(publicado em simultâneo no Afixe)
Pio XII - Eugenio Pacelli - 1876-1958
Já lá vão dois anos que li o "Hitler's Pope", de John Cornwell. Foi um livro que vendeu bem, e teve até honras de tradução portuguesa - "O Papa de Hitler" (precisamente porque venderia bem, traduziu-se). Por cá, sei que muitas pessoas o leram, e quem o leu entenderá o que eu vou dizer de seguida.
Lido a uma velocidade estonteante, o livro de John Cornwell foi escrito para não deixar margem para dúvidas ao novato. Eu era um novato. Ao final do livro não tinha dúvidas. Eu tinha-me transformado num anti-Pio XII. Mas um novato nunca dá por nada. Não sabe ler nas entrelinhas. Lê tudo. Papa tudo. E eu dizia a toda a gente que Pio XII era um dos piores papas do século XX, e toca a andar...
Naturalmente, e graças a Deus, as pessoas amadurecem e eu não fui excepção. Navegando na Internet, já se tornava cada vez mais frequente encontrar páginas refutatórias destes ataques a Pio XII, pelo que, a pouco e pouco, comecei a suspeitar de que o nosso amigo John Cornwell tinha deturpado um bocadito as coisas.
Pode-se datar o início da campanha anti-Pacelli à peça de teatro "O Vigário" do escritor alemão Rolf Hochhuth (1963). Sim, porque fique-se a saber que, desde o final da guerra em 1945 até 1963, os ataques a Pacelli eram praticamente inexistentes. Antes pelo contrário, os louvores sucederam-se a uma velocidade estonteante, e começaram mesmo a meio da Guerra, como se poderá ver mais abaixo.
De 1963 até aos dias de hoje, a avalanche anti-Pio XII tem crescido. Os media, como sempre, gostam de dar uns retoques surrealistas para apimentar a discussão. O filme "Amen" de Constantin Costa-Gravas, é um belo exemplo desses processos mediáticos de profunda deturpação histórica, quando o que conta é o que vende, e o que vende é o "papa de Hitler".
Da esplêndida obra de Matteo L. Napolitano e Andrea Tornielli, "Il Papa che salvò gli ebrei" (2004), podem-se agora tirar ilacções totalmente diferentes daquelas que os media têm tentado impor à mente do "consumidor". Estes dois autores, aproveitando-se da abertura recente do Arquivo Secreto do Vaticano relativo aos anos "quentes" do pré e do pós Segunda Guerra Mundial, por autorização e ordem expressa do Papa João Paulo II, puderam elaborar várias obras em torno do tema, das quais destaco aquela atrás citada.
Assim, o livro que cito, bem mais pequeno que o de Cornwell, está, contudo, repleto de excertos fulcrais de cartas e documentos originais do Vaticano. Está repleto de trechos vitais de correspondência entre embaixadores, núncios apostólicos, papas (o período abrange os papados de Pio XI - Achille Ratti - e Pio XII - Eugenio Pacelli), dirigentes políticos, representantes de associações judaicas, entre outros.
Napolitano e Tornielli não se perdem em grandes especulações. Limitam-se a intercalar uma citação de um documento com um ou outro comentário. O que interessou, para eles, foi colocar num volume de fácil leitura, o máximo possível de factos concretos provenientes da documentação oficial, agora que ela foi tornada pública.
Que podemos ler nesses documentos?
O filonazista Pacelli?
O germanófilo Pacelli?
O antisemita Pacelli?
Não me parece...
Ao folhear as páginas deste livro, que estão tão repletas de refutações às teses do "papa de Hitler" que dá vontade de bater nos difamadores, dei-me conta de uma curiosidade: na sua obra supracitada também John Cornwell tinha cedido à tentação de dizer algo como: "no início eu queria verificar que a tese do papa de Hitler estava errada, mas no desenrolar da minha investigação, eu tive que mudar de opinião", etc, etc... (não foram estas as palavras, não tenho o livro agora aqui à mão, mas foi algo de parecido o que ele disse). Onde é que eu já tinha visto isto? Esta conversa fiada?
Aqueles que leram o livro do trio britânico Henry Lincoln, Michael Baigent, e Richard Leigh, sobre o mistério de Rennes e o Priorado de Sião, sabem a que conversa fiada me refiro: também este maravilhoso trio de investigadores tinha decidido "partir à procura da refutação", mas inevitavelmente teriam sempre que concluir que, afinal, "era tudo verdade".
Ou seja, uma táctica bem conhecida de bluff intelectual. Mas que funciona. É eficaz.
Isto já vai longo. Queria deixar-vos com algumas citações deste livro. Em primeiro lugar, esta, do prefácio de Sérgio Romano:
"Ma in bocca a certi studiosi come quelli citati da Napolitano e Tornielli nel loro libro, certi giudizi su Pacelli mi sembrano configurare il più grave dei peccati che gli storici commettono talvolta nel loro lavoro. Si chiama anacronismo."
Algumas citações de posições a favor de Pio XII e da Igreja Católica durante este periodo conturbado (tentei traduzi-las a olho, quem não gostar da tradução pode pedir-me os excertos originais em italiano):
"Tenho na minha mesa [de trabalho], em Israel, uma pasta intitulada «Calúnias contra Pio XII». Sem ele, muitos dos nossos não estariam vivos" - Rabi-chefe de Roma, Israel Zolli.
"Se o papa tivesse falado [abertamente contra o regime de Hitler], Hitler teria provavelmente massacrado mais de seis milhões de hebreus e talvez dez vezes dez milhões de Católicos, se tivesse tido o poder para o fazer" - Rabi-chefe da Dinamarca, Marcus Melchior.
"Qualquer ofensa propagandística da Igreja Católica contra o Reich hitleriano teria sido não só um provocatório suicídio, mas também teria acelerado a execução de muitos outros hebreus e padres" - Robert M. W. Kempner, juíz de instrução do processo de Nuremberga.
"Só a Igreja contrariou de forma decisiva a campanha de Hitler para suprimir a verdade. Eu nunca nutri interesse especial de qualquer tipo em relação à Igreja anteriormente, mas agora tenho um afecto e uma admiração profunda porque só a Igreja teve a coragem e a persistência de se erguer em favor da verdade intelectual e da liberdade moral. Sou levado a confessar que aquilo que eu via há já tempo com desprezo, agora louvo-o sem reservas." - Albert Einstein, em entrevista à Time (1940).
"A Santa Sé está a prestar a sua potente ajuda onde pode para mitigar o facto dos meus correlegionários perseguidos" - Chaim Weizmann, durante a Guerra, antes de se vir a tornar no futuro primeiro presidente do Estado de Israel.
"Disse-lhe que o meu primeiro dever era agradecer-lhe, e através dele agradecer da parte do povo hebreu à Igreja Católica, por tudo o que tinha feito nos vários países para salvar os hebreus" - Moshe Sharrett, o segundo presidente do Conselho israelita, em visita a Pio XII, em Abril de 1945.
"O povo de Israel nunca mais esquecerá o quanto Sua Santidade e os seus ilustres delegados, inspirados no eterno princípio da religião, que forma o verdadeiro fundamento da verdadeira civilização, estão a fazer pelos nossos desafortunados irmãos e irmãs na hora mais trágica da nossa história, e que é a prova viva da Divina Providência neste mundo" - Isaak Herzog, Rabi-chefe da Terra Santa, em carta dirigida ao Delegado apostólico de Istambul, Angelo Roncalli, em Fevereiro de 1944.
Mas Napolitano e Tornielli não se ficam por aqui. Por simples citações. Numa análise surpreendentemente tão lúcida quanto sucinta, eles passam revista a todas as teses anti-Pacelli, apoiando-se em argumentos e documentos refutatórios credíveis e verificáveis, porque, ao contrário do livro de Cornwell escrito numa altura em que a verificação no Arquivo Secreto era ainda privilégio de poucos, agora os arquivos estão abertos. Sobretudo o dossier "Germania", que contém um acervo impressionante de correspondência fulcral.
Espero regressar a este tema polémico em breve. A minha intenção foi apenas a de partilhar convosco alguns fortes pontos de vista de quem contesta em voz alta e com indignação esta onda infame do "papa de Hitler".
Na minha opinião estritamente pessoal, não consigo isolar esta onda anti-Pacelli da onda das pseudo-teses de Dan Brown. Para mim, fazem parte de uma longa e profunda ofensiva anti-católica, que está activa há muitos anos, e a crescer em força e em alcance mediático.
Bernardo
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