quinta-feira, 29 de março de 2007

Ludwig e os "mafaguinhos"

O meu caríssimo Ludwig brindou-me, recentemente, com um texto que, não sendo inteiramente dedicado à minha pessoa, começa, não obstante, com uma citação a uma frase minha, o que muito me apraz.
[Importa dizer, logo à partida, que não há uma só grama de ironia ou de sarcasmo nestas minhas palavras. Tenho a certeza de que as pequenas provocações do Ludwig não são gratuitas ou estéreis, e que constituem apenas a capa estilista usada por ele para fazer passar um raciocínio que suponho sério.]

«O Bernardo Motta apontou que «em grego, "pistis" (fé) é um termo bem diferente de "gnosis" (conhecimento).» Em Português também. Feliz coincidência. Assim não precisamos continuar a conversa em Grego.»

Para quem não leu o meu comentário que deu origem a esta nota de Ludwig, importa repetir o trecho em questão, para que se perceba que não estava em jogo qualquer tipo de elitismo linguístico oco e inconsequente. Até porque este vosso miserável escriba não sabe ler grego, e muito menos escrever ou falar em grego. O meu elementar conhecimento de uma mão cheia de palavras em grego não chega, evidentemente, para que me possa apresentar como fluente na língua helénica, nem era essa a ideia.

Vejamos o meu trecho em questão:
«Urge distinguir entre a crença sem conhecimento e a crença com conhecimento. Em grego, "pistis" (fé) é um termo bem diferente de "gnosis" (conhecimento). No entanto, elas podem coexistir no intelecto de um crente conhecedor. No meu percurso pessoal, a adesão pística foi essencial para o conhecimento que dela adveio.»

Note-se como a palavra “crença” surge duas vezes, juntamente com a expressão “percurso pessoal”. Isto de nada vale para quem não me conhece (não que haja grande relevância em conhecer-me!), mas há que sublinhar que o trecho acima repetido era apenas um mero comentário dirigido a uma pessoa em concreto, Ludwig, que sabe bem que os termos “crença” e “percurso pessoal”, se escritos por mim, referem-se ao meu percurso de crente cristão.

Nesse contexto, que importa conhecer para se entender porque razão a fiz, a alusão ao grego é essencial, porque provém do facto de que essa língua é a base da formalização do pensamento cristão. Apesar de o latim ser a língua oficial da Igreja Católica, não há como negar que, na génese do cristianismo, a língua de eleição foi o grego, e nela foi vertida uma míriade de textos patrísticos de valor intelectual inestimável, e muitas vezes totalmente desconhecidos. Por exemplo, é da total ignorância acerca da Patrística que nasce uma das teorias anti-cristãs mais populares dos nossos tempos: a teoria de que a doutrina da Igreja Católica seria, sobretudo, romana e pagã, resultando da obra política de Constantino, e de que tal doutrina estaria muito longe da doutrina de salvação proposta por Jesus Cristo. Obviamente, só é possível sustentar tal asneira quando nunca se leu uma só linha de um qualquer autor patrístico.

Como se vê, para qualquer cristão que procura ir às origens da sua doutrina, o grego é uma língua de referência. Por essa boa razão, eu quis trazer para a conversa os dois termos gregos, “pistis” (fé) e “gnosis” (conhecimento) porque tais termos são empregues com abundância pelos Padres da Igreja que escreveram em grego, o que demonstra cabalmente que, ao invés do que poderá defender um leitor de Ludwig (o próprio Ludwig sabe-o bem e não cometeria erros grosseiros desse calibre), a fé verdadeira não vive sobre a ignorância nem apela à ignorância como solidificação de si mesma: a fé é o prelúdio necessário ao conhecimento. A patrística cristã alude à fé e ao conhecimento como duas modalidades distintas e complementares da intelectualidade cristã. Ambas são indispensáveis, no sentido em que a gnosis (o conhecimento de Deus) é o destino, o objectivo, e a pistis é o caminho, o percurso. Embora aceite facilmente que tenham existido raros cristãos que alcançaram, com a graça de Deus, a plenitude da gnose cristã (o misticismo cristão está repleto de bons exemplos), suspeito que nenhum desses casos teria sucedido sem o suporte da fé, o que seria sinal de invulgares qualidades espirituais (estranhas ao ser humano), diria mesmo “sobre-humanas”.

E, dado o carácter único de Deus, a sua infinitude obriga a uma relação necessariamente assimétrica entre Ele e a criatura finita. Mas isso não significa que Deus esteja inacessível ao ser humano:

São Tomás: «De facto, quanto aos bem-aventurados, eles certamente atingem com a mente a essência divina, mas não a compreenderão», De divinis nominibus, 22.

O que quer isto dizer? “Não a compreenderão”, na acepção literal de compreender, ou seja, “abarcar”. O que é um truísmo: a criatura finita não pode abarcar (compreender) o Deus Infinito. Contudo, sendo o intelecto humano a “ponte” que este tem para o universal, é certo que o homem pode, se for persistente e “bem-aventurado”, «atingir com a mente a essência divina».

Ludwig continua:
«Eu propus que a verificação independente permite distinguir o conhecimento da mera crença. O Bernardo retorquiu que:

«eu faço a "verificação independente" da justeza e veracidade da minha fé por intermédio de operações intelectuais.»

É como fazer eu próprio a verificação independente da minha declaração de impostos. Será que a DGCI vai na conversa? Por verificação independente quero dizer mesmo isso. Independente. Se o aluno diz que sabe a matéria, o professor verifica. Se um cientista propõe uma hipótese, outro cientista verifica. Independentemente. E nunca por mera operação intelectual. Algures, alguma ideia será confrontada com alguma observação, senão não se verifica nada. Aposto que em Grego «verificar» e «olhar para o umbigo» também são termos diferentes.»


O meu caro Ludwig parece ignorar, por breves instantes, que está a criticar um mero comentário, curtas notas soltas escritas de forma despreocupada, num espaço limitado e desadequado a grandes exposições. Mas vou agora tentar ser mais claro, dispondo de espaço e oportunidade para o fazer.
Há dois aspectos que importa analisar separadamente: “verificação”, e “independente”. Comecemos pelo primeiro...
Estas singulares palavras de Ludwig levantam imediatamente, no meu espírito limitado, uma série de questões que me parecem de monta. Primeiro, é preciso sublinhar que a verificação de qualquer tese é sempre uma operação intelectual, sendo também certo (nunca afirmei o contrário) que muitas das verificações que fazemos quotidianamente recorrem ao auxílio dos sentidos (Aristóteles atribuía estas operações intelectuais ao que ele determinou chamar de “intelecto possível”). Mesmo quando um cientista procura demonstrar, recorrendo ao método experimental, a adequação de uma tese à realidade de um dado fenómeno, ele está permanentemente a aplicar operações intelectuais. Operações que mais nenhum animal por nós conhecido é capaz de efectuar, mesmo sabendo-se que muitos animais também possuem equipamento sensorial. Não será também isto uma pista interessante?

Podemos dizer, sob um determinado ponto de vista (o do objecto do conhecimento), que há duas classes ou categorias de operação intelectual no ser humano que importa considerar agora como distintas:

a) Operação intelectual sobre objectos apreensíveis empiricamente: é a mais corrente, e qualquer verificação científica por método experimental usa-a quotidianamente;

b) Operação intelectual sobre objectos supra-empíricos (ideais): é uma operação comum ao filósofo, por exemplo; neste caso a verificação da veracidade de uma tese ou raciocínio é uma operação puramente intelectual (usa-se como ferramenta central a Lógica), que não carece necessariamente de confronto com o nível empírico da realidade; o facto de, em muitos casos, o filósofo recorrer a analogias que nascem do empírico não nos deve enganar: o ser humano usa o mental, quase sempre, com base em imagens, em experiências sensoriais anteriores a um presente raciocínio; no entanto, a analogia é uma ferramenta potente, porque podemos perfeitamente usá-la para apreender objectos supra-empíricos; um exemplo: quando usamos o termo “reflectir”, vem-nos logo à mente a imagem de um espelho: as operações reflexivas que ocorrem na nossa mente, quando veras, resultam da “reflexão” de um arquétipo no “plano” do nosso intelecto; o recurso a um termo que invoca experiências sensoriais com superfícies reflectoras ajuda-nos a compreender o próprio processo de conhecimento.

Poderíamos ainda falar do conhecimento metafísico, cuja natureza é intuitiva e não dedutiva, mas nem vale a pena ir mais além do segundo tipo de operação referido. É evidente que, negando o metafísico, Ludwig negue sequer que se possam efectuar operações intelectuais em tal domínio. O problema de Ludwig vem mais de trás: Ludwig parece não aceitar sequer que a operação mental feita pelo filósofo sobre uma determinada ideia seja, realmente, uma “verificação” válida! Isto é puro consensualismo (ver adiante), é o negar de qualquer valor à evidência individual! No entanto, dada a sua formação científica, o Ludwig conhece bem as ferramentas da Lógica. Só que parece apenas querer aplicá-las sobre objectos empíricos, duvidando da sua utilidade no tratamento de objectos supra-empíricos, como as ideias.
O que diria, Ludwig, acerca do trabalho científico na área filosófica específica dos argumentos ontológicos? Será que se trata de trabalho intelectual vão, por não gerar aplicações práticas ou por não estar fundamentado em verificações empíricas?
Veja, por exemplo:
Ontological Arguments

É curioso…
A eterna discussão em torno da Teoria do Conhecimento, que ocupa filósofos de todos os continentes desde a aurora do pensamento humano, uma questão que está longe de estar encerrada (nunca esteve tão em aberto), encontra-se dramaticamente simplificada na cosmovisão de Ludwig: para ele, parece que o conhecimento humano deve estar forçosamente cingido ao puro e estrito empirismo. No fundo, para Ludwig, “conhecer” não seria uma operação intelectual, carente de suporte ontológico, mas seria apenas um mero processo bioquímico explicável por elementares fenómenos positivos na matéria que compõe o nosso cérebro. “Verificação”, para Ludwig, parece ser sempre algo de sensorial, totalmente dependente da “matéria” (essa “pedra filosofal” desta modernidade caída), e é com esforço que, sequer, admitirá que, mesmo no caso elementar da verificação usando os sentidos, a operação em causa seja um processo intelectivo vero que transcenda a matéria!

Mas não quero, de forma alguma, escamotear o texto de Ludwig: a esmagadora maioria dos seus textos, de tal forma são intensos que qualquer um deles daria a possibilidade de uma extensa e profunda troca de ideias filosóficas. É o que eu queria fazer, aproveitando mais esta oportunidade por ele proporcionada.

Diz Ludwig:
«É verdade que poucas vezes precisamos desta verificação independente. Quando consultamos o horário do autocarro ou compramos bolachas basta-nos comparar crenças com observações e rever as primeiras se necessário. Não precisamos que outros confirmem cada inferência que fazemos. Mas quando há empenho pessoal numa certa conclusão, seja nos impostos, passar no exame, publicar o artigo, ou em matéria de fé, é provável que factores subjectivos guiem crenças e afirmações e as afastem da realidade. Nestes casos é importante testar a crença de uma forma independente.»

Este trecho de Ludwig é muito sensato e vejo-me forçado a concordar com ele. Adiante, falarei acerca da limitação humana, e da nossa permanente necessidade de confiar nos outros quando não estamos plenamente capazes de chegar a uma evidência individual. Curiosamente, este trecho de Ludwig ajuda-me a explicar porque razão a fé precede sempre o conhecimento, porque não é uma via alternativa e contraditória: é a via que leva àquele destino, mas já lá iremos…
Mas fica-se com a impressão de que esta “verificação independente” de que fala o Ludwig é verdadeiramente o melhor que temos para conhecer o real. É aqui que nasce a nossa profunda divergência, pelo simples e elementar facto de que eu reconheço a Deus a possibilidade (bem simples para Ele) de ter comunicado um caminho aberto para que o Homem pudesse conhecer a verdade sobre todas as coisas. Para o cristão, esse caminho chama-se Jesus Cristo.
Ludwig insiste na exclusividade do teste empírico.
Eu insisto na na ineficácia desse teste para coisas supra-empíricas.
Eu insisto na necessidade da crença em Deus (Fé) para que daí advenha conhecimento vero e descritivo do real.

Vejamos primeiro as fraquezas da visão de Ludwig, e depois vejamos a força da visão cristã que eu defendo.

As fraquezas da visão de Ludwig

Independência
O teste independente não é uma garantia de veracidade. Ludwig diz que, quando estamos pessoalmente envolvidos numa inferência, é importante evitar que «factores subjectivos guiem crenças e afirmações e as afastem da realidade». Totalmente de acordo! Mas será que a verificação independente vai resolver o problema gnoseológico? Veremos isto adiante…

Testabilidade
O problema com o testar exclusivamente por via empírica de uma proposição é duplo:

a) só serve para proposições empíricas, ou seja, só é útil para aferir afirmações acerca da realidade empírica; não é possível testar uma tese metafísica (Karl Popper); o testar é impossível e inútil em termos metafísicos; as teses metafísicas têm que ser verificadas intelectualmente (quanto mais pessoas o fizerem, e aperfeiçoarem tal verificação – colegialidade – tanto melhor)

b) na análise de fenómenos, o teste empírico só serve para fenómenos repetitivos; é inútil em fenómenos cuja ocorrência é única e irrepetível (como testar a ressurreição de Cristo ou a concepção de Cristo no seio virginal de Maria se se trataram de eventos únicos e irrepetíveis?)

É que eu não tenho a mais pequena dúvida disto, Ludwig: se um cientista moderno estivesse presente dentro da sepultura de Cristo, naquelas dezenas de horas que se seguiram ao enterro do Mestre, e estivesse munido da mais sofisticada tecnologia de medição, ele poderia ter presenciado esse acontecimento único que foi a ressurreição. O Ludwdig, num texto mais recente, admitiu que um fenómeno inexplicável empiricamente poderia ser alvo de uma explicação metafísica, se se adequasse ao observado. Mas não havia cientistas dentro do túmulo de Cristo! Nada foi fotografado, medido, registado! Apenas testemunhos de pessoas, Ludwig, que viram o túmulo vazio e o Mestre ressuscitado (até tocaram no seu corpo, portanto não se tratava de uma aparição "fantasmagórica")... De que vale isso? Testemunhos pessoais, que vale isso para si, se as ferramentas da Ciência não puderam lá estar?
Entende como é pouco interessante o seu critério, Ludwig, para uma explicação total da realidade? Tudo o que eu não puder repetir, não posso conhecer! Bela ciência... Com ciência assim, havemos de ir longe!

Como vemos, o “teste independente” sugerido por Ludwig de nada serve em teses metafísicas (pouco grave para um ateu), mas também de nada serve para analisar fenómenos únicos e irrepetíveis (muito grave para um ateu). O caso da (suposta) evolução das espécies é um óptimo exemplo de que a ciência deve ter cuidado com as suas teses, quando não consegue repetir os fenómenos que quer explicar. Por exemplo, quando não consegue repetir o fenómeno do surgimento da vida ou do surgimento da vida inteligente.

Por sua vez, a verificação intelectual (por tentativa de falsificação) de uma tese metafísica pode seguir por duas vias distintas e complementares:

a) procura de contradição interna: se, após aturada busca, a tese metafísica não possui contradição interna, teremos uma das condições necessárias da sua veracidade; basicamente, as leis da Lógica não podem ser nunca violadas;

b) procura de incompatibilidade com o empírico (não se aplica a qualquer tese metafísica, mas apenas às que podem ser causas de fenómenos empíricos): se uma tese metafísica pretende explicar um determinado fenómeno empírico, pode-se tentar averiguar intelectualmente se o efeito observado pode ser explicado pela causa metafísica proposta a verificação.

Mas, como veremos adiante, a metafísica só é verdadeiramente eficaz, demonstrativa e explicativa com a consideração axiomática (acima de discussão) do Infinito, do Ser, do Uno. Enfim, com a fé em Deus…

A força da visão cristã

A importância e actualidade do legado do Aquinate
«Um dos motivos que levam os homens através dos tempos ao estudo da filosofia foi o desejo de compreender a sua própria natureza. Em particular, os homens voltam-se para a filosofia para procurar um maior conhecimento da natureza dos seus próprios espíritos. Desde os tempos antigos, os filósofos tentaram ganhar este conhecimento, reflectindo sobre os seus próprios processos mentais e capacidades, e considerando a linguagem que usamos par exprimir e descrever os nossos estados mentais. Em séculos recentes, apareceu um número de disciplinas científicas dedicadas ao estudo do espírito – ramos da psicologia experimental, social e clínica. A informação adquirida por estas disciplinas ajuda-nos imenso na compreensão da natureza humana: mas não competem com, nem conseguem substituir, o estudo filosófico do espírito. Isto acontece porque a relação entre os fenómenos estudados pelo cientista e os acontecimentos ou estados mentais que se manifestam nestes fenómenos, é, ela própria, um problema filosófico: é o problema central da filosofia da psicologia, ou o que hoje se chama vulgarmente, “filosofia do espírito”. Devido à natureza estável do quadro filosófico para o estudo do espírito, os escritos de filósofos antigos, medievais, e dos séculos XVII e XVIII, não se tornaram antiquados com o progresso da ciência, como aconteceu com os escritos em outras áreas. Em particular (…) os escritos de Aquino sobre os tópicos hoje tratados por filósofos do espírito continuam a ter valor» - A. Kenny, São Tomás de Aquino. Tradução de Maria M. Pecegueiro, Lisboa, 1981, pp. 107-108, in prefácio da obra de São Tomás de Aquino, A unidade do intelecto (contra os averroístas), Edições 70, 1999, escrito por Mário Santiago de Carvalho.

Não é possível afirmar, de forma mais clara, que a área científica de trabalho de São Tomás de Aquino, sendo das mais perenes acessíveis ao ser humano, porque visa o intelecto, não passa de moda só porque os ideólogos modernos querem que passe de moda!

Vejamos mais um texto interessante, para deixar bem claro que as presumidas incompatibilidades entre Ciência moderna e Fé têm que ser demonstradas, e não tomadas como auto-demonstradas só porque dá jeito...

A importância da exegese e da hermenêutica – a inerrância do texto sacro
«São Jerónimo, Cartas, n.º 27 [a Marcela, 382-385]
Aos meus detractores, a minha resposta é esta: Eu não sou tão pobre de espírito nem tão ignorante (qualidades que eles tomam como santidade, chamando a si mesmos os discípulos dos pescadores como se os homens fossem feitos santos por nada saberem) – Eu não sou, repito, tão ignorante que suponha que alguma das palavras do Senhor necessite de correcção ou não seja divinamente inspirada; mas já se provou que os manuscritos latinos das Escrituras estão errados pelas variações que todos eles exibem, e o meu objectivo tem sido o de restaurá-los para a forma do original Grego, do qual os meus detractores não negam que eles tenham sido traduzidos.»


Se há problemas de tradução, se há problemas de interpretação, se apenas uma hermenêutica competente pode fazer ressaltar a essência do texto sacro, é de espantar a ligeireza com que se apontam as supostas incompatibilidades entre a fé cristã e o mundo observável...

A fé (como caminho) precede o conhecimento (como fim), porque não se pode chegar a um destino sem se procurar o caminho certo para o alcançar. Se não estou, intelectualmente, no destino que quero estar (o conhecimento), devo meter-me a caminho. Mas antes, devo escolher a direcção na qual quero caminhar. A fé é a direcção a escolher para caminhar para o conhecimento de Deus. Sendo Deus a origem de tudo, é evidente que o conhecimento correcto do divino não pode incompatibilizar-se com o conhecimento correcto do mundano.

Vejamos agora um excerto do prefácio excelente de Mário Bruno Sproviero e de Jean Luiz Lauand, escrito para uma obra que reune duas quaestiones disputatae de São Tomás:

«Na Suma contra os Gentios, ao explicar por que é necessário crer mesmo quando se trata de verdades divinas acessíveis à razão: «A própria debilidade dos nosso entendimento para discernir, e pela confusão dos fantasmas [nota: “phantasma”, em grego, é “imagem”], faz com que na maioria dos casos mescle-se nas investigações racionais o falso, e, portanto, para muitos parecerem duvidosas muitas verdades que estão efectivamente demonstradas, já que ignoram a força da demonstração, e principalmente vendo que os próprios sábios ensinam verdades contrárias. Também entre muitas verdades demonstradas, introduz-se, às vezes, algo falso que não se demonstra, mas que se aceita por razão provável ou sofística, tido como demonstração. Por isto foi conveniente apresentar aos homens por via de fé uma certeza fixa e uma verdade pura das coisas divinas” (I,4).
Se a razão particular de alguém não for capaz de compreender, por exemplo, a demonstração de Wiles (Nota: Andrew Wiles apresntou, em 1994, a demonstração do último teorema de Fermat), nem por isso deixará de aceitar o teorema, a não ser que coloque a sua razão acima de tudo, o que acontece em muitos casos.
Em hipótese alguma deve-se desvalorizar a evidência particular e não incentivar a sua busca. Ela é o único critério pelo qual o indivíduo pode dizer que conhece por si a verdade. Mesmo quando não tenha essa evidência, o indivíduo pode e deve aceitar verdades, quer pela evidência dos outros, quer por Revelação.
Quando o indivíduo tem a evidência das verdades que aceita, deve confrontá-las e submetê-las aos outros, como acontece com as verdades científicas.»
, Mário Bruno Sproviero e Jean Luiz Lauand, em Verdade e Conhecimento, de São Tomás de Aquino, pp. 116-117.

Já reparou, Ludwig, como estamos perto da sua ideia sensata acerca da necessidade da fé razoável em milhares de ocasiões da nossa vida? Como não temos a possibilidade de estudar tudo a fundo, com o detalhe do especialista, vivemos permanentemente mergulhados em pequenas "fés", assentes em pessoas ou instituições que nos dão confiança pessoal!

Sobre a evidência individual e colectiva – contra o consensualismo
«Deve ficar claro que se tenho uma evidência e esta evidência também é participada por outros, isto é um indício superior ao caso em que esta evidência só é minha e outros não a condividem. Claro que pode haver exceções, e houve muitas na história da ciência, geralmente quando algo novo é introduzido; mas depois de certo tempo, haverá a aceitação. Daí que foram estabelecidos muitos critérios, nos meios científicos, considerando esta evidência colectiva. Um neopositivista como Moritz Schlick (1882-1936) não tem outro critério do que a comunidade científica; a concepção sociológica da verdade, lançada por Durkheim e aceita por Goblot, defende que a verdade é atestada não pela confrontação do espírito com o real, mas pelo acordo dos espíritos. Este é um critério que procede de Kant, da intersubjectividade. Substitui-se a razão interpessoal de Kant pela sociedade. Assim, a verdade é definida pela crença colectiva; o que eu penso é subjectivo, o que toda a socieade pensa é a verdade. Isto é o consensualismo.
Na postura consensualista, tudo está invertido: temos dois princípios que se confundem facilmente e que, no entanto, distam como o céu da terra.
O primeiro, o autêntico, o que foi mostrado até agora, e que deve completar a evidência individual, é este: se algo é verdadeiro, então deve mostrar-se evidente ao maior número de sujeitos. Estes devem ter abertura e capacidade para a verdade. O princípio espúrio, o consensualismo, é: se a maioria, independentemente de qualquer evidência e competência, considerar verdade, então deve ser verdade. Então, não é por muitos considerarem verdade que é verdade, mas, ao contrário, se for verdade, muitos deveriam aceitar como tal.»
, Ibidem, pp. 119-120.

Eis, em suma, Ludwig, o seu grande erro (que, obviamente, não é só seu, é de toda a ciência positivista): a verdade pré-existe ao ser humano que a detecta intelectualmente. Só se obtém ciência verdadeira pela adequação dos nossos intelectos ao real. Isto é sensato. Se uma ideia é verdadeira, é natural que muitos homens inteligentes a atinjam. No entanto, os tempos modernos provaram a vitória do consensualismo: quantas mais pessoas partilharem de uma tese, mais veracidade lhe dão... É precisamente o inverso!

O Ludwig, centrando toda a ciência no cogito cartesiano (existo porque penso), já está desviado radicalmente da realidade. É que nós pensamos porque existimos! A existência é o ponto de partida. O cartesianismo levado ao extremo (como sucede nos dias de hoje) resulta nessa ideia absurda de que é a matéria que, por evolução, engendra o intelecto. Quando sucede precisamente o oposto: o intelecto pré-existe e determina a matéria.

Mais sobre isto noutros textos futuros...

Ludwig termina assim:
«Mas «deus» é mesmo uma palavra mafaguinho. Para os teístas é uma pessoa que se preocupa, que perdoa ou castiga, que se zanga ou se alegra, que ama ou odeia. Para os deístas é o relojoeiro que deu corda ao universo e agora não liga a nada ou ninguém. Para os panteístas é tudo. Para Einstein era a elegância da relatividade. Para Hawking a complexidade da mecânica quântica. Mas não há nada em comum entre todos os estes usos da palavra. Dizer «deus» dá tanta informação como dizer «mafaguinho».»

O que o Ludwig fez foi citar várias definições de Deus, quiçá todas erradas! Do mesmo modo que a história da ciência nos deu várias definições de matéria, ou de energia, ou mesmo de átomo. O caso da palavra "átomo" (em grego, literalmente "sem partes", ou "indivisível") é excelente. Para Demócrito, significava uma partícula sem partes. Nos tempos modernos, a palavra continua a ser usada, mas a fissão do átomo (separação da tal supostamente indivisível partícula) é fenómeno central na produção de energia eléctrica por via nuclear!
Então em que ficamos, Ludwig?
Se me permite, dizer que a palavra "Deus" é um mafaguinho é uma redonda treta! Para si, que é sensível às tretas, será que a palavra "átomo" não será também uma treta?

É claro que não é...
Como é que aprendo a dar o devido contexto e interpretação ao termo "átomo"? É simples: estudando a filosofia de Demócrito e simultaneamente a Física das partículas.

Ludwig, pelo seu lado, aposta na postura agnóstica, na vitória da ignorância:
«O mesmo se passa com espiritual, sagrado, revelado, e todas essas palavras que as religiões usam para se definir. São inúteis para comunicar ideias concretas pois nunca se sabe ao certo o que querem dizer. E é por isso que abundam na doutrina religiosa.» (negrito meu)

Nunca se sabe ao certo?
Afirma isto baseado em quê, ao certo?
Que culpa teremos nós, cristãos, destes factos, Luwdig?

a) você não aceita que haja uma ideia verdadeira acerca de Deus (considera todas as ideias sobre Deus como equivalentes porque irrelevantes)

b) você não aceita que pode estar a ignorar muita coisa em matéria de religião

Esta sua última frase é espantosa: é, simultaneamente, uma confissão de ignorância ("nunca se sabe ao certo o que querem dizer"), e uma afirmação categórica ("são inúteis para comunicar ideias concretas"). Parece-me bastante sensato que, perante o confesso desconhecimento numa dada matéria, se evitem as afirmações categóricas...

Um abraço,

Bernardo

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