sexta-feira, 19 de março de 2004

O diálogo soarista

Mário Soares sugere que se dialogue com a Al-Qaeda.

Mas que boa ideia!
O Governo deveria garantir, desde já, um Falcon para levar o nosso Soares ao encontro dos dirigentes da Al-Qaeda. Eles andam sempre escondidos, mas certamente que arranjariam uns minutos para falar com o Mário Soares. Afinal, o Mário Soares é o Mário Soares, caramba! O senhor Bin Laden que arranje uns minutos da sua agenda.

Receio, contudo, que a conversa viesse a ser curta, fosse por problemas linguísticos, fosse pelo facto de Osama bin Laden ter uma kalashnikov e Mário Soares não...

Bernardo

P.S.: Agora mais a sério, vale a pena ler o artigo do Público... Diz Soares:

"Como conseguimos a paz nas ex-colónias? Tivemos que falar com os que faziam a guerra, na altura também considerados terroristas"

Francamente... Que lata!
Há quanto tempo não vai Mário Soares às ex-colónias que ele "libertou"?
Gostaria de ver os seus dotes dialogantes, aplicados a balas perdidas numa qualquer esquina do Huambo, em Angola...

domingo, 14 de março de 2004

Simbolismo tradicional I - «La réforme de la mentalité moderne»

Este artigo de René Guénon foi publicado inicialmente na revista Regnabit em Junho de 1926. Foi incorporado mais tarde na resenha póstuma "Symboles de la Science Sacrée".

Visto que a obra de Guénon está protegida por copyright até ao ano 2021 pelo menos (facto que Guénon certamente detestaria!), vimo-nos obrigados a apresentar apenas traduções de pequenos excertos do artigo. Convidamos o leitor interessado a adquirir a obra referida, que consideramos ser de grande utilidade.

A tradução do francês para português é feita por mim, e é, por essa razão, de carácter amador. As minhas desculpas prévias pelas eventuais incorrecções.

«A civilização moderna aparece na história como uma verdadeira anomalia: de todas as que conhecemos, ela é a única que se desenvolveu num sentido puramente material, a única também que não se apoia em nenhum princípio de ordem superior. Este desenvolvimento material que se desenrola há vários séculos, e que se acelera cada vez mais, foi acompanhado de uma regressão intelectual que ele é incapaz de compensar. Trata-se, bem entendido, da verdadeira e pura intelectualidade, que também poderiamos chamar de espiritualidade, sendo que nos recusamos a dar este nome àquilo que os modernos se têm sobretudo aplicado: a cultura das ciências experimentais, com vista a aplicações práticas às quais elas são susceptíveis de dar lugar. Um só exemplo poderia permitir medir a extensão desta regressão: a Summa Theologica de S. Tomás de Aquino era, no seu tempo, um manual para o uso de estudantes; onde estão hoje os estudantes que seriam capazes de a aprofundar e de a assimilar?».

«Um Oriental não pode admitir uma organização social que não repouse em princípios tradicionais; para um muçulmano, por exemplo, a legislação inteira não é senão uma dependência da religião. Em tempos, também assim foi no Ocidente: basta lembramo-nos do que foi a Cristandade na Idade Média; mas, hoje, as relações estão invertidas. Com efeito, vemos agora a religião como um simples facto social; em vez da ordem social inteira ser associada à religião, esta contrariamente, quando ainda consentimos dar-lhe um lugar, não é mais vista senão como um qualquer dos elementos que constituem a ordem social; e quantos católicos aceitam esta forma de ver sem a menor dificuldade!»

«Praticamente, crentes e não crentes comportam-se quase da mesma maneira; para muitos católicos, a afirmação do sobrenatural não tem senão um valor teórico, e ficariam embaraçados se tivessem que constatar um facto miraculoso. É o que podemos chamar de um materialismo prático, um materialismo de facto; não é este mais perigoso do que o materialismo admitido, precisamente porque aqueles que por ele são atingidos não têm sequer consciência?»

«Seria contudo bem fácil demonstrar que a religião e a ciência não podem entrar realmente em conflito, pela simples razão de que elas não pertencem ao mesmo domínio. Como não ver o perigo que há em parecer procurar, para a doutrina que diz respeito às verdades imutáveis e eternas, um ponto de apoio no que há de mais variante e incerto?
E que pensar de certos teólogos cristãos que estão afectados do espírito "cientista" ao ponto de se crerem obrigados a ter em conta, em maior ou menor medida, os resultados da exegese moderna e da "crítica dos textos", quando seria fácil, na condição de ter uma base doutrinal um pouco segura, fazer aparecer a sua inanidade? Como não nos apercebermos que a pretensa "ciência das religiões", tal qual ela é ensinada nos meios universitários, jamais foi na realidade outra coisa do que uma máquina de guerra dirigida contra a religião, ou de forma mais geral, contra tudo o que ainda possa subsistir do espírito tradicional, que querem naturalmente destruir aqueles que dirigem o mundo moderno num sentido que só pode terminar numa catástrofe?»


Não posso senão recomendar a leitura do artigo na íntegra e na língua original, visto que apenas apresentei alguns excertos do mesmo.

Bernardo

O conflito "Ciência" vs. "Religião"

Há muito que este tema se tornou num dos "clássicos" temas de discussão.
E a discussão parece sempre eterna.
Mas tal sucede porque o problema está mal colocado.

Como diz o nosso amigo Rama Coomaraswamy, no seu excelente artigo "The Fundamental Nature of the Conflict Between Modern and Traditional Man - Often Called the Conflict Between Science and Faith":

«Is often said that there is an irreconcilable conflict between Religion and Science. Unfortunately, such a characterization falsifies the issues. The conflict is not between Religion and Science, but between the attitudes and beliefs of "traditional" man and his "modern" counterpart. The confusion arises because the latter, with little if any justification, likes to consider himself "scientific".»

Poderíamos ser tentados a ver nas palavras de Rama Coomaraswamy uma postura demasiado áspera.
Mas damo-nos conta da pertinência destas palavras quando convivemos mais de perto com os argumentos daqueles que, fanaticamente agarrados à inevitabilidade da omnipotência da Ciência Moderna, atacam a Tradição e as suas doutrinas, classificando-as de serem posturas primitivas.

Na compilação póstuma "Symboles de la Science Sacrée" (Éditions Gallimard, 1962) estão reunidos num grande conjunto uma série de artigos de René Guénon, que se encontravam "dispersos" em vários periódicos, nomeadamente Regnabit (1925-1927), Le Voile d'Isis (1929, 1931, 1934), Études Traditionelles (1936-1950) e Cahiers du Sud (1947).

Por isso, vou iniciar a partir de hoje uma sequência de pequenos artigos com excertos desta compilação.

A ênfase será dada àqueles artigos de Guénon que versam sobre o simbolismo tradicional e algumas das suas aplicações gerais. Acreditamos que esta compilação póstuma, bem como toda a obra de René Guénon, é de um valor inestimável e de grande utilidade para a situação de desordem intelectual em que nos encontramos nos dias de hoje.

Bernardo

terça-feira, 9 de março de 2004

Conferência Episcopal Portuguesa: "Meditação sobre a vida"

A Conferência Episcopal Portuguesa publicou um texto a 5 de Março último relativo à eternamente polémica questão do aborto e da sua penalização.

É um documento claro, conciso, e pleno de lucidez.
Antes de escrever um pouco sobre o documento, queria deixar bem claro que há questões relativamente ao aborto que ainda me deixam indeciso, e sem saber que posição tomar. Por isso, que não me ataquem de fanatismo, visto que se trata de uma questão complexa e que merece amplo debate.

Deixo agora alguns excertos do texto, cuja pertinência é altíssima:

«Tal como outras manifestações de violência e de desrespeito pela vida do próximo, o drama do aborto coexiste com a dignidade da vida, sobretudo com a grandeza do dom de a poder comunicar. O que é relativamente novo, mas realmente um retrocesso, é a tentativa de o “normalizar”, tirando-lhe a gravidade ética de que se reveste, porventura considerá-lo um direito da mulher-mãe.»

É esta "normalização" que me parece particularmente aberrante. Na minha opinião, esta tendência nociva de "normalização", que vemos manifestar-se constantemente nos vários quadrantes da sociedade, resulta de uma compreensão errada do cerne da questão: a da definição de ser humano e de início da vida.

Todos fogem a esta questão. Veja-se este triste exemplo de cobardia e inacção política do Governo, patente nas declarações recentes de Guilherme Silva:

«A definição rigorosa do conceito vida não é fácil, ultrapassa a biologia e envolve a ética e até a filosofia. Há questões em aberto que estão a ser discutidas e não me parece que devamos dar um passo nesse sentido», disse ao DN o líder parlamentar do PSD, Guilherme Silva. - Diário de Notícias, Terça-feira, 9 de Março de 2004

Todos fogem à questão, menos a Conferência Episcopal Portuguesa, que marca aqui uma diferença capital:

«O ponto crucial de toda a polémica acerca da legalização do aborto consiste nisto: o embrião humano e o feto são ou não um ser humano desde o primeiro momento?»

O cerne do desafio da CEP está aqui:

«No estádio actual da ciência, começa a ser incompreensível que um “Estado de Direito”, cuja essência é a defesa e a promoção da vida, não tenha uma posição oficial em relação a esta questão. Para nós ela é clara: sempre que uma pessoa tem de tomar uma decisão, seja ela qual for, acerca do aborto, toma uma decisão, na responsabilidade da sua liberdade, acerca da vida ou da morte de um ser humano, que por estar no início da caminhada da vida, tem direito a que o deixem e ajudem a percorrer esse caminho.»

A reacção patética do Executivo e da Oposição vem descrita no referido artigo do DN:

Os sociais-democratas entendem que a actual legislação, que define «já um conceito de vida em termos jurídicos», é suficiente e os socialistas defendem que discutir agora esta questão seria «regressar a um período que está ultrapassado»

O que me faz confusão é que aquele hemiciclo tem como tarefa legislar e governar a nossa nação, e aliena-se das questões mais importantes. Ou seja, vai ficar tudo na mesma. A questão nunca vai ser analisada com rigor nem profundidade.

O que deveria ser feito?

Deveria primeiro definir-se onde começa a vida humana - pessoalmente, parece-me óbvio que principia na concepção, mas outras definições poderiam ser estudadas e debatidas. O Estado português deveria ter uma definição clara nesta matéria, de tal forma ela é basilar.

Sendo o aborto um atentado contra a vida humana, desde o momento em que ela é concebida como tal, seria simples classificar o aborto como "crime".

Como todos os crimes, deveria haver lugar a uma penalização que tomasse em consideração eventuais atenuantes, relevantes de condicionantes psíquicas e sociais da pessoa que o tivesse praticado.

A CEP é clara neste aspecto. À questão "Será possível despenalizar o aborto?", responde:

«Isso corresponde a perguntar se é possível, do ponto de vista legal, definir um crime sem lhe atribuir uma pena. Não nos compete pronunciar-nos sobre essa questão de natureza jurídica. Parece-nos, no entanto, que o caminho não é "despenalizar", mas considerar, em sede de julgamento, eventuais circunstâncias atenuantes, até porque o grau de responsabilidade não é o mesmo, quer entre as mulheres que abortam, quer entre aqueles que as condicionam e contribuem para o aborto.
Seja qual for a resposta dada a esta questão, ela não poderá fundamentar qualquer forma de legalização do aborto que constitua um direito da mulher.»


Há muito tempo que Portugal não vê uma tomada de posição tão clara, vital, útil e pertinente como esta tomada pela Conferência Episcopal Portuguesa.
Minimizá-la ou desprezá-la é bem mais do que burrice ou ignorância. É de uma extrema incoerência por parte de quem governa e dita as leis neste país, e reflecte uma moral ambígua e uma ética frouxa e manipulável.

Sobretudo, paremos de usar o ridículo pseudo-argumento de que os outros "países civilizados" já o fazem!

Bernardo

segunda-feira, 8 de março de 2004

Comentários

Foi adicionada a possibilidade de fazer comentários ao que por cá se escreve.
Convidam-se os leitores a que usem e abusem (dentro dos limites da decência) desta ferramenta!

Bernardo

sexta-feira, 5 de março de 2004

"A superstição da Ciência"

La Superstition de la Science é um dos capítulos do livro Orient et Occident (1924), de René Guénon.

Seria excelente se todos aqueles que trabalham no âmbito das ciências modernas tivessem conhecimento da obra de Guénon. Deixo aqui alguns excertos:

"Il est assez étrange, dira-t-on, de mettre la raison au-dessus de tout, de professer pour elle un véritable culte, et de proclamer en même temps qu'elle este essentiellement limitée; cela est quelque peu contradictoire, en effet (...) Nous aussi, nous disons que la raison est bornée et relative; mais, bien loin d'en faire le tout de l'intelligence, nous ne la regardons que comme une de ses portions inférieures, et nous voyons dans l'intelligence d'autres possibilités qui dépassent immensément celles de la raison." - pág. 47, op. cit.

Assim, nada mais contraditório que:

1. Admitir que a razão é limitada;
2. Colocá-la nos píncaros das capacidades intelectuais do ser humano.

Concordando com o primeiro ponto, verificamos que os problemas começam com a afirmação do segundo ponto, que se tornou num dos dogmas modernos, o "racionalismo".

A limitação do conhecimento, imposta pela própria característica limitada da razão humana é, sem que muitos cientistas o suspeitem, a razão de ser da postura "sistemática". Toda a construção sistemática traz, em si, uma limitação intrínseca, a de ser um "conceito fechado". Regressemos às palavras de Guénon:

"Cet esprit de négation, ce n'est pas autre chose que l'esprit systématique, car un système est essentiellement une conception fermée; et il en est arrivé à s'identifier à l'esprit philosophique lui-même, surtout depuis Kant, qui, voulant enfermer toute connaissance dans le relatif, a osé déclarer expressément que «la philosophie est, non un instrument pour étendre la connaissance mas une discipline pour la limiter», ce qui revient à dire que la fonction primordiale des philosophes consiste à imposer à tous les bornes étroites de leur propre entendement." - pág. 48, op. cit., Guénon cita Kant da obra Kritik der reinen Vernunft ("Crítica da Razão Pura").

Assim, o próprio Kant já está a explicar o trabalho filosófico como uma forma de limitar o conhecimento, mais do que o aumentar. Que postura tão diametralmente oposta da filosofia clássica!

Bernardo

quarta-feira, 3 de março de 2004

A filosofia moderna e o conceito de "alma"

Em tempos que já lá vão, filósofos como Platão e Aristóteles, apesar das suas divergências, tinham uma noção correcta acerca da "alma", que era um dos temas importantes da filosofia.

Hoje em dia, este conceito passou a ser visto como pertencendo ao domínio da religião.
Por esta razão, a partir dos primórdios do racionalismo, poucos foram os filósofos que mostraram a posse de uma noção adequada de "alma".

No entanto, a mais breve leitura ao texto "De Anima" de Aristóteles, que até nem é extenso, bastaria para compreender que a "alma" é aquilo que "anima" os seres vivos, como a própria etimologia latina da palavra o indica. O facto dos seres vivos estarem "animados" de forma diferente (por exemplo o homem é dotado de intelecto mas o eucalipto não) deriva da existência de diversas faculdades na alma, que nem sempre estão presentes em todos os seres, ou quando o estão, nem sempre estão do mesmo modo.

Porque "alma" é o que anima os seres vivos, é trivial concluir que qualquer ser vivo possui alma.
Assim se vê que não se trata de um termo exclusivamente religioso, podendo (e devendo) ser usado no âmbito da filosofia. Pouparia sem dúvida muitas confusões modernas.
A mentalidade moderna confunde sobretudo "alma" com "espírito", que é outra coisa completamente diferente.

Termino com um excerto de António Telmo, da sua "História Secreta de Portugal", onde se lê na pág. 134:

«O ódio à natureza ou, num grau menor, a indiferença pela natureza têm como contraponto a criação de condições que permitam anular os sentimentos que resultam da ideia de Deus presente na Natureza (Shekinah). Seja o medo e o espanto. O espanto que Platão e Aristóteles punham como origem da filosofia e o temor dos Deuses que o segundo considerava o princípio da tragédia, foram expurgados da alma do homem, exconjurados pela filosofia moderna, a qual, ao interpretá-los como produções da subjectividade enganada, cortou o contacto com os "mistérios" do destino e da ideia. A filosofia moderna da história, assente sobre o elogio do homem civilizado (como se os contemporâneos de Aristóteles fossem selvagens!), atribui aqueles sentimentos a um estado de alma rudimentar e primitivo. Órgãos do nosso conhecimento subtil, foram amputados. Equivale isto a defender a cegueira física e o ensurdecimento do homem numa filosofia que considerasse os dados da vista e do ouvido perturbadores de um conhecimento real do mundo. Como só a razão constrói um sistema de certezas, tudo quanto apreendemos e aprendemos pelos sentidos ou pelos sentimentos, por mais evidente que se afigure, deve ser banido do domínio da ciência e só admitido como dado suspeito que deve passar pela "crítica da razão pura".
Pensava, pelo contrário, Aristóteles que a razão não deve proceder sem a experiência da alma.» (negrito meu)

Bernardo

terça-feira, 2 de março de 2004

Descartes e a evidência

Descartes marca um ponto de viragem na filosofia. Sem querer colocar em Descartes toda a culpa na deriva intelectual da filosofia moderna, consideramos que este filósofo teve um papel decisivo neste processo.

Uma questão fulcral é a da evidência.
Socorro-me agora do estudo introdutório feito pelos professores da Universidade de São Paulo, Luiz Jean Lauland e Mario Bruno Sproviero, à obra "Verdade e Conhecimento" de S. Tomás de Aquino.

Neste estudo introdutório, lê-se na página 121:

«Descartes, verdadeiro fundador da filosofia moderna, estabeleceu como critério da verdade a percepção clara e distinta da coisa, considerando o único princípio em que deve fundamentar-se a verdade»

Ora isto é já, para Descartes, um ponto de partida muito frágil. Para ele, o critério repousa numa percepção que é de ordem individual. Ou seja, calha ao indivíduo a tarefa de se aperceber clara e distintamente das coisas.

É claro que Descartes se deu conta deste problema, e são suas estas palavras:

«Duvidaremos mesmo das demonstrações matemáticas e seus princípios, ainda que estes sejam muito evidentes, pois existem homens que se enganaram meditando a respeito dessas matérias e sobretudo porque ouvimos dizer que Deus, que nos criou, pode fazer quanto lhe agrade.»

No fundo, Descartes dá-se conta da fragilidade do seu critério de verdade. Ele reconhece que a percepção do indivíduo humano é falível. E tenta resolver esta questão, apelando ao critério do consenso universal.

Assim, para Descartes, se "muitos" indivíduos concordam numa dada percepção de uma coisa, tal facto reforça a clareza e a distinção da ideia da coisa.

Trata-se de uma afirmação que muitos diriam ser "de bom senso".
Só que o senso comum, por muita qualidade que apresente neste ou naquele indivíduo, não deixa nunca de ser de cariz individual, e não universal.

É o que reconhecem os autores referidos, mais adiante no texto:

«Deve-se insistir que o consenso universal não é a causa, mas o efeito da verdadeira evidência: uma proposição não é evidentemente verdadeira porque todos a admitem, mas todos a admitem, ou deveriam admiti-la, se é evidentemente verdadeira.»

A partir de Descartes nascerá a corrente racionalista, que como vimos, apresenta este ponto de partida "coxo". A postura de Descartes nasce destes dois pressupostos falsos:

a) todas as coisas verdadeiras têm que ser claras e distintas
b) o consenso dos indivíduos relativo à percepção de uma coisa é critério de validade

O próprio Descartes explicita o segundo pressuposto de forma muito clara:

«A outra razão que prova a clareza dos princípios é que foram conhecidos em todas as épocas e até aceites como exactos e isentos de dúvidas pelos homens (...)»

Com Descartes, o caminho para a derrocada da filosofia estava aberto.
Pensadores como Hugues F. R. de Lamennais (1782-1854) iriam popularizar o critério do consenso universal, mas de forma mais radical e definitiva: se há consenso então há verdade.

Quando sucede (ou deveria suceder) precisamente o contrário!
O consenso é efeito, e não causa da verdade!

Esta confusão entre causa e efeito marca, como dissemos, um ponto de viragem na filosofia, e abre o caminho para a maior parte da filosofia moderna e contemporânea. E pela filosofia se mede o estado intelectual das ciências...

Bernardo

Nota: as citações de Descartes provêm da obra "Princípios da Filosofia".

segunda-feira, 1 de março de 2004

Skeptic's Annotated Bible (and Quran)

Os nossos críticos ateus do www.ateismo.net enviaram-nos uma sugestão de leitura:

Skeptic's Annotated Bible (and Quran)

Devo dizer que foram muito divertidos os 3 minutos que perdi naquele site. Claro que o site não me foi recomendado como sendo algum tipo de argumentação ateia, ou refutação do teísmo, mas sim como um tipo de graçola.

O site é, sem dúvida, impressionante pela enorme quantidade de trabalho que lá se encontra.
Falamos de imenso trabalho. Horas e horas. Comentar toda a Bíblia e todo o Corão é um trabalho que mete respeito. Mas respeito pela sua dimensão, não pela sua qualidade.

A utilidade do trabalho é quase nula.
Os preconceitos dos comentários são gritantes.
A ignorância dos significados e do simbolismo é quase total.

É como se alguém se decidisse a anotar a lista telefónica de Lisboa, escrevendo em todas as entradas uma laracha sobre a pessoa em questão.

Fez-me lembrar uma tirada genial do filme "Um Peixe Chamado Wanda".

Wanda está a insultar Otto, dizendo-lhe que ele é como um macaco. Já não me recordo da forma concreta do insulto...
E Otto responde-lhe, com um ar pomposo:

"Apes don't read philosophy!"

Ao que Wanda retorque:

"Yes they do, Otto! Yes, they do... They just don't understand it..."

Bernardo