terça-feira, 2 de março de 2004

Descartes e a evidência

Descartes marca um ponto de viragem na filosofia. Sem querer colocar em Descartes toda a culpa na deriva intelectual da filosofia moderna, consideramos que este filósofo teve um papel decisivo neste processo.

Uma questão fulcral é a da evidência.
Socorro-me agora do estudo introdutório feito pelos professores da Universidade de São Paulo, Luiz Jean Lauland e Mario Bruno Sproviero, à obra "Verdade e Conhecimento" de S. Tomás de Aquino.

Neste estudo introdutório, lê-se na página 121:

«Descartes, verdadeiro fundador da filosofia moderna, estabeleceu como critério da verdade a percepção clara e distinta da coisa, considerando o único princípio em que deve fundamentar-se a verdade»

Ora isto é já, para Descartes, um ponto de partida muito frágil. Para ele, o critério repousa numa percepção que é de ordem individual. Ou seja, calha ao indivíduo a tarefa de se aperceber clara e distintamente das coisas.

É claro que Descartes se deu conta deste problema, e são suas estas palavras:

«Duvidaremos mesmo das demonstrações matemáticas e seus princípios, ainda que estes sejam muito evidentes, pois existem homens que se enganaram meditando a respeito dessas matérias e sobretudo porque ouvimos dizer que Deus, que nos criou, pode fazer quanto lhe agrade.»

No fundo, Descartes dá-se conta da fragilidade do seu critério de verdade. Ele reconhece que a percepção do indivíduo humano é falível. E tenta resolver esta questão, apelando ao critério do consenso universal.

Assim, para Descartes, se "muitos" indivíduos concordam numa dada percepção de uma coisa, tal facto reforça a clareza e a distinção da ideia da coisa.

Trata-se de uma afirmação que muitos diriam ser "de bom senso".
Só que o senso comum, por muita qualidade que apresente neste ou naquele indivíduo, não deixa nunca de ser de cariz individual, e não universal.

É o que reconhecem os autores referidos, mais adiante no texto:

«Deve-se insistir que o consenso universal não é a causa, mas o efeito da verdadeira evidência: uma proposição não é evidentemente verdadeira porque todos a admitem, mas todos a admitem, ou deveriam admiti-la, se é evidentemente verdadeira.»

A partir de Descartes nascerá a corrente racionalista, que como vimos, apresenta este ponto de partida "coxo". A postura de Descartes nasce destes dois pressupostos falsos:

a) todas as coisas verdadeiras têm que ser claras e distintas
b) o consenso dos indivíduos relativo à percepção de uma coisa é critério de validade

O próprio Descartes explicita o segundo pressuposto de forma muito clara:

«A outra razão que prova a clareza dos princípios é que foram conhecidos em todas as épocas e até aceites como exactos e isentos de dúvidas pelos homens (...)»

Com Descartes, o caminho para a derrocada da filosofia estava aberto.
Pensadores como Hugues F. R. de Lamennais (1782-1854) iriam popularizar o critério do consenso universal, mas de forma mais radical e definitiva: se há consenso então há verdade.

Quando sucede (ou deveria suceder) precisamente o contrário!
O consenso é efeito, e não causa da verdade!

Esta confusão entre causa e efeito marca, como dissemos, um ponto de viragem na filosofia, e abre o caminho para a maior parte da filosofia moderna e contemporânea. E pela filosofia se mede o estado intelectual das ciências...

Bernardo

Nota: as citações de Descartes provêm da obra "Princípios da Filosofia".

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