente, é necessário que pelo menos a teoria B possa ser instanciada mentalmente, para ser possível conhecer o futuro mesmo que que não tenha sido concretizado."
Não. Isso só seria verdade num ser perpétuo, um ser cuja duração temporal fosse infinita, mas que estivesse todavia no tempo. Ora o Deus que os cristãos defendem não é assim: é um Deus totalmente distinto do Universo, pelo que não é temporal nem espacial.
Um ser eterno, não no sentido de ser perpétuo, mas no sentido de estar "fora" das restrições temporais não sofre da tua objecção.
"Senão, não seria possível haver conhecimento do que o futuro nos reserva, logo a omnisciência seria impossível."
O futuro não está determinado nem decidido. No Universo há criaturas livres. Se não existissem criaturas livres, poderíamos dizer que o Universo seria todo determinista, e então o futuro estaria determinado e decidido. O futuro surge a toda a hora, como "presente", e nesse "presente" confluem dois tipos de causas secundárias: as decisões livres dos agentes, e os processos naturais (determinísticos ou estocásticos). Mas a suster isto tudo, no "agora", existe a causalidade primária de Deus, que garante que tudo se mantém em existência, e que isto tudo não desaparece no "nada".
Quando São Tomás diz que Deus é omnisciente, ele articula isso bem com a inexistência "agora" das coisas futuras:
"I answer that, Since as was shown above (Article 9), God knows all things; not only things actual but also things possible to Him and creature; and since some of these are future contingent to us, it follows that God knows future contingent things.
In evidence of this, we must consider that a contingent thing can be considered in two ways; first, in itself, in so far as it is now in act: and in this sense it is not considered as future, but as present; neither is it considered as contingent (as having reference) to one of two terms, but as determined to one; and on account of this it can be infallibly the object of certain knowledge, for instance to the sense of sight, as when I see that Socrates is sitting down. In another way a contingent thing can be considered as it is in its cause; and in this way it is considered as future, and as a contingent thing not yet determined to one; forasmuch as a contingent cause has relation to opposite things: and in this sense a contingent thing is not subject to any certain knowledge. Hence, whoever knows a contingent effect in its cause only, has merely a conjectural knowledge of it. Now God knows all contingent things not only as they are in their causes, but also as each one of them is actually in itself. And although contingent things become actual successively, nevertheless God knows contingent things not successively, as they are in their own being, as we do but simultaneously. The reason is because His knowledge is measured by eternity, as is also His being; and eternity being simultaneously whole comprises all time, as said above (Question 10, Article 2). Hence all things that are in time are present to God from eternity, not only because He has the types of things present within Him, as some say; but because His glance is carried from eternity over all things as they are in their presentiality. Hence it is manifest that contingent things are infallibly known by God, inasmuch as they are subject to the divine sight in their presentiality; yet they are future contingent things in relation to their own causes."
http://www.newadvent.org/summa/1014.htm#article13
Um abraço!
Bernardo,
Confesso que desconheço o trabalho de Anthony Rizzi, mas aquilo que me relatas contradiz directamente aquilo que aprendi.
Na verdade, Einstein não se referia a medições, acreditava numa teoria do tipo B e chegou à relatividade restrita por puro raciocínio. Não um raciocínio em relação à medição das coisas, mas sim um raciocínio em relação à natureza das coisas.
Aliás, deixa-me explicar melhor como é que ele chegou à ideia da relatividade restrita, para compreenderes o problema.
Se tu conheces as equações de Maxwell, saberás que a variação do campo magnético (derivada) corresponde a uma variação do campo eléctrico (derivada). Assim tens uma auto-indução que se propaga, e consequentemente tens luz.
Aquilo que Einstein imaginou é que se ele fosse um fotão ele veria o campo eléctrico sempre constante (porque a "frente de onda" deslocar-se-ia à sua velocidade, como um surfista que vê a onda parada no seu referencial). Mas se o campo eléctrico é constante, então não pode haver luz.
Ou bem que as leis de Maxwell só se aplicam a um referencial inercial (o referencial do éter), ou bem que o princípio da relatividade é verdadeiro. Mas para o princípio da relatividade ser verdadeiro, o tempo tem de estar parado no referencial do fotão - é a única maneira da frente de onda constante ser compatível com a existência de luz.
Este foi o exemplo extremo que Einstein idealizou inicialmente, mas a coisa é mais delicada: pelas leis de Maxwell tu deduzes a velocidade a que a luz se propaga. Mas resta a questão: a luz propaga-se a essa velocidade em que referencial?
Novamente, há duas possíveis respostas:
a) Existe um referencial privilegiado, e é a esse referencial que as equações se referem
b) As leis físicas são iguais em todos os referenciais inerciais (princípio da relatividade) o que implica que a velocidade da luz (que se deduz das equações de Maxwell) é igual em todos os referenciais.
Nota bem: segundo este modelo, ela não "mede" o mesmo em todos os referenciais. Ela "É" o mesmo em todos os referenciais.
Einstein criou a relatividade restrita escolhendo a hipótese b).
Ora acontece que uma velocidade ser a mesma em todos os referenciais tem implicações impressionantes.
Imagina que eu estou em repouso e vejo-te a andar a uma velocidade 100km/h atrás de um carro a 110km.
Em rota de colisão com esse carro, está outro a 50km.
No teu referencial, a tua velocidade é nula, existe um carro a aproximar-se a 150km/h (100+50), e um carro a afastar-se a 10km/h (110-100).
Agora imagina que são fotões, e estão ambos a andar a c no meu referencial.
No teu referencial, a tua velocidade é nula, um fotão está a aproximar-se a c+100km/h e outro a afastar-se a c-100km/h. Só que não. Ambos os fotões estão a mover-se a c, porque os fotões movem-se SEMPRE a c. Mas para ser compatível que os fotões se movam a c em ambos os referenciais, o espaço e o tempo têm de depender do referencial. Há uma compressão/dilatação real.
Claro que podes acreditar que isto é falso, e que o tempo "verdadeiro" é o de um determinado referencial. Mas isso é o contrário da teoria da relatividade restrita.
Quando falaste na medição do tempo assumir um referencial, isso é pouco impressionante, porque se refere a uma mera convenção.
Por exemplo: mesmo com a relatividade de Galileu é normal falar em posições e velocidades sem precisar qual é o referencial em causa, pois geralmente existe uma convenção que se subentende. Se eu disser que estás parado é evidente que não estás parado em relação ao Sol, mas sim em relação ao chão do local onde te encontras.
Aquilo que aprendi (com contas e tudo, e fui avaliado por elas) é que a cronologia dos eventos depende do referencial. Daqui eu concluiria que só uma teoria do tipo B é compatível com a relatividade restrita. Ganho confiança adicional quando compreendo que Einstein tinha ele próprio uma teoria do tipo B e chegou a fazer considerações sobre os aspectos meta-físicos que alegaste serem consequências de uma teoria do tipo B.
"Quando falaste na medição do tempo assumir um referencial, isso é pouco impressionante, porque se refere a uma mera convenção."
Refiro-me ao que disseste sobre a idade da terra.
João Vasco,
"Na verdade, Einstein não se referia a medições, acreditava numa teoria do tipo B e chegou à relatividade restrita por puro raciocínio. Não um raciocínio em relação à medição das coisas, mas sim um raciocínio em relação à natureza das coisas."
Que ele acreditava nisso, não duvido. Que ele possa deduzir DIRECTAMENTE a realidade das coisas de uma importante teoria baseada na medição das coisas vai um salto grande.
"Se tu conheces as equações de Maxwell, saberás que a variação do campo magnético (derivada) corresponde a uma variação do campo eléctrico (derivada). Assim tens uma auto-indução que se propaga, e consequentemente tens luz."
Não nego a conclusão, mas volto a frisar que são duas coisas distintas: uma delas é o que os dados empíricos nos dizem, e a outra é a tentativa de deduzir deles como será a realidade física. E às vezes acertamos, e às vezes erramos. Quando chocamos com paradoxos, estamos errados.
"Ou bem que as leis de Maxwell só se aplicam a um referencial inercial (o referencial do éter), ou bem que o princípio da relatividade é verdadeiro. Mas para o princípio da relatividade ser verdadeiro, o tempo tem de estar parado no referencial do fotão - é a única maneira da frente de onda constante ser compatível com a existência de luz."
Porque é que tens que dar o salto ontológico de dizer que "o tempo está parado" (expressão problemática em termos ontológicos) se seria suficiente afirmares que a dilatação do tempo é quantitativamente infinita no referencial do fotão?
Parece-te a mesma coisa mas não é!
"Novamente, há duas possíveis respostas:
a) Existe um referencial privilegiado, e é a esse referencial que as equações se referem
b) As leis físicas são iguais em todos os referenciais inerciais (princípio da relatividade) o que implica que a velocidade da luz (que se deduz das equações de Maxwell) é igual em todos os referenciais."
Claramente, a velocidade da luz é a mesma em todos os referenciais. À luz do que sabemos hoje, acho o mais razoável.
"Nota bem: segundo este modelo, ela não "mede" o mesmo em todos os referenciais. Ela "É" o mesmo em todos os referenciais."
Mas como é que aferes a velocidade se não for através de medições que envolvam coisas materiais? Varas para medir o espaço? Relógios para medir o tempo?
"Einstein criou a relatividade restrita escolhendo a hipótese b)."
E fez bem. Ele só errou ao achar que o espaço-tempo era algo de real, e não apenas um modelo matemático muito eficiente nas suas predições dos movimentos dos corpos.
"Ambos os fotões estão a mover-se a c, porque os fotões movem-se SEMPRE a c. Mas para ser compatível que os fotões se movam a c em ambos os referenciais, o espaço e o tempo têm de depender do referencial. Há uma compressão/dilatação real."
Mas claro que há uma compressão/dilatação real!
Ela já foi medida e validada experimentalmente. Se calhar, eu não me estou a explicar bem.
(continua)
(continuação)
"Claro que podes acreditar que isto é falso, e que o tempo "verdadeiro" é o de um determinado referencial. Mas isso é o contrário da teoria da relatividade restrita."
Não. Não acho que tudo isso é falso. O que me parece é que toda a nossa discussão de tempo se baseia numa confusão acerca do que é o tempo, que o tempo correctamente deve ser entendido como algo relacionado com a mudança na matéria, nas coisas materiais, e que corpos em movimento vão sempre, necessariamente, afectar o tempo e o espaço, porque ao contrário de Newton, conceitos como tempo e espaço dependem da matéria. A matéria é mais absoluta do que o tempo e o espaço. O que eu tentei não foi, nem por sombras, negar este carácter dependente do tempo e do espaço face à matéria (eu escrevi isso atrás). O que eu tentei foi explicar, e admito que mal, que isso não te leva a postular contradições temporais ou a admitir a validade da teoria B do tempo. É possível defender uma teoria A do tempo, e manter intacta a relatividade. O Rizzi faz isso, e creio que ele compreende a física melhor do que eu (certamente), e provavelmente melhor do que tu.
"Quando falaste na medição do tempo assumir um referencial, isso é pouco impressionante, porque se refere a uma mera convenção."
Sim, no sentido em que qualquer outro referencial seria válido, e geraria as mesmas previsões. Não, no sentido filosófico ou ontológico, porque evidentemente, quando temos que responder à pergunta ontológica "Qual a idade do Universo?", aí o referencial já importa.
"Aquilo que aprendi (com contas e tudo, e fui avaliado por elas) é que a cronologia dos eventos depende do referencial."
Certo. Eu escrevi isso ali atrás.
"Daqui eu concluiria que só uma teoria do tipo B é compatível com a relatividade restrita."
Mas como? Não explicaste como. Como é que a relatividade restrita te permite dizer que o passado ainda existe, ou que o futuro já existe?
"Ganho confiança adicional quando compreendo que Einstein tinha ele próprio uma teoria do tipo B e chegou a fazer considerações sobre os aspectos meta-físicos que alegaste serem consequências de uma teoria do tipo B."
Defendo que Einstein estava cientificamente correcto, mas filosoficamente errado. O passado já não existe, e o futuro ainda não existe. E haverá certamente forma de compatibilizar isto com os dados científicos. E há cada vez mais físicos a dizer o mesmo. O Rizzi é apenas um dele, mas certamente não o único.
Um abraço!
PS: Fazias-me um grande favor se lesses algum livro de um físico que defenda a teoria A, e depois me desses a tua opinião.
Deixa-me terminar claro como a água:
1. Eu defendo que a dilatação temporal e a compressão espacial são fenómenos reais, e negá-lo seria tolo à luz dos resultados experimentais
2. Todavia, não vejo como é que isso permite deduzir que a teroria A está errada e a teoria B está certa, sem ser artificialmente admitindo que a relatividade do movimento (e da medição do tempo e do espaço) impõe abolir um "agora" como sendo o somatório total de todas as coisas que existem agora
É só isso que o partidário da teoria A pretende: pretende que tomemos como facto que o presente é a soma total das coisas que presentemente existem, MESMO que, à luz da relatividade restrita, seja manifestamente impossível a um ser humano medir a simultaneidade de eventos.
Algo de parecido se passa com o mundo quântico. O facto de que eu não posso medir certas grandezas quantitativas de forma determinística não me permite deduzir que os processos que essas grandezas medem não estão a decorrer deterministicamente. Se calhar estão, se calhar não estão.
É "non sequitur" deduzir o indeterminismo ôntico (da realidade) a partir do indeterminismo epistémico (das medições do real).
De modo análogo, é "non sequitur" deduzir a inexistência do presente a partir da nossa incapacidade de medir de forma rigorosa a simultaneidade de eventos.
«Mas como? Não explicaste como. Como é que a relatividade restrita te permite dizer que o passado ainda existe, ou que o futuro já existe?»
Da seguinte maneira: aquilo que é passado no meu referencial é futuro num outro.
Isso implica que esse futuro (no outro referencial) já existe (no meu referencial).
Mas também não vale a pena estar a insistir neste ponto. Era só um aspecto lateral do teu argumento, uma pequena nota. Insisti porque contradizia aquilo que aprendi. Mas a verdade é que não conheço esse autor que referes, e pode ser que aquilo que aprendi esteja errado de alguma maneira. De qualquer forma, qualquer leitor já sabe que essa nota é "polémica".
Um vídeo didáctico que explica aquilo a que me refiro:
http://www.youtube.com/watch?v=ajhFNcUTJI0&feature=share&list=PLED25F943F8D6081C
"Da seguinte maneira: aquilo que é passado no meu referencial é futuro num outro.
Isso implica que esse futuro (no outro referencial) já existe (no meu referencial)."
Não me parece. Se viajas numa nave espacial a 90% da velocidade da luz, por exemplo, o tempo passa mais devagar do que na Terra, por exemplo.
O que isso quer dizer não é que o futuro da Terra já está "no teu presente", mas algo de diferente.
Supõe que há uma régua imaginária a medir a passagem do tempo na Terra, e outra a medir a passagem do tempo na tua nave espacial. A relatividade restrita diz-te que as réguas têm escalas diferentes (a régua na tua nave está alongada, indicando que o tempo está dilatado face ao tempo terrestre). Mas para cada ponto da tua régua há um ponto correspondente na Terra. O que se passa é que a "distância temporal" entre, por exemplo, algo separado por um século na Terra, corresponde a uma muito menor "distância temporal" na tua nave. O futuro da Terra não é antecipado na tua nave. O teu tempo é que passou mais depressa.
Volto a insistir nisto, que é algo que me custa a explicar, mas me parece fundamentalmente certo: a experiência de dilatação temporal e compressão espacial é real, mas não implica, de forma nenhuma, antecipar o futuro (ou viajar ao passado, no caso da relatividade geral). Tais viagens no tempo são coisas absurdas, que geram paradoxos. E quando temos um paradoxo, é porque há erros na interpretação filosófica dos dados empíricos.
Sobretudo, temos a nossa consciência, que nos mostra cabalmente que só o presente existe, e que realmente mudamos enquanto pensamos. Pelo que a mudança é real, vivemo-la. E por isso, a teoria B só pode ser mantida violentando essa experiência pessoal. Se calhar, isso poderia ser conciliado: supondo uma consciência "fora" do Universo, e admitindo o Universo "bloco" da teoria B. Mas esse é um caminho que tu não quererás seguir, certamente... ;)
Um abraço!
" O teu tempo é que passou mais depressa.""
Asneira, queria dizer que o teu tempo é que passou mais devagar...
Claramente, está na hora de ir dormir! ;)
Eheh!
Um abraço e obrigado pelo estimulante debate.
Bernardo,
Se a nave mede 2m em repouso, e a nave começa a viajar a 0.9c, a régua vai medir os mesmos 2m.
O espaço da nave contrai, mas nenhuma régua desse referencial vai detectar a contracção porque ela será igualmente afectada.
E o mesmo acontece com os relógios. É o contrário: a dilatação/contracção ocorre apesar de não poder ser medida internamente.
Mas eu nem estava a falar na dilatação temporal interna a esse referencial. Estava a falar no facto da cronologia dos eventos mudar com o referencial - como se vê no vídeo didáctico que te mostrei, quando as linhas de tempo ganham uma inclinação com a velocidade, e aquilo que é "simultâneo" passa a depender desta inclinação.
Isto não é uma interpretação minha da teoria. O facto da cronologia dos eventos mudar com o referencial é das consequências mais desconcertantes (do ponto de vista filosófico) da teoria da relatividade restrita, e é bastante comentada.
João Vasco,
"Se a nave mede 2m em repouso, e a nave começa a viajar a 0.9c, a régua vai medir os mesmos 2m."
Onde é que eu disse o contrário?
"O espaço da nave contrai, mas nenhuma régua desse referencial vai detectar a contracção porque ela será igualmente afectada."
Exacto.
"E o mesmo acontece com os relógios. É o contrário: a dilatação/contracção ocorre apesar de não poder ser medida internamente."
Exacto. E eu não disse o contrário.
Às vezes fico com a impressão de que estás já convencido à partida de que eu não entendo a relatividade einsteiniana. E é verdade que eu a entendo de forma superficial. Também tive cadeiras de Física no IST. Quatro cadeiras, mais concretamente. Também tive exames sobre relatividade einsteiniana. Mas isso não se compara ao que um aluno de Física estuda. E seja como for, os meus exames de física ocorreram há 15 anos.
Todavia, e apesar da minha exposição eventualmente trapalhona, derivada de um pensamento em maturação, a tua posição (como tu mesmo admites) contém paradoxos. Sentes que a teoria A é a certa, e que a teoria B tem problemas, e todavia, estás convicto de que a relatividade einsteiniana OBRIGA à verdade da teoria B. E dás como razão que Einstein achava isso. Mas pode dar-se o caso de Einstein estar cientificamente certo (no sentido em que nos deixou uma esplêndida teoria empiriométrica) mas filosoficamente errado (no sentido de ele ter considerado verdadeira a teoria B).
"Mas eu nem estava a falar na dilatação temporal interna a esse referencial. Estava a falar no facto da cronologia dos eventos mudar com o referencial - como se vê no vídeo didáctico que te mostrei, quando as linhas de tempo ganham uma inclinação com a velocidade, e aquilo que é "simultâneo" passa a depender desta inclinação."
Certo. Essas linhas representam a ideia que eu tentei passar-te no meu último comentário de ontem: que para cada ponto no referencial A há um ponto correspondente no referencial B, e que apesar de tudo isto depender da velocidade relativa de um referencial face ao outro, isso não permite dizer que o futuro já existe ou que o passado ainda existe.
"Isto não é uma interpretação minha da teoria."
Quando, a partir dos factos inegáveis da relatividade restrita, pretendes que, de alguma forma, eventos passados num referencial estão ainda acessíveis noutro referencial, isso é um salto abusivo. O que é passado já não existe. Se um evento no referencial A é um evento passado, esse evento está inacessível no referencial A e em qualquer referencial.
E tu irás retorquir: mas "presente", "passado" e "futuro" são coisas que dependem de um referencial absoluto! Errado. A medição rigorosa de um tempo absoluto é que dependeria de um referencial absoluto. Supõe que esse referencial não existe. Se calhar não existe! É sempre possível idealizar o "presente" como a soma total das coisas em existência em todos os referenciais, MESMO que não sejamos capazes de sincronizar o instante de tempo do "presente" de todos os referenciais. Qualquer que seja o nosso referencial, é sempre mais lógico supor que os eventos passados desapareceram, e os eventos futuros ainda não existem. O facto de os referenciais estarem em movimento relativo não vai alterar esse facto elementar da realidade, que é o fluxo temporal da teoria A.
(continua)
(continuação)
"O facto da cronologia dos eventos mudar com o referencial é das consequências mais desconcertantes (do ponto de vista filosófico) da teoria da relatividade restrita, e é bastante comentada."
É, certamente, desconcertante. Mas isso acontece por várias razões, e elas são más, e temos que nos libertar delas:
a) temos que atirar borda fora o conceito newtoniano de tempo absoluto desligado da matéria, porque caso não houvesse nenhuma matéria, não haveria tempo; é daqui que vem a nossa intuição errada de que a incapacidade de medir o tempo absolutamente implica a abandonar a teoria A
b) tempos que atirar borda fora o conceito newtoniano de espaço absoluto desligado da matéria, porque caso não houvesse nenhuma matéria, não haveria espaço
c) temos que ter imenso cuidado para não transformar teorias matemáticas, por muito precisas que sejam, em afirmações rigorosamente ontológicas
Não é que a física não esteja a caminhar no sentido de nos dar um bom retrato da realidade. Claro que está. É que, à medida que o retrato é cada vez mais matemático e mais abstracto, temos que ter ainda mais cuidado para evitar leituras ontológicas que as teorias matemáticas não forçam.
Um abraço
PS: Gostava de regressar ao ponto de partida, se me permites, porque me parece que seria bom tu agora explicares como lidas com os paradoxos temporais da tua interpretação da relatividade, e como é que justificarias a teoria B. Não consideras que a existência de paradoxos é um convite a repensar, não a teoria da relatividade na sua estrutura matemática, mas sim a repensar a interpretação filosófica da dita?
Olá Bernardo!
Os ateus como o Ludwig Krippahl podem espernear e espumar pela boca à vontade, mas a tua argumentação a favor da existência de Deus parece-me filosoficamente irrefutável e cientificamente irrepreensível.
Já agora, o que achas da prova ontológica de Kurt Gödel?
Cumprimentos.
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