sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Factos e símbolos no Génesis

Inseri há pouco este comentário, em resposta a este texto da Leonor Abrantes: Literalismo e interpretação.

Leonor,

Muito agradeço este teu texto, que me deixou muito contente. Por uma principal razão: consegui, felizmente, passar o ponto de vista que queria passar: que uma leitura do Génesis 100% simbólica, que tratasse tudo aquilo como “não factual”, é um contrasenso para um católico.

Usando a lógica (excluindo a possibilidade absurda de que não há narrativas, nem simbólicas nem factuais, no Génesis), temos estas possibilidades:

a) o Génesis tem apenas uma leitura simbólica: nada daquilo aconteceu

b) o Génesis tem apenas uma leitura literal: tudo aquilo aconteceu COMO DESCRITO

c) o Génesis tem, pelo menos, duas camadas de leitura: uma narrativa de factos e uma narrativa de símbolos: os factos são coisas que aconteceram, os símbolos são meios de expressar de forma mais fácil e compreensível as ditas coisas que aconteceram

A posição a) é típica de alguns exegetas modernos que, assustados (sem razão) com a Ciência, julgam que salvam o cristianismo do escárnio dos seus adversários deitando fora o bebé com a água do banho, ou seja, deitando fora todo e qualquer conteúdo factual do Génesis. Isso é tolo, e é mandar às malvas 2.000 anos de tradição de exegese.

A posição b) é típica de várias (mas não todas) correntes protestantes. Tais correntes, quando defendem a factualidade do Génesis, colocam o relato bíblico acima da Ciência, e em caso de conflito, rejeitam a Ciência para ficarem com a descrição literal dos acontecimentos. Como se vê facilmente com algum estudo, raras autoridades católicas em matéria de doutrina e de exegese defenderam esta posição. Tão cedo como com Santo Agostinho temos a separação entre a narrativa factual e a narrativa simbólica (“De Genesi ad Litteram”). Por exemplo: Santo Agostinho não aceitava que os seis dias da Criação tivessem durado 24 horas cada.

A posição c) é a que reúne o consenso de todas as grandes figuras da tradição católica e é a que é defendida pelo Magistério. A narrativa dos factos é imperiosa, pois ela estabelece de forma firme o sustentáculo da teologia posterior, tanto da teologia judaica, como (e sobretudo) da teologia cristã. A narrativa dos símbolos não deixa de ter a sua importância e a sua utilidade. Eu costumo dar este exemplo: se um “pele vermelha” vê um comboio na planície e volta a correr para a sua aldeia, afirmando ter avistado um “cavalo de ferro” na planície, temos as duas narrativas: o símbolo do “cavalo de ferro” reflecte a linguagem que a testemunha usa e conhece, mas existe a factualidade: um comboio passou mesmo na planície, e ele avistou-o.

Como resolver o imbróglio da leitura correcta do Génesis?
Aprendendo com o passado: respeitando a Tradição e ao mesmo tempo respeitando da Ciência. Na Idade Média, o escolástico Sigério de Brabante propunha uma separação radical (era mesmo uma separação epistémica) de domínios do saber: havia as verdades da Fé, e havia as verdades de Filosofia (científicas). Segundo Sigério, quando dois postulados, um teológico e outro filosófico, se pronunciavam sobre determinado objecto, poderia haver contradição entre os dois postulados. Esta ideia, com razão, arrepiou o grande São Tomás, que disse que a verdade era una, e que a presença de contradição, mesmo entre teses de áreas distintas, era prova de erro.

A Igreja sempre procurou seguir esta via de conciliação: não distorcer a doutrina legada por Cristo, a mesma doutrina defendida pela tradição da Patrística, e pelo Magistério, e ao mesmo tempo, respeitar TODAS as verdades do conhecimento humano, ou seja, as verdades filosóficas e científicas. Mas a conciliação não se faz, nunca, à custa da verdade. Onde há contradição, há erro.

Contra quem diz que a leitura católica do Génesis esbarra com a ciência actual, eu pergunto: ONDE?? Quem o afirma, ou desconhece a leitura católica do Génesis, ou desconhece a ciência actual, ou desconhece ambas.

Não sou eu quem decide estas coisas, pelo que o que aqui está escrito não é a opinião do Bernardo Motta, mas sim a posição da Igreja.

Em relação ao Génesis, para se ter uma prova cabal daquilo que eu afirmo, de que o Magistério defende uma leitura factual (mas não necessariamente literal) do Génesis, nada como ler este trecho esclarecedor da encíclica Humani Generis, do Papa Pio XII:

«37. Mas, tratando-se de outra hipótese, isto é, a do poligenismo, os filhos da Igreja não gozam da mesma liberdade, pois os fiéis cristãos não podem abraçar a teoria de que depois de Adão tenha havido na terra verdadeiros homens não procedentes do mesmo protoparente por geração natural, ou, ainda, que Adão signifique o conjunto dos primeiros pais; já que não se vê claro de que modo tal afirmação pode harmonizar-se com o que as fontes da verdade revelada e os documentos do magistério da Igreja ensinam acerca do pecado original, que procede do pecado verdadeiramente cometido por um só Adão e que, transmitindo-se a todos os homens pela geração, é próprio de cada um deles.(11)»

Vale a pena ler a encíclica toda, mas quis destacar este parágrafo, por ser ilustrativo daquilo que acabei de escrever. De forma clara, Pio XII, com toda a sua autoridade papal, declara que o católico não pode deixar de aceitar a verdade de um primeiro casal humano, para salvaguardar a doutrina católica da Queda. Se isto não é um exemplo claro de leitura factual do Génesis…

Mas em toda esta encíclica, escrita com imenso cuidado (Pio XII era um ávido leitor de literatura científica), o Papa evita pronunciar-se sobre teses científicas, e em parte alguma, ele afirma algo hoje provado cientificamente como errado.

Tenho todo o respeito pelo Padre Carreira das Neves, e pela sua vida inteira de estudo bíblico. Mas reconheço, como se entende, mais autoridade doutrinal a um Papa.

Qualquer estudioso das questões científicas em torno do surgimento da vida, e dos problemas relativos ao surgimento da vida humana, sabe ver que o texto de Pio XII, nesta encíclica, é um texto muito cuidadoso. A Igreja Católica, em momento algum, condenou doutrinalmente o evolucionismo científico. Certamente, também pairou, na Cúria, o “fantasma Galileu”, pois o caso Galileu (que hoje quase ninguém ainda compreende, mas todos julgam compreender) é o único exemplo real, e com consequências graves, de fricção epistemológica entre a doutrina católica e a Ciência.

Mas se, nem no caso Galileu, o Magistério condenou formalmente o copernicanismo como herético, e nesse Caso, a Igreja arriscou demasiado (nomeadamente, uma comissão teológica incompetente emitiu um fatal e precipitado juízo teológico em 1616, mas sem valor de condenação formal), na questão da Evolução, a Igreja foi muitíssimo mais cuidadosa. Em momento algum, a Igreja se pronunciou contra verdades científicas estabelecidas (nem nunca o fará, se Deus quiser).

9 comentários:

maria disse...

Bernardo,

está a fazer o mesmo que aqueles que critica (segundo a sua visão deste assunto) a desvalorizar os símbolos. Não sei como consegue essa proeza.

Olhe que os símbolos (signos) têm uma importância enorme na nossa doutrina católica: a água, o pão, o vinho, os óleos...e tantos outros para os quais deixámos de prestar atenção. Porque a ditadura do factual e do vísivel foi atrofiando as nossas capacidades de ver para além dos cinco sentidos.

Quem apela para o simbólico das narrativas do Génesis, não é para lhes reduzir a importância e o valor das mesmas. Ninguém sugere que se elimine esse livro da biblioteca que é a Bíblia. Mas a Bíblia é para ser lida como um todo. Fazendo por conhecer os diferentes estilos em que foi escrita. Não por nenhuma vontade obscura, mas para tirar o possível de proveito da sua leitura.

E o Bernardo não se ponha para aqui a simplificar o que é complexo porque da leitura da Bíblia, o Magistério já cometeu imensos erros e atropelos. Acha que se chegou ao apuramento final nos nossos tempos? Depois de nós não há nada a descobrir? que ingenuidade!

Abraço

NCB disse...

Cara Maria,

No seu comentário afirmou que "da leitura da Bíblia, o Magistério já cometeu imensos erros e atropelos."

Agradecia-lhe muito se pudesse indicar as fontes para tal afirmação, se não se importar!

Muito obrigado,
NCB

maria disse...

As fontes...quais fontes? não conhece nada da História Universal nem da História da Igreja? Não vê o que se passa à sua volta?

Que sentido dá ao pedido de perdão pelos erros da Igreja do Papa João Paulo II?

O Sousa da Ponte - João Melo de Sousa disse...

Há uma coisa que eu não percebi bem.

A base do cristianismo é o pecado original, da desobediência à vontade de Deus por uma homem (Adão) instigado pela mulher sendo o autor moral o diabo. Esta desobediência torna-se hereditária e vai passando de geração em geração.
Para remediar esta situação Deus faz-se homem, morre e ressuscita.

A morte e ressurreição de Deus redime a humanidade do pecado dos avoengos e tudo acaba bem.

Os evangélicos dizem claramente que não pode ter havido evolução porque a história foi tal e qual está relatado na bíblia.

Os católicos dizem que não que os relatos do VT não são narrativas de factos.

Assim Adão e Eva são fábulas.

Como ficamos de pecado original ?

Honestamente isto a mim faz-me alguma confusão.

A explicação dos evangélicos não parece mais simples e lógica?

maria disse...

A base do cristianismo não é o pecado original. É Jesus Cristo. Antes da questão do pecado original põe-se a questão: "Deus".

Para um católico ou cristão, para um crente, em suma a questão primeira é "em que Deus creio?" Esse acto de fé pessoal está cheio de referências: bíblicas, eclesiais, culturais etc. Todas elas são elementos referenciais mas nenhuma suprime o "salto no escuro" que é a adesão pessoal.

Um Deus que necessita de reparação da parte do homem infiel é uma das imagens apresentadas no AT. Erradamente considerada: não é a unica. Assim como também não o é de todo na revelação de Deus através de Jesus.

Não esquecer que quando falamos de Deus estamos a falar do Transcendente. Deus não é um prolongamento da nossa razão.

Já não faz sentido nenhum estarmos a falar de Adão e Eva como um primeiro par humano. O Bernardo que invoca sempre a Igreja e o magistério como soberanos nestas coisas, ainda não reparou que até numa catequese a criancinhas já ninguém ousa falar de Adão e Eva como ele refere neste texto. Ele e outras pessoas continuam a fazê-lo. Bom, está no seu direito. Não diga é que é assim que a Igreja se exprime.

O Bernardo, como todos nós, escolhe um lado, e fica a fazer o exercício de que esse lado é o todo. Não é. As caixas de comentários do Bernardo exemplificam bem isso. Mas cada um vive com a ilusões que lhe convêm.

Assim como dizer "a explicação dos evangélicos"...é a mesma coisa. Nos evangélicos existem muitas correntes. A exegese bíblica é uma disciplina tanto investigada por católicos como por evangélicos. Sendo que o grupo protestante até nos leva vantagens, começaram mais cedo e talvez com maior liberdade.

Sobre a questão "Deus" tenho uma entrevista a um teólogo e um excerto de um artigo num comentário à mesma, no meu blogue, que são pistas interessantes de aprofundamento deste tema.

maria disse...

nem de propósito:

um extenso mas interessante artigo dum evangélico que comenta Darwin e Agostinho de Hipona.

http://wwwcristianismolibertas.blogspot.com/2010/09/origem-e-evolucao-das-especies-segundo.html

Espectadores disse...

Cara Maria,

O seu comentário deixou-me perplexo. Em que parte é que eu menosprezei os símbolos? O cristianismo é feito de equilíbrios delicados. Entre factualidade e simbolismo, entre utopia e realidade, entre intelecto e acção, entre razão e coração. Desequilibra-se a coisa, e estraga-se tudo. Quando eu quis vincar a factualidade do Génesis, não o fiz para minorar o simbolismo rico e valioso do Génesis, mas sim para procurar defender um certo equilíbrio. Quem ataca a factualidade do Génesis ameaça esse equilíbrio.

Depois, erra ao achar que eu defendo que atingimos o conhecimento perfeito das coisas divinas. Isso seria tolice. Como também é tolice deitar fora as certezas que fomos amealhando. O ensinamento infalível do magistério é um conjunto vasto de certezas, obtidas pela graça de Deus e não pelos nossos méritos. Essas certezas são poucas, mas valiosas. E nunca esgotam o infinito que é Deus. Temos muito para aprender.

Arrogantes são aqueles que, de tanto estudar a Bíblia, pretendem que a compreendem melhor do que a Tradição duas vezes milenar da Igreja.

Um abraço e obrigado pela visita e comentários!

Espectadores disse...

Caro Sousa da Ponte,

Olá!

«A base do cristianismo é o pecado original, da desobediência à vontade de Deus por uma homem (Adão) instigado pela mulher sendo o autor moral o diabo.»

Sim, se falar de base cronológica. Segundo os cristãos, foi assim que começou a saga humana. De um outro ponto de vista, o que a Maria referiu, a base existencial do cristão é Cristo. Evidentemente, ambas as afirmações estão correctas para um cristão.

O centro da minha vida é (deve ser) Cristo, mas eu sei que Cristo incarnou para nos redimir do Pecado Original e para nos levar de volta ao Pai.

«Esta desobediência torna-se hereditária e vai passando de geração em geração.»

Exacto.

«Para remediar esta situação Deus faz-se homem, morre e ressuscita.»

Exacto. Adão e Eva "morrem" para Deus, pois separam-se d'Ele. Cristo ressuscita para nos levar de novo à vida do Pai.

«A morte e ressurreição de Deus redime a humanidade do pecado dos avoengos e tudo acaba bem.»

Redime apenas os que seguem a via de Cristo. Cristo vem apelar à conversão. A morte e ressurreição de Cristo não dão a ninguém a salvação "ipso facto". Primeiro, todas as pessoas têm que fazer uma conversão pessoal, para serem salvas. Cristo abre o Caminho, mas cabe a cada um optar, livremente, por escolher esse caminho. Como a opção de pecar Adão foi livre, também a opção do convertido em se converter tem que ser livre.

«Os evangélicos dizem claramente que não pode ter havido evolução porque a história foi tal e qual está relatado na bíblia.»

Sim, eles pretendem que, não só o FACTO do Pecado Original é real como também a DESCRIÇÃO literal do cometer desse pecado.

«Os católicos dizem que não que os relatos do VT não são narrativas de factos.»

Não é bem assim: como digo no meu texto, os católicos aceitam a factualidade do relato do Pecado Original. O que os católicos não aceitam é a necessidade de uma leitura literal das descrições dos factos, sobretudo se essa leitura literal vai colidir com verdades obtidas por outra via (científica, por exemplo).

«Assim Adão e Eva são fábulas.»

Nenhum cristão pode dizer que Adão e Eva são fábulas. Todo o cristão deve dizer que descende de Adão e Eva. Descende literalmente.

«Como ficamos de pecado original ?»

Se não descendemos literalmente de Adão e de Eva, o Pecado Original fica em apuros.

«Honestamente isto a mim faz-me alguma confusão.»

É natural! A quem não faz?

«A explicação dos evangélicos não parece mais simples e lógica?»

Sim, é simples e é lógica. Mas será a verdadeira? Todo o católico coerente, ao mesmo tempo que diz que descende de Adão e de Eva, mantém a convicção acerca do Pecado Original, e respeita a Ciência.

A Ciência não demonstrou que é impossível o homem descender biologicamente de um só casal.

Segundo o neodarwinismo (junção do darwinismo com o mendelianismo), uma espécie nova surge por via de cruzamentos e de mutações. O ser humano teria, então, surgido por essa via. E a sua descendência teria dado origem a todos nós. Essa tese é a do monogenismo (um casal que nos gera a todos). A tese oposta é a do poligenismo (vários hominídeos teriam sido mutados para uma espécie nova, a humana). A ciência evolucionista ainda não provou qual é a certa.

Veja ainda os comentários que publiquei há pouco no Portal Ateu:

http://www.portalateu.com/2010/09/01/literalismo-e-interpretacao

Um abraço e obrigado pela visita!

O Sousa da Ponte - João Melo de Sousa disse...

Francamente o que noto é uma diferença qualitativa entre os católicos e as outras confissões cristãs.

Esta explicação, concorde-se ou não, é bem fundamentada e inteligivel.

Entendi perfeitamente.

Os evangélicos (mats, sabino e outros ctj) parecem-me muito fraquinhos em termos argumentativos.

E não o mais pequeno problema em publicar textos truncados ou descontextualizados.

Enfim... aldrabam quanto podem.

Um abraço, desde Angola