A coerência, como valor pessoal e intelectual fundamental, está fora de moda.
Muitas figuras públicas, sobretudo nos meandos da política, são descaradamente incoerentes, e não se preocupam por aí além.
Hoje em dia, é sobretudo valorizada a dissidência, ou seja, uma espécie de atitude de "jovem rebelde" ou "livre-pensador". A coerência passa para segundo plano, ou sai mesmo de cena. O que deve fazer um eleitor que procure, hoje em dia, um político coerente em quem depositar o seu voto?
«É um católico mesmo praticante? Vai à missa?
Sim, mas sou um progressista, não me revejo na moral de costumes da Igreja Católica, na não ordenação das mulheres, no não casamento dos padres.»
É realmente espantoso que seja católico (mesmo da tal estirpe especial e minoritária dos "praticantes") e não se reveja em questões importantes da doutrina da Igreja.
É caso para perguntar: porque escolheu a Igreja Católica, quando há outras religiões que não apresentam a Paulo Rangel as objecções que ele levanta?
«Defende o casamento dos padres?
Em primeiro lugar defendo a ordenação das mulheres. Não compreendo que hoje, 2009, a Igreja tenha esta restrição. Olhe, o São Paulo, que tem aura de ser um autor sexista, em grande parte das igrejas que fundou as chefes eram mulheres. O que revela bem que o estatuto da mulher não era assim tão subalterno quanto pode parecer da leitura de alguns textos.» (negrito meu)
Este trecho é uma contradição.
Paulo Rangel defende a ordenação das mulheres na Igreja Católica, e logo a seguir, diz que "não compreende" essa restrição. Se não a compreende, como pode ser contra ela? Trata-se de simples lógica: se não compreende uma tese T, então não pode concordar com T nem com a sua negação: simplesmente não pode ter uma posição enquanto não compreender a tese T, e decidir a seu favor ou contra ela.
Outra erro terrível para qualquer católico é o de considerar que o sacerdote é um "chefe". É perfeitamente normal que São Paulo tenha dado responsabilidades de chefia a mulheres, mas isso não fez delas sacerdotes. As funções de sacerdote não são as funções de um "chefe".
«Na Igreja é [subalterno, o papel da mulher].
Na igreja institucional, sim. Mas com Jesus Cristo não. Tudo o que se conhece até aponta para um certo escândalo por ele ter mulheres apóstolas. E São Paulo também, curiosamente.»
Paulo Rangel diz que, na Igreja Católica institucional, o papel da mulher é subalterno. O que, mais uma vez, nos faz pensar porque razão terá Paulo Rangel escolhido uma religião machista para dela fazer parte. Mas, mais uma vez, Paulo Rangel erra, ao considerar que o papel da mulher na Igreja Católica é subalterno, e pelas razões atrás mencionadas: o sacerdote não é um "chefe".
«Concordou com a despenalização do aborto?
Eu estou de acordo com a posição da Igreja quanto ao aborto e à eutanásia. No resto não. Nos anticonceptivos sou um radical activista contra as posições da Igreja. Na moral sexual em geral sou contra: casamento, divórcio, a questão dos homossexuais.»
Paulo Rangel, aqui, usa a Igreja Católica como um supermercado. Vai ao corredor procurado, retira as partes que deseja, deixa o resto de parte. Uma religião "self-service". Note-se que Paulo Rangel, para além de se afirmar como um "radical activista" diz que na moral sexual, em geral, é contra as posições da Igreja. De novo, surge a teimosa pergunta: então, se é contra, porque razão escolheu a Igreja Católica?
«Defende o casamento gay?
Não é uma coisa que eu defenda hoje. Defendo uma instituição à parte.
A solução inglesa?
Um instituto análogo ao casamento. Para a sociedade portuguesa seria a melhor solução agora. Não porque eu não reconheça o direito? Eu percebo muito bem as reivindicações dos activistas e das activistas dos movimentos gay, mas acho que sociologicamente também temos que respeitar as convicções da maioria da população portuguesa, que é muito conservadora nesta matéria. Temos de encontrar um equilíbrio. A terceira via é um bom equilíbrio. Aliás, nas associações activistas há uma certa contradição. Elas dizem: agora falamos em casamento e mais tarde na adopção, é preciso um primeiro passo. Mas eu acho que é preciso um primeiro passo antes do casamento. Se aceitássemos a teoria gradualista, criavam- -se menos fracturas.»
Disfarçada sobre a capa de "respeito" pelas "convicções da maioria da população portuguesa", está uma escandalosa arrogância: a de pensar que a sociedade portuguesa ainda é "muito conservadora nesta matéria", o que é o mesmo que dizer que ele, Paulo Rangel, e os que pensam como ele, estão do lado do progresso, e que é só uma questão de tempo até os "atrasados" apanharem o comboio do progresso.
Outro problema para o Paulo Rangel católico: os católicos não se opõem ao "casamento gay" apenas porque isso "usurparia" uma palavra que lhes é cara. Eles opõem-se ao "casamento gay" porque se opõem à homossexualidade como tendência imoral, ou seja, errada.
«Mas eu percebo que há aqui questões sociológicas, de respeito pelas convicções dominantes na sociedade. E também têm de ser tidas em conta, não há aqui só direitos de uns. Prefiro uma engenharia social gradual. Mas acho que é aqui, na relação com os homossexuais, que a Igreja deveria abrir mais. Em toda a moral sexual é preciso uma grande renovação na Igreja. E há coisas que não compreendo de maneira nenhuma: a ordenação das mulheres, o casamento dos padres, a questão dos anticonceptivos, não percebo como é que se consegue continuar com este discurso.» (negrito meu)
Para além de uma linguagem metafórica ridícula (a da Igreja "fechada" e "aberta"), que se aplica a portas e janelas, e não a uma doutrina, Paulo Rangel mostra, neste trecho final, a incoerência apontada atrás: na mesma frase, sugere alterações profundas para a Igreja Católica, ao mesmo tempo que usa repetidamente expressões como "não compreendo" e "não percebo".
Recomendo a Paulo Rangel a consulta urgente do Catecismo da Igreja Católica.
25 comentários:
Olá Bernardo,
Na terceira linha do seu texto julgo que deve estar "A coerência, como valor pessoal e intelectual fundamental..." e naõ incoerência.
Um abraço.
Um bem-haja pela correcção, caro André! Já está feita. Obrigado!
Olá, Bernardo.
Relativamente à reflexão, não me parece que a dinâmica da abertura seja ridícula, e a bem ver nem sequer é metafórica; ela trata da actividade própria à reflexão: confronto de teses; dialéctica com o não-reflexivo, das percepções às paixões, das intuições às revelações;
Uma doutrina que se feche em si própria, alienando-se de toda a alteridade, fenece sob a regra de que toda a auto-sustentação é um logro de vida e verdade (exceptuando o caso do próprio Deus, claro;); é por isso aliás que o Aquinate foi a Aristóteles, e se fosse hoje iria etc; e é por isso também que há a noção católica de "sinais dos tempos": dialéctica com a História; etc
E é por isso também que a metáfora de S. Paulo para a Igreja não é o livro mas o corpo.
Um abraço
Caríssimo Vítor,
Obrigado pelo seu comentário. Como sempre, é um comentário pertinente.
Ao escrever essas linhas, pressenti a fragilidade que me aponta.
Vou, por isso, tentar agora ser mais claro. Só posso concordar com a sua leitura do termo "abertura", que está muito correcta e é muito cristã.
O que eu quis, com o meu trecho irónico sobre portas e janelas, foi destacar a ausência de conteúdo na forma como Paulo Rangel faz a metáfora. Em bom rigor, a metáfora não é má em si mesma, mas está a ser deturpada pelo Paulo Rangel.
Porque razão o digo?
Porque as palavras de Paulo Rangel representam um risco intelectual grave, que nada tem a ver com a abertura no sentido positivo que o Vítor refere.
Há largas décadas que certas pessoas (muitas das quais interessadas na derrocada da moral e da religião cristã) usam e abusam de dicotomias como "liberal vs. conservador" e "progressista vs. tradicionalista". O senhor Paulo Rangel é apenas mais um deles. O perigo intelectual está em que tais dicotomias apagam completamente a discussão acerca da veracidade das questões.
Tomemos o exemplo do "casamento" homossexual. O senhor Paulo Rangel limita-se a identificar o seu lado da barricada: ele é "progressista". Desse modo, ele não discute, nem quer discutir, se o "casamento" homossexual está certo ou errado (note-se o "tremor" das suas respostas quando confrontado pelo jornalista, que lhe pedia uma posição mais clara). Ele não procura avançar argumentos a favor, nem procura refutar argumentos contra. Ele abstém-se desse debate.
Paulo Rangel evita a discussão acerca da VERACIDADE das teses, usando as dicotomias do costume para disfarçar essa manobra evasiva.
Ao falar em "católicos conservadores" e "católicos progressistas", o senhor Paulo Rangel pega num debate que deveria ser acerca da verdade de certas ideias, e deturpa-o num debate acerca de "opiniões" e posições pessoais.
Já não interessa, na cabeça dele, se o "casamento" homossexual é um direito ou não, se está certo ou errado, se a sua apologia é uma ideia verdadeira ou falsa. Tudo passa a uma questão de atitude pessoal profundamente subjectivista.
Este deslocar da objectividade das questões para o terreno mole e bafiento das subjectividades é muito perigoso.
Os católicos não se dividem em "progressistas" ou "conservadores". Nunca um Papa usou expressões destas ao falar sobre doutrina católica. Um católico afirma professar a doutrina católica, doutrina essa que é objectiva (estabelece certas teses como verdadeiras, e certas teses como falsas).
Depois, há o problema da "filosofia" gelatinosa defendida pelo Paulo Rangel. O que é ser um "progressista"? Sabemos que o tempo anda sempre para a frente, e que não anda para trás. O que é um "progressista"? Alguém que quer que as coisas melhorem? Quem é que não quer que isso aconteça?
O facto de o tempo passar não faz com que uma coisa melhore. O facto de termos direito a abortar a pedido a partir de 2007, quando não o tínhamos antes dessa data, não torna o aborto numa coisa boa.
O passar do tempo, em si mesmo, não nos torna melhores pessoas nem torna as coisas melhores. Isso é que era bom!
Esta é a falácia do "progresso"...
E, repito, "progressista" e "conservador" são termos enganadores. Todos deveríamos ser "progressistas" e "conservadores": deveríamos procurar mudar o mau para bom (uma boa atitude progressista) e deveríamos procurar preservar o bom e evitar que se torne mau (uma boa atitude conservadora).
Assim, "conservador" ou "progressista" devem ser atitudes que tomamos, CASO A CASO, dependendo se queremos preservar algo bom ou melhorar algo mau. Por isso, logo se vê que o essencial é a avaliação das coisas como boas ou más. Tudo parte daí.
É tolice ser-se "conservador", em absoluto, só assim. Como é tolice ser-se "progressista", em absoluto, só assim. Porquê? Porque como dizia o Chesterton com muita ironia (e razão), é preciso um progressista para fazer asneiras e um conservador para impedir que estas sejam corrigidas!
Obrigado pelo seu comentário!
Um abraço,
Bernardo
isso faz-me lembrar um taxista que me dizia “o que é preciso é andar para a frente!” ao que eu repliquei “ah sim, e se tiver um precipício à frente?”
de resto, não conheço suficientemente o Paulo Rangel para saber se sim ou sopas relativamente à “gelatina”; e a própria entrevistadora é “gelatinosa”, quero dizer, mantém-se no vago e não aponta para esclarecimentos, mesmo no ponto que o Bernardo aponta em que se limita a dar um Então. foi só uma nota de rodapé que abriu para este seu esclarecedor comentário ;) ou seja, como já aconteceu com o Cavaco Silva e com o José Manuel Pureza, deixo o réu à sua sorte judicativa LOL
o perigo penso que está aqui, e agradeço que substituam mentalmente Paulo Rangel por “senhor X”:
“Eu estou de acordo com a posição da Igreja quanto ao aborto e à eutanásia. No resto não. Nos anticonceptivos sou um radical activista contra as posições da Igreja. Na moral sexual em geral sou contra: casamento, divórcio, a questão dos homossexuais.»
Paulo Rangel, aqui, usa a Igreja Católica como um supermercado. Vai ao corredor procurado, retira as partes que deseja, deixa o resto de parte. Uma religião "self-service". Note-se que Paulo Rangel, para além de se afirmar como um "radical activista" diz que na moral sexual, em geral, é contra as posições da Igreja. De novo, surge a teimosa pergunta: então, se é contra, porque razão escolheu a Igreja Católica?””
A escolha da Igreja Católica e não da protestante, que penso para um português ser mais ou menos a alternativa comunial cristã, não passa pela moral sexual mas sobretudo pelo entendimento da Graça divina, do sentido da dinâmica histórica reforma/contra-reforma, e pode até passar pelo entendimento do sacerdócio universal dos fiéis; ou até por outras questões mais ou menos consistentes. E mesmo no protestantismo, em Portugal ser anglicano não é fácil na prática; ortodoxo ainda menos, embora eu até tenha o costume de ir a uma missa ortodoxa que se celebra na R. do Jardim do Tabaco, mas sempre que fui era o único português na assembleia; há aqui também questões de geografia cultural, como é evidente, e desde que não estejam questões basilares em jogo não me parece que se requeiram apelos à comunhão ou excomunhão.
Eu penso que é coerente alguém afirmar que adere à catolicidade, mas que neste ou naquela questão não está de acordo com o magistério ou tem problemas, etc A Igreja é também isso: os cristãos a viverem o cristianismo no seu dia a dia, e a desvelarem problemas de inculturação próprios etc Nem a pastoral nem a comunhão são, na sua essência, exames doutrinais: são vivência mútua na edificação viva de Cristo… Eu até percebo os exercícios de retórica, mas depreender que a solução passa por ler o catecismo é um recuo analítico evidente, visto que se não concorda com os pontos X e Y é porque os leu; restaria agora compreender em quê e como é que não concorda, quais os problemas etc Claro que resolver em três linhas a problemática sexual é não dizer nada, mas essa tanto vale para o Paulo Rangel como para o eventual “catequista”. Penso que o próprio Compêndio católico deve ser entendido como o Epicteto entendia o seu Manual, isto é, como memorando para quem já pensou as questões envolvidas e envolventes, e de modo nenhum como esclarecimento destas; e a ideia que deve sair da Igreja quem discorda ou problematiza pontos catequéticos arrisca-se a cair no conservadorismo que não corrige nem se corrige; assim como a ideia que a discordância não deve enfrentar os pontos catequéticos onde estes se situam, para o caso, numa antropologia fundamental, assim como numa mística da sexualidade, arrisca-se a cair no “progressismo” cego. E depois há também a questão da “hierarquia das verdades”…
Caríssimo Vítor,
«desde que não estejam questões basilares em jogo não me parece que se requeiram apelos à comunhão ou excomunhão.»
Ora bem. Desde que não estejam questões basilares em jogo. Ora o problema está todo aqui. Na fronteira entre o que é basilar e o que não é basilar.
Eu defendo que questões de moral e de doutrina são basilares. Basta ver que é precisamente sobre estas questões que se ergue o dogma da infalibilidade pontifícia.
E ainda por cima, as de doutrina, definidas de forma dogmática, ou vertidas no Credo, são menos importantes do que as de moral.
Vejamos: é mais grave defender uma moral dissoluta do que defender uma heresia. É mais grave defender o incesto do que negar a Santíssima Trindade. É sempre mais grave um erro moral (que condiciona a nossa conduta e a forma como olhamos para a conduta dos outros) do que um erro doutrinário.
Por isso, a posição de Paulo Rangel é ainda mais trágica. Ele poderia ter dito: "eu concordo com toda a moral da Igreja, mas não consigo aceitar a Santíssima Trindade". Seria muito menos grave...
Não obstante, dizer tal coisa impossibilitava-o de, por exemplo, rezar o credo.
Eu não quero negar que há espaço, que há latitude e longitude, para diversidade dentro do que é ser católico, e essa diversidade está toda ela no facto de sermos indivíduos diversos. Mas, se nos chamamos católicos, o que nos une é uma moral e uma doutrina.
«Eu penso que é coerente alguém afirmar que adere à catolicidade, mas que neste ou naquela questão não está de acordo com o magistério ou tem problemas, etc»
Vamos tentar separar coisas que são distintas: se alguém tem dificuldades de compreensão, isso é perfeitamente normal. O próprio Paulo Rangel reconhece-as. Eu próprio tenho dificuldades de compreensão em relação a certos pontos. Mas a fé é precisamente isto: tentar compreender, mas enquanto não compreendo, aceito. Jesus disse-o de forma clara, no episódio de Tomé. Se fosse preciso compreender para crer, então seria fácil crer, não?
O que me irrita, neste tipo de posições de certos políticos e "opinion makers", não é que tenham dúvidas, ou estejam em processo de amadurecimento da sua fé. Isso é perfeitamente normal. O que me irrita é o acto ilógico de ter certezas quando, ao mesmo tempo, se afirma que não se compreendem as coisas sobre as quais se têm certezas. É absurdo.
Para além de que não é muito normal um adulto dizer-se católico e rejeitar a moral sexual da Igreja. Se rejeita, é porque analisou-a, e decidiu rejeitá-la. Alguém com dúvidas não tem posições nem pró, nem contra.
(continua)
(continuação)
«mas depreender que a solução passa por ler o catecismo é um recuo analítico evidente, visto que se não concorda com os pontos X e Y é porque os leu;»
Vítor, eu destaquei a "bold" as várias ocasiões em que Paulo Rangel dizia "não compreender". Muitas vezes, a incompreensão passa por uma má leitura de textos base. Há muitos católicos que não têm o Catecismo em casa, e que tiveram a sua última catequese no início da adolescência...
«Penso que o próprio Compêndio católico deve ser entendido como o Epicteto entendia o seu Manual, isto é, como memorando para quem já pensou as questões envolvidas e envolventes, e de modo nenhum como esclarecimento destas»
Aqui não estamos em acordo.
O Catecismo é obra doutrinal. É o resultado do múnus educador da Igreja. Devemos lê-lo, não como um memorando mas sim como doutrina verdadeira, acompanhada dos devidos esclarecimentos.
«e a ideia que deve sair da Igreja quem discorda ou problematiza pontos catequéticos arrisca-se a cair no conservadorismo que não corrige nem se corrige»
Mas, caro Vítor, como é que se distingue essa discordância no que toca à sua razão?
1) Discordo porque não entendo a doutrina
2) Discordo porque a doutrina está errada
São causas bem diferentes! Eu defendo que a discordância de Paulo Rangel se explica pela causa 1) e não pela 2). E tenho atrás de mim 2.000 anos de cristãos. Porque se há algo maduro e sólido é a moral sexual defendida pela Igreja. Não estamos a discutir questões teológicas delicadas, como o Limbo, ou a acção/mediação da graça divina...
«E depois há também a questão da “hierarquia das verdades”…»
Exacto! Por isso é que referi atrás que, nessa hierarquia, a moral está à frente da doutrina de fé. É sempre mais importante as ideias que temos sobre moral do que as ideias que temos sobre teologia ou doutrina de fé. É sempre mais grave defender a imoralidade do que defender a heresia.
E é por isso que vivemos em tempos duros, meu caro. O Papa Pio X deparou-se, no início do século XX, com a ferida (relativamente pequena, diga-se) da heresia modernista. No nosso tempo, João Paulo II e Bento XVI deparam-se com a pseudo-moral relativista, que no fundo, é a imoralidade. Ou a ausência de moral sexual ou a defesa clara e aberta da imoralidade (homossexualidade, adultério, contracepção, aborto, eutanásia, etc.).
É por isso que a actual crise é mais grave que a crise modernista. É que esta é uma crise moral, antes de ser doutrinária.
Um abraço,
Bernardo
Sim, compreendo, mas eu extraí o trecho excluindo nominalmentre o Paulo Rangel apenas porque relativamente à interpretação que o Bernardo dá, puderem ser contrapostas outras, e o homem não estar aqui para esclarecer o que queria dizer. “Não compreendo” pode ser usado como “Não percebo a tese”, ou como “Com as evidências ou demonstrações Y, não percebo como se pode perfilhar a tese sem a confrontar com tais evidências ou demonstrações.”
Com Compêncio católico referia-me ao Compêndio e não ao Catecismo; trata-se duma súmula deste sob a forma de pergunta/resposta, e que foi elaborado uns anos depois do Catecismo.
A precedência da moral sobre a teologia é muito interpelante; passa-se é que toda a moral incrusta-se, esclarecida ou não-esclarecidamente, numa teologia ou ateologia, numa antropologia e cosmovisão etc; mas tudo isto são águas densas, e o seu reparo tem a pertinência do sentido prático que funda a ética.
Eu penso que as crises correspondem à efectivação, ao viver, ao histórico; ao Bernardo dói-lhe a contemporânea simplesmente porque é aquela que vive ;) mas percebo a sua ideia de que é mais grave uma crise ética do que uma crise epistemológica e cultural, se bem que volto a frisar que estas coisas estão intrincadas: podem distinguir-se, mas elas não são separadas ;)
Eu vou pensar no assunto (isto é, volto aqui com a questão daqui a um ano LOL) mas claro que a ética tem uma gravidade universal que certas questões teológicas não têm.
“Mas, caro Vítor, como é que se distingue essa discordância no que toca à sua razão?
1) Discordo porque não entendo a doutrina
2) Discordo porque a doutrina está errada”
Bem, o 1) não faz grande sentido, parece-me. O 2) faz. Falta o 3) A doutrina deve tomar em conta estes novos dados ou problemas.
Acrescento também que a aferição doutrinal do cristianismo passa também pela sensibilidade e pela experiência comunial.
Não percebi se me estava directamente a interpelar no sentido de “a minha razão” ter ou não algum problema com as questões enumeradas pelo “senhor X” LOL Tenho alguns, mas não consigo, pelo menos em caixas de comentários, falar de tudo ao mesmo tempo: ordenação de mulheres, contracepção, homossexualidade, divórcio, eutanásia, ufa… ;) Eu até percebo, como se deve depreender do que já disse, que estes problemas não estão separados, mas distingui-los ajuda à análise e ao diálogo. Por exemplo, nunca compreendi a distinção ética entre métodos naturais de contracepção e métodos artificiais; mas pronto, se for caso, escolha o Bernardo um dos temas: eles são todos problemáticos, aliás, como tudo o que é importante.
Um abraço
PS: o 1) até pode fazer sentido como indicação de uma dificuldade contraditória: “não entendo a doutrina de A = não-A”
Vítor,
«“Não compreendo” pode ser usado como “Não percebo a tese”, ou como “Com as evidências ou demonstrações Y, não percebo como se pode perfilhar a tese sem a confrontar com tais evidências ou demonstrações.”»
Ok. Mesmo assim, mantém-se a minha objecção. Mesmo que o "não compreendo" seja interpretado da segunda forma, eu continuo a ver o problema de que não são apresentadas objecções concretas. Paulo Rangel não apresenta nem uma: apenas diz que "não compreende". O que é uma posição insustentável. Se não compreende realmente, tem que procurar compreender (para poder refutar). Se já compreende a posição contrária, mas não compreende porque razão a Igreja a defende, então tem que apresentar objecções e argumentos em contrário.
«Com Compêncio católico referia-me ao Compêndio e não ao Catecismo; trata-se duma súmula deste sob a forma de pergunta/resposta, e que foi elaborado uns anos depois do Catecismo.»
Sim, eu sei.
Apesar da sua forma reduzida, o Compêndio também contém explicações. E não é um "memorando". É apenas uma síntese do Catecismo.
«A precedência da moral sobre a teologia é muito interpelante; passa-se é que toda a moral incrusta-se, esclarecida ou não-esclarecidamente, numa teologia ou ateologia, numa antropologia e cosmovisão etc; mas tudo isto são águas densas, e o seu reparo tem a pertinência do sentido prático que funda a ética.»
Claro, Vítor.
Um erro de moral pode reflectir, a dada altura, uma causa que pode estar num erro de doutrina. Mas, todavia, é sempre mais grave o erro de moral.
«mas percebo a sua ideia de que é mais grave uma crise ética do que uma crise epistemológica e cultural, se bem que volto a frisar que estas coisas estão intrincadas: podem distinguir-se, mas elas não são separadas ;)»
Nem eu disse que estavam! ;)
«Eu vou pensar no assunto (isto é, volto aqui com a questão daqui a um ano LOL)»
Volte quando quiser!
Por acaso, tenho dedicado mais tempo ao blogue, mas não sou exemplo de regularidade.
«Bem, o 1) não faz grande sentido, parece-me.»
Já percebi porque razão diz isto. Eu não escrevi de forma clara. Veja agora assim:
1) Pessoa X discordo porque ela não entendeu a doutrina (mesmo que julgue que a entendeu)
«Falta o 3) A doutrina deve tomar em conta estes novos dados ou problemas.»
Sim: o seu 3) é mais uma variante do 2), porque implica sempre alguma dose de erro, ou incompletude/imperfeição na doutrina.
«Acrescento também que a aferição doutrinal do cristianismo passa também pela sensibilidade e pela experiência comunial.»
Não o nego. Mas deve-se sempre advertir que, nessa aferição, o Papa tem primazia como Pastor da Igreja. A experiência comunial não erradica a primazia do cargo de Papa (é o cargo que tem primazia, e não a pessoa: não é por virtude pessoal que um pontífice afere a doutrina, é pelo cargo que assume).
«Eu até percebo, como se deve depreender do que já disse, que estes problemas não estão separados, mas distingui-los ajuda à análise e ao diálogo.»
Concordo consigo: seria preciso vê-los um a um com muito cuidado. O que revela, mais uma vez, a precipitação do Paulo Rangel.
(continuação)
«Por exemplo, nunca compreendi a distinção ética entre métodos naturais de contracepção e métodos artificiais»
Eu demorei algum tempo a entendê-la, mas julgo que hoje a compreendo. Acho que, no fundo, está quase tudo dito se olhamos para a dicotomia "natural" vs. "artificial". Quando o ser humano decide "desligar" ou "desactivar" artificialmente a sua própria fertilidade, para poder ter actividade sexual sem procriação, entra em terreno não ético. Porque o acto sexual tem, objectivamente, duas finalidades que não se podem separar do acto: a unitiva e a procriativa. O acto sexual une marido e mulher e, ao mesmo tempo, é condição propícia para a procriação.
Ao introduzir barreiras artificiais no processo, o ser humano estraga ambas as finalidades:
a) a unitiva sai distorcida: no preservativo, não existe real união física; mas em qualquer método artificial, sai prejudicada sempre a finalidade unitiva: não há uma dádiva ao outro naquilo que é fundamental: a abertura ao outro, o afirmar, como corpo, ao outro, que estamos lá para assumir eventuais filhos que advenham dessa relação
b) a procriativa sai distorcida (mais óbvia, esta)
Eu diria que são boas razões para se considerar imoral a contracepção artificial. O termo "contracepção natural" é um termo equívoco: realmente, não há um "contra" envolvido, uma vez que não se interfere com o ritmo natural da fertilidade humana. Há a escolha dos momentos não férteis para a sexualidade, quando não se procura deliberadamente a procriação.
É completamente diferente regular a sexualidade pelos ritmos naturais do que usar barreiras físicas ou tomar "cocktails" hormonais que literalmente "desligam" a fertilidade.
Os outros temas ficam para depois!
Um abraço,
Bernardo
Bom dia, Bernardo.
“Se já compreende a posição contrária, mas não compreende porque razão a Igreja a defende, então tem que apresentar objecções e argumentos em contrário.”
Certo. Mas como o homem não está aqui, o que poderá ser interessante é confrontarmo-nos com esses possíveis argumentos e objecções. Ou não, até porque por vezes tem-se mais que fazer ;) Pode dar-se o caso de ele as ter apresentado noutro texto ou entrevista, não faço a mínima. Eu nem sabia que o homem era católico. Eu até tendo a pensar que, sendo o homem um parlamentar e um “televisivo”, ele só esteja a dar espectáculo da ordem do dia público, mas isto não passa de uma suspeição e de uma certa má fé minha perante o sistema geral destas coisas; por outro lado, se ele acredita em Deus, não creio que seja possível não ser enfrentado pela interpelação religiosa de quando em vez. Os juízos sobre outrém neste campo são muito difíceis.
“E não é um "memorando". É apenas uma síntese do Catecismo.”
Não consigo bem perceber a diferença prática. O que eu quis dizer é que a compreensão de algo, e a adesão ou não-adesão a tal de modo vital, não é passível de reduções “sintéticas”. Isto está muito na onda hoje em dia, há até quem discurse sobre uma obra a partir duma súmula ou crítica de jornal. Mas só muito excepcionalmente é que tal corta-mato corresponde a uma relação real com esse “algo”.
“Mas deve-se sempre advertir que, nessa aferição, o Papa tem primazia como Pastor da Igreja.”
Sem dúvida. Pobre homem… bem precisa que rezemos por ele;) Isto toca um ponto importante que por vezes é mal entendido, sobretudo por quem não tem vivência eclesial: há uma diferença entre apresentar problemas, dúvidas, incompreensões e até discordâncias fundamentadas, com “eu acho que o magistério ou o papa deviam agir ou estatuir assim ou cozido”. E não se trata de hipocrisia, trata-se de perceber que uma pastoral mundial é algo muito complexo, e para a qual podemos não estar votados nem ter consciência real suficiente para contextualizá-la na sua globalidade. Isto passa-se porque temos um hábito arreigado de “opiniatrice” que faz com que somos ilusoriamente chamados a ter uma posição final e decisiva sobre tudo, da agricultura à co-incineração. Por outro lado, sabemos que os papas, tal como Pedro, disparataram muitas vezes na história da Igreja. Nada disto é incompatível, ninguém disse que a realidade era uma coisa fácil de apreender. Ou que todos tenhamos respostas finais e decisivas para tudo.
“Porque o acto sexual tem, objectivamente, duas finalidades que não se podem separar do acto: a unitiva e a procriativa.”
Fora de uma imitação mística de um deus criador, ou de uma moral pontual da procriação e da coesão social em tempos atribulados, não vejo argumento ético nenhum que impeça a separação de ambas; o mal ético do prazer sexual “por si só” é tudo menos evidente.
“É completamente diferente regular a sexualidade pelos ritmos naturais do que usar barreiras físicas ou tomar "cocktails" hormonais que literalmente "desligam" a fertilidade.”
Pois. É aqui que eu embato. Não consigo compreender a diferença ética, visto que a regulação natural evita a função procriativa; a diferença é que é a própria natureza a elidi-la, e não um acto nosso, mas não vejo como é que isso estabelece uma diferença ética (de intenção, neste caso).
Um abraço
Caro Bernardo,
Parabéns, por mais este excelente post.
Abraço !
Caro Vítor,
«Certo. Mas como o homem não está aqui, o que poderá ser interessante é confrontarmo-nos com esses possíveis argumentos e objecções.»
Pois... mas eles não constam do texto da entrevista.
«Pode dar-se o caso de ele as ter apresentado noutro texto ou entrevista, não faço a mínima.»
Mas se vamos por aí, então é impossível criticar seja o que for, Vítor, sempre na expectactiva de que a pessoa que criticamos se tenha justificado algures...
«Eu nem sabia que o homem era católico.»
Eu prefiro votar num ateu coerente do que num católico orgulhoso da sua incoerência e dissidência.
«Eu até tendo a pensar que, sendo o homem um parlamentar e um “televisivo”, ele só esteja a dar espectáculo da ordem do dia público, mas isto não passa de uma suspeição e de uma certa má fé minha perante o sistema geral destas coisas;»
Não obstante, mesmo presumindo a sua boa fé, eu não consigo votar numa pessoa que diz estas barbaridades.
«“E não é um "memorando". É apenas uma síntese do Catecismo.”
Não consigo bem perceber a diferença prática.»
Um memorando seria um documento "em construção". Enquanto que o Catecismo contém matéria bastante sedimentada e sólida. O Compêndio é um resumo do Catecismo, logo, é igualmente sólido e sedimentado.
«O que eu quis dizer é que a compreensão de algo, e a adesão ou não-adesão a tal de modo vital, não é passível de reduções “sintéticas”.»
Se isso fosse verdade, então não rezaríamos o Credo como síntese da nossa fé, Vítor. A síntese não substitui a realidade. Mas qualquer boa síntese contém o essencial da realidade que sintetiza.
«Isto passa-se porque temos um hábito arreigado de “opiniatrice” que faz com que somos ilusoriamente chamados a ter uma posição final e decisiva sobre tudo, da agricultura à co-incineração.»
Isso existe, mas não há mal algum em ter uma opinião informada.
«Por outro lado, sabemos que os papas, tal como Pedro, disparataram muitas vezes na história da Igreja.»
Frase ambígua: nunca disparataram em matéria de ensino moral ou doutrinal.
«o mal ético do prazer sexual “por si só” é tudo menos evidente.»
Não é, obviamente, o prazer sexual que é mau eticamente. Insisto que só se faz juízo moral sobre pessoas, sobre agentes, e nunca sobre outras coisas, como o prazer sexual. O prazer sexual não pode ter "culpas"! No entanto, quem busca o prazer sexual desvirtuando o seu fim objectivo (unitivo e procriativo) está em erro moral: separa o que está unido em essência. É um pouco análogo ao que faziam os antigos romanos quando, pelo prazer de comer, procuravam desligar esse prazer da digestão (induzindo o vómito). É o mesmo tipo de imoralidade.
«Pois. É aqui que eu embato. Não consigo compreender a diferença ética, visto que a regulação natural evita a função procriativa»
Sim, evita, mas fá-lo usando as "regras do jogo". Se Deus quisesse evitar que os casais humanos recorressem aos métodos naturais, teria garantido à mulher uma fertilidade permanente.
«a diferença é que é a própria natureza a elidi-la, e não um acto nosso, mas não vejo como é que isso estabelece uma diferença ética (de intenção, neste caso).»
É porque, nesse caso, o casal não desvirtua a essência da sua sexualidade. A essência da sexualidade humana já contém o facto de que há um ciclo fértil, e de que há dias inférteis. Usar essa realidade não é desvirtuá-la.
Abraço
«Caro Bernardo,
Parabéns, por mais este excelente post.
Abraço !»
Muito obrigado pelas palavras de apoio!
Um abraço!
Bom dia, Bernardo
Espantoso... LOL
“Mas se vamos por aí, então é impossível criticar seja o que for, Vítor, sempre na expectactiva de que a pessoa que criticamos se tenha justificado algures...”
Não se trata disso. Trata-se de induções de argumentação e intenção, sem que outras interpretações sejam contempladas, senão a que dá jeito ao Bernardo para afirmar o seu próprio entendimento da coerência católica. Ou até sem uma busca e estudo mínimos do “autor” afim de compreendê-lo a partir dele mesmo.
“Se isso fosse verdade, então não rezaríamos o Credo como síntese da nossa fé, Vítor.”
Então, Bernardo, é por ser necessária a não-síntese que não basta decorar o Credo para ser baptizado. Por vezes até se requer catequese LOL
“(...)nunca disparataram em matéria de ensino moral ou doutrinal.”
Bem, aqui, tal como o Bernardo parece ter um entendimento diferente do Epicteto do que é um memorando, talvez tenha um entendimento diferente do que é um disparate. Não sei se a defesa e fundamentação ética da escravatura é um disparate ou não no contexto da época; mas põe sem dúvida problemas éticos relativamente a uma doutrina moral imutável do magistério católico. Por exemplo.
“Não é, obviamente, o prazer sexual que é mau eticamente.”
No contexto do diálogo significava evidentemente a relação sexual voluntária tendo como elo o prazer mútuo elidindo a acção procriativa.
“No entanto, quem busca o prazer sexual desvirtuando o seu fim objectivo (unitivo e procriativo) está em erro moral: separa o que está unido em essência. É um pouco análogo ao que faziam os antigos romanos quando, pelo prazer de comer, procuravam desligar esse prazer da digestão (induzindo o vómito). É o mesmo tipo de imoralidade.”
Não, este é um acto contrário em evidência imediata e viva, e não a uma essência, a uma “ideia de”, que não tenha evidências concretas (isto é, não há reacção imediata e orgânica da malignidade natural do prazer sexual agido não-procriativamente). Quanto muito seria o mesmo do que comer algo sem ter em conta a alimentação, como quando se degusta um gelado no verão depois dum jantar suficentemente alimentício.
“Se Deus quisesse evitar que os casais humanos recorressem aos métodos naturais, teria garantido à mulher uma fertilidade permanente.”
Uau! Certezas acerca do sentido divino... se Deus quisesse evitar que os humanos recorressem à escrita, teria garantido à humanidade uma memória permanente. Podem multiplicar-se os exemplos.
Um abraço, Bernardo, e boa semana
Caro Vítor,
«Ou até sem uma busca e estudo mínimos do “autor” afim de compreendê-lo a partir dele mesmo.»
Vítor, só pode estar a brincar comigo. Estamos a falar de um político e não de um filósofo ou de um teólogo. Paulo Rangel cometeu o pecado capital do político: falar do que não sabe para obter vantagem política.
«Então, Bernardo, é por ser necessária a não-síntese que não basta decorar o Credo para ser baptizado. Por vezes até se requer catequese»
Vamos tentar entender onde começou a nossa troca de ideias. Eu retomo o eixo da minha argumentação. Paulo Rangel não partilha da mesma fé da Igreja em muitos aspectos. Ele próprio o diz. E por isso eu o critiquei. Porque revela incoerência.
«Bem, aqui, tal como o Bernardo parece ter um entendimento diferente do Epicteto do que é um memorando, talvez tenha um entendimento diferente do que é um disparate.»
Pelo auxílio inabalável do Espírito Santo (promessa de Cristo), nunca um Papa defendeu uma heresia como sendo a verdade. E nunca um Papa defendeu a imoralidade como sendo moral. Logo, todo e qualquer Papa ensina verdades doutrinais e morais.
«Não sei se a defesa e fundamentação ética da escravatura é um disparate ou não no contexto da época; mas põe sem dúvida problemas éticos relativamente a uma doutrina moral imutável do magistério católico. Por exemplo.»
Fala de quem em concreto?
«No contexto do diálogo significava evidentemente a relação sexual voluntária tendo como elo o prazer mútuo elidindo a acção procriativa.»
Só que esse prazer e essa consequência procriativa fazem parte da mesma realidade, que alguns querem artificialmente separar por conveniência! É esgotante ter que repetir o óbvio vezes e vezes sem conta.
«(isto é, não há reacção imediata e orgânica da malignidade natural do prazer sexual agido não-procriativamente)»
Isto não é um argumento, Vítor. É uma opinião subjectiva. Você pode escrever que a sua pessoa não reage imediata e organicamente a essa malignidade. Outros, no entanto, vêem claramente o mal em questão.
«Quanto muito seria o mesmo do que comer algo sem ter em conta a alimentação, como quando se degusta um gelado no verão depois dum jantar suficentemente alimentício.»
Má analogia: a contracepção artificial impede o fim natural da procriação. De modo análogo, o hábito de alguns hedonistas vomitarem para poderem comer mais impede o fim natural da digestão. No seu exemplo, nada é impedido. O seu exemplo não se aplica ao prazer sexual usando contracepção artificial.
«Uau! Certezas acerca do sentido divino...»
Não são certezas: é o uso da razão.
«se Deus quisesse evitar que os humanos recorressem à escrita, teria garantido à humanidade uma memória permanente. Podem multiplicar-se os exemplos.»
Mau exemplo, de novo. A escrita serve para comunicar, também. Pessoas em locais distantes usam a escrita para comunicar. Pessoas que falam línguas diferentes usam a escrita numa língua comum para comunicar.
Eu insisto que é preciso alguma ginástica mental para justificar, moralmente, a contracepção artificial. Eu sei que a doutrina moral que a Igreja defende é uma doutrina exigente, como tudo o que diz respeito à realização plena do Homem. Mas há muito tempo que me desinteressei pelas novas tendências de amoralização da sociedade. Essas tendências, entre outros truques, apostam no catolicismo "laissez-faire", sustentando-o na linguagem política dos "católicos progressitas" versus "católicos conservadores". É a forma ideal de evitar ter que debater o verdadeiro e o falso, o certo e o errado.
«Um abraço, Bernardo, e boa semana»
Também para si!
Bom dia, Bernardo
"Vítor, só pode estar a brincar comigo."
Talvez um pouco e num ou outro ponto, no sentido da interpelação irónica em diatribe de eventual e mútuo equívoco: temos certas ideias prévias que por vezes nos fazem incompreender o que o outro nos diz, precisamente por colocá-lo nesse retrato prévio em que pensamos ter resolvido as questões que ele (o outro) nem está a pôr, ou não do mesmo modo; mas nunca em desprezo pelas posições ou argumentações do Bernardo, mesmo quando não concordo ou compreendo. Mas reterei a ironia, até porque o Bernardo tomou os exemplos diatríbicos como se fossem analogias explicitativas, quando eram o contrário: tratavam de mostrar que a analogia cultura/ natureza é extremamente problemática; por aí, teríamos de não comer pastilha elástica nem fumar cigarros, e muito menos jejuar, pois tudo isso é contrário ao fim natural da alimentação e ao uso ordenado da boca e do aparelho digestivo. Poderá aduzir-se que tal é indiferente eticamente, e a sexualidade não; ou que o razoável uso da pastilha, dos cigarros ou do jejum não aniquila a função da alimentação, apenas a suspende pontualmente ou dá outro uso aos seus agentes, tal como o método natural de não-fecundação, mas precisamente, isso é sair da analogia. Relembro que o problema posto era não ver a diferença ética entre aproveitar a suspensão da função procriativa dada pela natureza e suspender essa mesma função por um acto humano.
"Paulo Rangel cometeu o pecado capital do político: falar do que não sabe para obter vantagem política."
Como já disse, também penso que há fortes probabilidades de assim ser; mas nesse caso o melhor é nem votar, o problema é sistémico LOL Veja lá que nem tinha pensado nas eleições quando comecei a comentar. Bem, e claro que não se exige para este caso a investigação que requer a avaliação histórica de Pio XII ou a aferição de cristologia de Ratzinger; mas pareceu-me que quatro linhas de uma entrevista mal enjorcada não permitem aferição alguma, e que até o louco que vocifera na via pública merece mais atenção. No entanto, repito, não estava a pensar nas eleições e suas velozes e nebulosas aferições; foi porventura equívoco meu relativamente ao contexto do post.
"(…)nunca um Papa defendeu uma heresia como sendo a verdade."
Não estou certo do que o Bernardo entende por heresia, mas a infalibilidade papal foi anatemizada por um papa antes de ser conciliarmente afirmada. Eu agora não tenho aqui a livralhada, mas posso amanhã colocar a dica. A História do "seja anátema" é tudo menos clara e evidente numa consistência contínua.
(cont.)
"Fala de quem em concreto?"
Concedo que da "Dum diversas" à "Veritas Ipsa" vai um oceano dialéctico em busca da liberdade cristã; a questão da escravatura – não-cidadania, não-posse-de-si… - é complexa e não pode ser julgada descontextualizadamente: desde os metecos aos presos de guerra há uma fundamentação da "não-pessoa", e a Igreja, naturalmente navegou por estas águas. A biografia do Padre António Vieira também é interessante para o caso. Mas longe de mim instaurar aqui um estudo histórico, tão só focar um problema eclesiológico: a continuidade doutrinal não corresponde a uma consistência lógica entre todas as bulas, encíclicas e restantes documentos papais ao longo da História; há no entanto uma consistência de fundo, um pouco como certos exegetas se referem a uma macro-narrativa bíblica, isto é, um sentido que se mantém como orientador de fundo nas diversas dialécticas históricas ou narrativas. Os erros e acertos da Igreja fazem parte desse confronto com o sentido messiânico de Cristo; pensar que ela detém sempre esse sentido em clareza e coerência é que já me parece pouco histórico; até porque, para além das vicissitudes da História, o sentido messiânico é um mistério que aponta para a plenitude do humano e da criação em Deus, o que por definição, nenhuma época histórica pode deter. Aqui entraríamos no mistério a-histórico da Igreja.
"É esgotante ter que repetir o óbvio vezes e vezes sem conta."
Não é óbvio para mim; mas concedo que repetir os mesmos argumentos é esgotante para ambas as partes; pode tentar perceber porquê que não é óbvio para o desgraçado que tem à sua frente: a separação não é artificial, pois nada na realidade concreta limita a sexualidade à procriação, tal como nada limita a linguagem à comunicação ou a culinária à alimentação: nós somos seres culturais, re-inventamos a natureza abrindo-lhe novos sentidos e produzindo novas situações. A ética não é uma adequação ao natural ou ao primeiro sentido das coisas e actos, mas a orientação cultural do humano em devir interrogante(assim como a estética, aliás).
"Essas tendências, entre outros truques, apostam no catolicismo "laissez-faire", sustentando-o na linguagem política dos "católicos progressitas" versus "católicos conservadores". É a forma ideal de evitar ter que debater o verdadeiro e o falso, o certo e o errado."
Cuidado com os retratos prévios. Assino por baixo esta sua declaração ;)
De resto, penso que se estão aqui a falar de coisas a mais em simultâneo para a minha nhurra cabeça, que padece de tropeços e perplexidades perante a complexidade de tanta coisa; é que depois só dá para breves notas sobre cada ponto, para além de eu não ser nem historiador nem teólogo.
abraço!
PS: “Eu sei que a doutrina moral que a Igreja defende é uma doutrina exigente, como tudo o que diz respeito à realização plena do Homem.”
Aqui a minha questão é que elidindo a “imago dei” muitas exigências caem por terra, ou então sou eu que não lhes vejo fundamento ateológico; eu sou cristão, mas se se invoca uma “ética natural” ou “racional”, está-se evidentemente a suspender tal particularidade religiosa. A conversa sobre a sexualidade na sua dinâmica com a “imago dei” seria outra conversa.
"Outro problema para o Paulo Rangel católico: os católicos não se opõem ao "casamento gay" apenas porque isso "usurparia" uma palavra que lhes é cara. Eles opõem-se ao "casamento gay" porque se opõem à homossexualidade como tendência imoral, ou seja, errada."
É interessante que alguma da homossexualidade é inata... em alguns animais tb o é: como nos bonobos.
E agora? Quem nasce homossexual é errado e imoral? Será que não pode ter um projecto de vida feliz, inclusive com prazer sexual? A culpa de nascer sexual é de quem? de Deus, dos Pais, dele?
Imagina que nascias homossexual... suicidavas-te por seres um erro?
"Porque o acto sexual tem, objectivamente, duas finalidades que não se podem separar do acto: a unitiva e a procriativa.”
Mas não é isso que fazem precisamente os seguidores dos ditos métodos pseudo-naturais?
Se só praticam o coito na fase anovulatória da mulher, precisamente porque sabem que nessa altura não há hipótese de gravidez, então nã estão claramente a dissociar a sexualidade da procriação?
"Eu defendo que questões de moral e de doutrina são basilares. Basta ver que é precisamente sobre estas questões que se ergue o dogma da infalibilidade pontifícia."
A proibição da contracepção eficaz é uma doutrina basilar a que propósito?
E está sob a capa da infalibilidade pontifícia porque carga de água?
2 - "Eu sei que a doutrina moral que a Igreja defende é uma doutrina exigente, como tudo o que diz respeito à realização plena do Homem.”
Afirmar que a proibição da utilização de pílula como método contraceptivo diz respeito à dignificação do homem é tão disparatado como afirmar que se devem proibir moralmente o uso de antibióticos porque a sua utilização viola uma qualquer lei natural.
E viola concerteza - afinal, nada mais natural do que a morte de pessoas por doenças infectocontagiosas.
Por outro lado, nem tudo o que é exigente é verdadeiro.
Regra geral é precisamente o contrário: nada mais falso que os radicalismos morais enviesados de bons princípios... Conduzem quase sempre a atentados à dignidade humana.
Ah, e a propósito de doutrinas fundamentais imutáveis e da infalibilidade papal, assim de repente lembrei-me de duas ou três que a história e os papas foram mudando consoante os tempos.
Caro Bluesmile,
«Mas não é isso que fazem precisamente os seguidores dos ditos métodos pseudo-naturais?»
Não, não é.
Os métodos naturais não são "pseudo-naturais". Não há nada "pseudo" porque não há nada de artificial ou contra-natural neles.
«Se só praticam o coito na fase anovulatória da mulher, precisamente porque sabem que nessa altura não há hipótese de gravidez, então nã estão claramente a dissociar a sexualidade da procriação?»
Não, não estão.
Se tivesse lido o ponto 16 da Humanae Vitae teria tido acesso à explicação da Igreja sobre essa questão. Evidentemente, se o ciclo fértil da mulher já prevê períodos férteis e não férteis, então é porque a sexualidade humana está assim constituída. Logo, o sistema reprodutor da mulher é indissociável da sexualidade. Por outras palavras, é intrínseco à natureza humana que existam períodos férteis e períodos inférteis.
Isto até é simples...
As pessoas é que o tornam complicado, por conveniência.
«A proibição da contracepção eficaz é uma doutrina basilar a que propósito?»
O ensinamento moral da Igreja constitui uma das suas vocações centrais. Tudo o que diz respeito à moral constitui doutrina basilar da Igreja.
«E está sob a capa da infalibilidade pontifícia porque carga de água?»
Esta é simples: porque a Humanae Vitae, como carta encíclica, diz respeito ao magistério ordinário do Sumo Pontífice, logo, está sob a alçada da infalibilidade garantida pela graça do Espírito Santo. Em matéria de doutrina e moral, o Sumo Pontífice está dotado dessa graça da infalibilidade.
«Afirmar que a proibição da utilização de pílula como método contraceptivo diz respeito à dignificação do homem é tão disparatado como afirmar que se devem proibir moralmente o uso de antibióticos porque a sua utilização viola uma qualquer lei natural.»
Falácia: má comparação.
O uso de remédios visa corrigir uma perturbação da normalidade. Não é normal ao homem estar doente, logo o remédio repôe essa normalidade. Por outro lado, é perfeitamente normal que a mulher tenha o seu ciclo fértil, sem que este tenha que ser totalmente perturbado por "cocktails" hormonais.
«E viola concerteza - afinal, nada mais natural do que a morte de pessoas por doenças infectocontagiosas.»
Penso que não partilhamos da mesma noção de "normalidade". A normalidade de um ser vivo é estar vivo e saudável. No ser humano (e em todos os seres vivos), a doença é sempre uma anormalidade, ou seja, uma disrupção da normalidade.
«Por outro lado, nem tudo o que é exigente é verdadeiro.
Regra geral é precisamente o contrário: nada mais falso que os radicalismos morais enviesados de bons princípios... Conduzem quase sempre a atentados à dignidade humana.»
Hmmm.... Realmente, nada mais atentatório contra a dignidade humana do que a Humanae Vitae... Que disparate!
Porque não escolhe outros alvos? Acha que faz sentido demonizar o ensinamento moral de Paulo VI e da Igreja? Não tem outros alvos para onde apontar?
«Ah, e a propósito de doutrinas fundamentais imutáveis e da infalibilidade papal, assim de repente lembrei-me de duas ou três que a história e os papas foram mudando consoante os tempos.»
Quais?
Gostaria de conhecer um só caso de quebra da infalibilidade papal.
Cumprimentos,
Bernardo
infalibilidade papal?
é isso, falem la do (sinodo do cadaver) papas a julgar papas.
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