Naquela manhã fria de 1 de Fevereiro de 1908, dois selvagens levantaram-se da enxerga onde dormiam para viver o seu grande dia: o dia da caçada à Família Real. Alfredo Costa e Manuel Buíça, ardentes republicanos treinados nas artes da oratória e da argumentação, decidiram acabar com a Monarquia da forma mais eloquente de todas: o fuzil.
Pelas 17 horas desse dia, morriam às mãos destes dois selvagens Sua Alteza o Rei D. Carlos I e o Principe Real, D. Luís Filipe. Foram caçados. Ao virar do Terreiro do Paço para a Rua do Arsenal, e aos olhos de toda a gente que assistia chocada, foram disparados os tiros certeiros que resolveram o "problema" monárquico de forma definitiva: erradicando os representantes máximos da Nação.
A República não começa a 5 de Outubro de 1910. Essa é só a data oficial. Começa a 1 de Fevereiro de 1908, em cima do sangue real derramado pelos dois selvagens Costa e Buíça. Por muito que os republicanos de 1910 tenham querido repudiar publicamente o crime de 1908, sempre souberam bem que sem este crime não teria havido margem de manobra para uma troca de regime.
As altas esferas do moralismo republicano repudiaram o regicídio. O maçon Sebastião Magalhães Lima, que chegou à categoria de Grão-Mestre, nunca se quis associar ao crime, e assim tem acontecido com os maçons do Grande Oriente Lusitano desde então: olhar para o regicídio como um acto isolado, uma acção desesperada de um pequeno grupelho de carbonários, uma medida tomada sem a autorização dos grandes aventais.
Veja-se este elegante exemplo de retórica maçónica:
A Maçonaria condenou o regicídio de 1908
Podemos dizer que foi tudo um acto isolado de uma insignificante carbonária. Podemos fingir que não houve conspiração a alto nível. Podemos considerar como "boatos infundados" os testemunhos de que o próprio Aquilino Ribeiro (há pouco tempo trasladado em honras para o Panteão) estaria com um grupo de assassinos à espera, no Corpo Santo, caso o grupo do Terreiro do Paço não desse conta do recado.
Tem sido sempre assim: olhar para o regicídio como acto isolado da Carbonária tem sido a forma escolhida para tentar limpar a boa moral republicana neste Portugal que se sente tão satisfeito com a República e que sente tanto desdém pelos nossos sete séculos de Monarquia.
A República é um sistema de governo bastante razoável. Não é isso que está em causa. Mas a história da República em Portugal tem sangue. E a ferida está aberta. O republicano dos dias de hoje não pode fingir que esta ferida não existe: reconhecer que a República começou com o pé esquerdo é reconhecer o óbvio. Em 1908, não houve espaço para um debate sereno acerca de modelos alternativos para a governação. Eu sou monárquico, e tenho as minhas razões, mas estou sempre disposto a ouvir a argumentação de um republicano. Em 1908, o que se ouviu no Terreiro do Paço foi o som implacável dos tiros, que matou não só a argumentação como os adversários naturais do republicanismo. Literalmente.
Recordemos, hoje, os caídos às mãos dos assassinos.
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