sábado, 29 de dezembro de 2012

Demonstrar a existência de Deus...

Ainda é surpresa para muitas pessoas, mesmo para quem tem formação católica, que a Igreja Católica defende que a existência de Deus pode ser conhecida com certeza racional a partir da observação das coisas existentes. O Concílio Vaticano I declarou que «(…) Deus, a causa primeira (principium) e o fim de todas as coisas, pode, a partir das coisas criadas, ser conhecido com certeza pelo poder natural da razão humana (…)» (1).

São Tomás de Aquino (1225-1274) é uma referência incontornável no que diz respeito a demonstrações filosóficas da existência de Deus e dos Seus atributos. São Tomás trata do tema na Suma Teológica (2) e também na Suma contra os Gentios (3). Outros nomes importantes para este tema são, por exemplo, Santo Anselmo de Cantuária (1033-1109), Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) e Samuel Clarke (1675-1729). Mas a procura e a defesa de argumentos filosóficos para demonstrar a existência de Deus (Teologia Natural) é uma actividade intelectual bem longe de passar de moda, e um bom número de académicos nas áreas da Teologia e da Filosofia continuam dedicados a ela, tendo-se verificado nos últimos anos um aumento substancial do número de publicações académicas na área da Teologia Natural.

A Igreja Católica reservou um lugar especial para São Tomás de Aquino e para a sua obra, pelo que, na cultura católica, os argumentos tomistas sempre tiveram a primazia e a preferência, não obstante o trabalho de qualidade que se encontra em inúmeros outros pensadores cristãos que procuraram defender racionalmente a existência de Deus. O que é interessante nos argumentos de São Tomás é que o passar do tempo, e as sucessivas vagas de críticos dos seus argumentos, não trouxe a sua refutação. Os argumentos tomistas para demonstrar racionalmente a existência de Deus continuam tão válidos hoje como no momento em que foram escritos, com a particularidade de que os argumentos, sendo do tipo filosófico-ontológico, permanecem imunes às constantes descobertas científicas e mudanças de paradigma científico. Imunes no sentido em que a terminologia e os conceitos usados por São Tomás são independentes de qualquer teoria científica, e não no sentido em que o progresso científico fosse irrelevante para a compreensão destes argumentos tomistas: antes pelo contrário, é sempre muito importante uma sólida formação científica para melhor apreciar a força destes argumentos (ver o post scriptum). Dependem apenas de algumas teses filosóficas acerca da realidade, e da observação das coisas à nossa volta.

Talvez o maior obstáculo para a boa compreensão dos argumentos tomistas esteja na terminologia usada por São Tomás, uma terminologia de base aristotélica, cujo conhecimento é indispensável para entender os argumentos. Grande parte dos críticos destes argumentos falham, precisamente, por não compreenderem a terminologia ou por a interpretarem à luz do significado moderno dessa terminologia.

Há muito tempo que queria fazer a experiência de colocar por escrito um argumento para a existência de Deus, descaradamente baseado nos argumentos de São Tomás, mas escrito em linguagem mais acessível para o leitor moderno. Nunca é demais frisar que o melhor é sempre ir ao original, e procurar compreender São Tomás no seu contexto e dominar os seus termos e conceitos. Para isso, disponibilizei, no âmbito do meu Curso Ciência e Fé, um módulo inteiramente dedicado a São Tomás de Aquino e aos seus argumentos para demonstrar a existência de Deus.

De seguida, vou então atrever-me a estruturar um argumento que talvez possa ser aceite pelo ateu mais renitente, desde que este esteja disposto a ser levado pela razão, termine ela onde terminar...

Como todo e qualquer argumento, este também depende de premissas, ou seja, de teses que eu vou tomar como verdadeiras sem as ter demonstrado. Uma saída fácil para qualquer ateu ou agnóstico passa por, simplesmente, rejeitar qualquer uma (basta uma) dessas premissas, porque o argumento não funciona sem elas (todas). De notar também que este argumento está escrito em linguagem comum, sem o rigor e o formalismo da lógica.

Premissas
  1. Os princípios da identidade e da não-contradição aplicam-se à realidade natural: uma dada coisa existente na natureza não pode ser o que é, e simultaneamente algo diferente do que é, do mesmo ponto de vista.
  2. Existe uma realidade objectiva à minha volta, que é independente dos meus pensamentos, ou seja, a realidade externa a mim não é uma invenção da minha mente.
  3. Os meus sentidos são relativamente fiáveis, ou seja, não tendo que ser infalíveis, os meus sentidos reflectem de forma suficientemente adequada a realidade à minha volta, de tal forma que eu posso confiar neles ao ponto de achar que não estou permanentemente iludido por falsa informação sensorial. Não digo que eu não possa ser vítima de ilusões ópticas, ou enganado por um som parecido com outro, e assim por diante. Digo apenas que posso confiar que, por exemplo, quando converso com as pessoas que conheço, estou, na esmagadora maioria das vezes, mesmo a conversar com elas, e não estou iludido nisso, ou quando observo a estrada que passa à frente da minha porta de casa, tenho quase a certeza absoluta de que ela está lá e não é uma miragem.
  4. Que a teoria correcta acerca do tempo é a de tipo A (seguindo a nomenclatura de McTaggart), ou seja, que o passado já não existe e que o futuro ainda não existe. Isto implica negar a teoria oposta a ela, a teoria de tipo B, que defende que passado, presente e futuro existem sempre e perpetuamente. Nessa teoria de tipo B, as coisas não começam a existir, ou deixam de existir: elas existem sempre, algures numa coordenada temporal qualquer. Não quero aqui e agora defender os méritos e deméritos de cada teoria: tomo como verdadeira a teoria de tipo A, que aliás é a teoria que a esmagadora maioria das pessoas tomam como verdadeira, mesmo sem conhecerem esta nomenclatura.
  5. Que do nada, nada vem. Ou seja, sendo o "nada" um termo usado para designar a não existência de coisas, então rigorosamente coisa alguma pode surgir do que não existe. Dito de outra forma, se rigorosamente nada existisse, então nada poderia começar a existir. De notar que, mesmo para um ateu, esta premissa não tem que ser polémica: muitos ateus, quando pensam no fundamento  último de toda a realidade, e porque sabem que esse fundamento não pode ser o nada,  substituem uma coisa eterna e pessoal (o Deus dos teístas, que eles rejeitam) por uma coisa eterna e impessoal (a matéria, ou um ente impessoal como a divindade dos deístas - Espinosa, Einstein, etc.). Em suma, a explicação e causa última da realidade de tudo o que existe, não pode ser o nada. Tem que ser algo.
  6. Que há essências nas coisas, ou seja, que as distinções que vemos nas diferentes coisas à nossa volta reflectem essências distintas dessas coisas, que nos permitem agrupá-las em categorias reais, e não meramente subjectivas e convencionais. Dito de outro modo, que usamos nomes diferentes para coisas que nos parecem diferentes porque acreditamos que elas têm mesmo essências diferentes. Por exemplo, se aceitamos que há realmente uma essência na coisa que chamamos "ouro" que é distinta da essência da coisa a que chamamos "prata", isso quer dizer que consideramos o ouro essencial e realmente diferente da prata. Em termos técnicos, aceitar a realidade do essencialismo implica abandonar o nominalismo. Aceitar esta premissa implica também aceitar a realidade objectiva dos conceitos de perfeição e imperfeição. Uma coisa será tão mais perfeita quão melhor representar a categoria a que pertence, e será tão mais imperfeita quão pior representar a categoria a que pertence. Por exemplo, se tivermos uma liga metálica de Ouro misturado com vestígios de outros elementos, quanto mais perto da unidade for o rácio entre a massa de Ouro presente nessa liga metálica e a massa total dessa liga metálica, mais pura e perfeita será essa liga metálica. No limite, dizer que determinada liga metálica é uma amostra perfeita de Ouro implica dizer que cem por cento da massa dessa amostra é Ouro. Um outro exemplo: uma planta saudável é mais perfeita que uma planta doente. Esta premissa, para efeitos do argumento abaixo, apenas é fundamental para aferirmos a propriedade divina da perfeição. Se ela for rejeitada, apenas essa propriedade divina fica por demonstrar no argumento abaixo.

Argumento
  1. Quando observamos a realidade natural, constatamos que há mudança (contra Parménides, que dizia que toda a mudança era ilusória, e que tudo era permanência), ou seja, há coisas que mudam.
  2. Quando observamos a realidade natural, constatamos que há permanência (contra Heráclito, que dizia que tudo era mudança, e que nada permanecia), ou seja, que há coisas que permanecem, pelo menos ao longo de um determinado intervalo temporal.
  3. Pode haver mudança mesmo nas coisas que permanecem durante algum intervalo de tempo, e isso implica que certas coisas podem mudar sem deixarem de ser o que são; chamemos "substância" a todas as coisas que persistem durante algum tempo, sofrendo ou não mudanças sem deixarem de ser o que são, e chamemos "acidente" a todo o tipo de propriedade inerente a uma substância, uma propriedade que esta poderia ou não possuir sem deixar de ser o que é: por exemplo, a maçã é uma substância porque designa algo que permanece durante um determinado período de tempo, e é um acidente de certa maçã que ela esteja a certa altura numa dada posição, porque ela continuaria a ser a mesma maçã se estivesse noutro lugar. Outro exemplo de acidente: o peso de uma dada maçã pode variar ao longo do tempo, que ela continua a ser a mesma maçã.
  4. Toda a mudança implica que algo deixa de existir e que algo passa a existir. Sendo uma verdade evidente para substâncias, também é válida para acidentes: quando uma maçã muda de posição X para uma posição Y, o que deixa de existir é o acidente "posição X" associado à maçã e passa a existir o acidente "posição Y" associado à mesma maçã.
  5. Quando uma mudança consiste na transformação de uma substância noutra, essa mudança é substancial. Numa mudança substancial, a substância anterior desaparece para dar lugar à nova substância. Por exemplo, na electrólise da água, esta desaparece para dar lugar a duas novas substâncias: Hidrogénio e Oxigénio.
  6. Quando uma mudança consiste na transformação de um acidente noutro, essa mudança é acidental. Numa mudança acidental, a substância permanece, mas o acidente anterior desaparece para dar lugar ao novo acidente. Por exemplo, se movemos uma molécula de água de uma posição para outra, essa mudança é acidental.
  7. Para que possa ocorrer qualquer mudança de A para B, substancial ou acidental, três factos têm que estar presentes: 
    1. A, que vai desaparecer para dar lugar a B, não pode ser já B, senão não haveria qualquer mudança de A para B;
    2. A, que vai desaparecer para dar lugar a B, tem que ter a(s) característica(s) necessária(s) para poder mudar para B; ou seja, não é qualquer A que pode mudar para B, mas apenas mudará para B aquele A que tenha a capacidade, ou a potencialidade, para mudar para B; ou seja, em A tem que existir a capacidade (ou potencialidade) de A se transformar em B;
    3. Um C que provoca a mudança de A para B (uma causa para a mudança).
  8. Esse C não pode ser B porque, como vimos, a mudança de A para B implica que B ainda não existe antes da mudança, e só começa a existir depois da mudança. B nunca poderia ser a causa do surgimento de B, senão B teria que existir antes de fazer surgir B, o que é contraditório.
  9. Esse C também não pode ser A. Compreende-se este ponto refutando todas as hipóteses alternativas:
    1. Dado que B não pode ser A (senão não havia real mudança);
    2. Dado que B não pode surgir do nada (porque do nada, nada vem);
    3. Para explicar a mudança de A para B só resta:
      1. Supor que basta a capacidade (ou potencialidade) que existe em A para mudar para B; mas esta capacidade (ou potencialidade) que existe em A para mudar para B, sendo algo meramente potencial e inerente a A, ainda não é algo que exista actualmente, mas apenas potencialmente (virtualmente) em A, pelo que também esta mera potencialidade que A tem para ser B não é suficiente para fazer surgir B;
      2. Finalmente, admitir um C distinto de A e de B.
  10. Para que C possa provocar a mudança de A para B, é necessário que C já exista quando muda A para B.
  11. Se C começou a existir algures no passado, então um D já existiria antes de C, e fez surgir C a partir de algo existente. E se D começou a existir algures no passado, então um E já existia antes de D, e fez surgir D a partir de algo existente, e assim por diante.
  12. Mas a cadeia explicativa apresentada no ponto anterior não pode regredir perpetuamente para o passado, e tem que principiar em algo eterno, ou seja, em algo que sempre existiu. Porque se tudo o que existe fosse não eterno, então a certa altura do passado, nada existiria. E tomámos como premissa que do nada, nada vem. Pelo que se, a certa altura do passado, nada existiria, então porque do nada, nada vem, hoje nada existiria. Mas vemos que existem coisas, pelo que tem que haver alguma (pelo menos uma) coisa que sempre existiu. Pode existir uma coisa eterna apenas, ou podem existir várias coisas eternas, mas tem que existir pelo menos uma coisa eterna.
    1. Objecção: E se a cadeia explicativa apresentada no ponto anterior pudesse regredir perpetuamente para o passado?
      1. Para analisar esta possibilidade, é importante distinguir entre dois tipos de causalidade: ou uma coisa B causa outra coisa C de forma "instrumental", porque B não tem em si mesma o que é necessário para causar C, mas B recebe essa causalidade de outra coisa A (essa coisa A "usa" B como um "instrumento" para causar C); ou uma coisa B causa outra coisa C de forma "essencial", porque B tem em si mesma o que é necessário para causar C; 
      2. Poderíamos supor uma cadeia infinita de relações causa-efeito do tipo "essencial", na qual uma determinada coisa C poderia causar por si mesma outra coisa D, mesmo que a causa de C, uma outra coisa B, já não existisse, porque apesar de C ter surgido por causa de B, a coisa C é capaz, em si mesma ("essencialmente"), de causar D; por exemplo, num modelo cósmico cíclico, seria possível supor uma cadeia infinita de causas e efeitos físicos, uma cadeia sem princípio nem fim, sem nunca ser necessária uma "causa primeira" algures no passado;
      3. No entanto, já não é possível uma cadeia infinita de relações causa-efeito do tipo "instrumental", pois se uma coisa C causa "instrumentalmente" outra coisa D é por causa de B, que confere à coisa C a capacidade de causar outra coisa D, e assim por diante; mas desta vez, esta cadeia não pode regredir perpetuamente, ou seja, todos os elos da cadeia até poderiam ser instrumentais, excepto o primeiro, que teria que ser uma coisa capaz, em si mesma ("essencialmente"), de exercer poder causal no resto dos elos "instrumentais" da cadeia; por exemplo, para que uma molécula de água exista no presente é necessária a existência, no presente, de dois átomos de Hidrogénio e um átomo de Oxigénio que a constituam; por sua vez, a existência destes átomos no presente requer a existência de determinada quantidade de quarks e leptões que os constituam; no entanto, esta cadeia explicativa da existência presente de uma molécula de água tem que terminar numa "causa primeira" e não causada ("primeira" em sentido ontológico, como causa fundamental da existência da matéria, e não "primeira" em sentido temporal), caso contrário a molécula de água não existiria no presente; esta "causa primeira" está na origem da cadeia de causas materiais que garante a existência actual da molécula de água (e de qualquer outra coisa material, o raciocínio seria idêntico); sendo não causada, esta "causa primeira" seria eterna porque tudo o que começa a existir é, necessariamente, algo causado por algo já existente; para ver porque só há uma "causa primeira" ver o ponto 18;
      4. Assim, a história do Cosmos até poderia ser eterna, explicada por uma (ou várias) eterna cadeia de relações causa-efeito do tipo "essencial", o que dispensaria uma "causa primeira" de tipo temporal; mas para existir algo no presente (em vez de nada existir), as cadeias de relações causa-efeito do tipo "instrumental" têm que terminar numa "causa primeira" de tipo ontológico, causa essa que é não causada e é eterna;
    2. Objecção: E se uma cadeia de relações causa-efeito do tipo "instrumental" fosse circular; ela não seria infinita, dispensando assim uma "causa primeira" não instrumental?
      1. Mesmo admitindo esse hipotético cenário, note-se que todos os elos dessa cadeia circular, mesmo que fossem infinitos, seriam de tipo "instrumental", ou seja, não teriam em si mesmos o que é necessário para causar o elo seguinte na cadeia, e dependeriam de um elo anterior para exercer a sua causalidade; isto sucederia com todos os elos da cadeia, sem excepção (porque postulámos uma cadeia circular de tipo "instrumental");
      2. Logo, teria que existir uma causa distinta dessa cadeia, uma causa capaz de causar essa cadeia circular, e de a dotar da sua peculiar estrutura causal;
      3. Se essa causa distinta da cadeia, por sua vez, não tivesse em si mesma o necessário para causar a cadeia, e fosse apenas "instrumental" no causar da cadeia, então ela dependeria de uma outra causa, e assim por diante, mas pelas razões invocadas atrás, esta outra cadeia de tipo "instrumental" teria que terminar numa "causa primeira" de tipo ontológico, causa essa que não é causada e é eterna;
  13. Uma coisa eterna, ou tem a sua eternidade explicada (causada, justificada) por outra coisa eterna e mais fundamental, ou então essa coisa eterna tem em si mesma a explicação da sua eternidade. No primeiro caso, se uma coisa eterna tem a sua eternidade explicada por outra coisa eterna e mais fundamental, essa cadeia explicativa não pode regredir indefinidamente: tem que principiar numa coisa eterna que tem em si mesma a explicação da sua eternidade.
  14. Essa coisa eterna, que tem em si mesma a explicação da sua eternidade, é algo que: a) existe desde sempre; b) não recebeu a sua existência de nenhuma outra coisa; c) a sua inexistência é impossível. Por isso, essa coisa terá que ser a sua própria existência, ou melhor, terá que ser idêntica ao seu acto de existir, terá que ser auto-existente. Nela, essência e existência são idênticas. 
  15. Essa coisa eterna e auto-existente não muda, é imutável, porque mudar implicaria deixar de existir, substancial ou acidentalmente, e implicaria uma outra coisa qualquer pré-existente para provocar (causar) essa mudança. 
  16. Essa coisa eterna, auto-existente e imutável não pode ser o próprio Universo, ou qualquer substrato material ou energético, porque matéria e energia mudam continuamente, e portanto, não servem para fundamento último de toda a realidade. Para além disso, o Universo poderia ser diferente do que é (poderia ter mais ou menos massa-energia do que a que tem, poderia ser mais antigo ou mais recente do que é, etc.), e por isso, o Universo não tem em si mesmo a razão de ser como é, ou seja, não pode ser auto-existente.
  17. Se essa coisa eterna, auto-existente e imutável não pode ser matéria ou energia, então é imaterial. Se é imaterial, não tem partes ou componentes, e portanto é simples.
  18. Essa coisa eterna, auto-existente, imutável, imaterial e simples tem que ser una, ou seja, não pode haver mais do que uma. Isto deduz-se porque não haveria forma de distinguir duas ou mais coisas cuja essência fosse idêntica à sua existência. Dito de outra forma, para as distinguir, teríamos que o fazer por eventuais diferenças substanciais, ou por eventuais diferenças acidentais. Mas a substância de uma coisa auto-existente seria sempre idêntica à substância de uma outra hipotética coisa auto-existente. Haveria forma de as distinguir acidentalmente? Não, porque uma coisa simples não pode ter acidentes, porque só as coisas não simples (compostas) têm composição de substância com acidentes. Regredindo todas as cadeias explicativas de tudo o que existe até essa coisa una, ela é a causa primeira da existência de tudo o que existe.
  19. Essa coisa eterna, auto-existente, imutável, imaterial, simples, una e causa primeira é ainda sumamente perfeita. Se essa coisa fosse imperfeita, ou não fosse sumamente perfeita, isso quereria dizer que ela teria, em si mesma, a capacidade ou o potencial para ser melhorada ou aperfeiçoada. Ora, como vimos atrás, isso implicaria uma outra coisa pré-existente para provocar essa mudança no sentido do melhoramento ou aperfeiçoamento, e como já chegámos a existência de uma causa primeira, já não há qualquer possibilidade de melhoramento ou aperfeiçoamento dessa causa primeira porque já não há qualquer capacidade para essa causa primeira sofrer qualquer tipo de mudança (ela é, como vimos, imutável).
  20. Essa coisa eterna, auto-existente, imutável,  imaterialsimples,  una, causa primeira e sumamente perfeita é algo que corresponde ao conceito teísta de Deus

Esta é a segunda versão do argumento. Este argumento não pretende justificar todos os atributos divinos defendidos pelos teístas, mas apenas alguns deles. Por exemplo, este argumento ainda não procura defender atributos divinos como o da omnisciência, omnipotência, omnipresença, infinitude, etc. O meu objectivo é vir a enriquecer em breve este argumento com a defesa de mais atributos divinos. Muito agradeceria os comentários e críticas, de forma a que sejam encontradas falhas ou imperfeições no argumento, para este ser aperfeiçoado até onde for possível.


PS: Haveria muito a dizer acerca da conciliação entre estes argumentos e o actual conhecimento científico, sobretudo nas áreas da física e da cosmologia. Algumas das premissas usadas na base deste argumento têm importantes implicações científicas. Por exemplo, a premissa 4, que assume a teoria A do tempo, é incompatível com uma interpretação realista do espaço-tempo de Minkowski. A conveniência matemática deste modelo espácio-temporal no contexto da relatividade restrita de Einstein não tem que ser negada: basta que, em defesa de uma teoria A do tempo, não se interprete o espaço-tempo de Minkowski como algo real, mas apenas como algo matematicamente útil. Há também toda uma literatura académica (Kenny, e outros) que pretende demonstrar a incompatibilidade dos argumentos cosmológicos de São Tomás de Aquino (que eu segui na construção deste meu argumento) com a física moderna, seja ela newtoniana ou einsteiniana. Nem sempre é fácil encontrá-los, mas há excelentes artigos escritos por filósofos tomistas que mostram cabalmente que não existe qualquer incompatibilidade entre os argumentos tomistas e a física moderna. Veja-se, por exemplo, o artigo de David Oderberg (Universidade de Reading, Reino Unido), "Whatever is Changing is Being Changed by Something Else": A Reappraisal of Premise One of the First Way, ou os artigos de Edward Feser (Pasadena City College, EUA) no Volume 10 dos Proceedings of the Society for Medieval Logic and Metaphysics.

(1) Terceira Sessão, 24 de Abril de 1870, Capítulo 2, parágrafo 1.
(3) Suma contra os Gentios, Livro I (“Deus”), Capítulo 13 (“Argumentos para provar a existência de Deus”).

PPS: Este "post" foi modificado a 25 de Março de 2013, no sentido de substituir o termo "axioma" por "premissa", dado que o uso do termo "axioma" foi contestado pelo Ludwig Krippahl, e apesar de ele não ter razão nas suas críticas, eu não quero prejudicar a compreensão do argumento, e preferi usar o termo "premissa" para classificar as teses que tomo como verdadeiras, sem as demonstrar, e que dvem estar na base deste argumento para que ele funcione.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Sobre o argumento teleológico ("fine tuning")...


O filósofo e físico Robin Collins é um dos mais competentes defensores do argumento do "fine tuning" para a existência de Deus (o conceito teísta de Deus). Eu ando a seguir este argumento há alguns anos, e cada vez mais me convenço de que o argumento é um dos melhores argumentos para levar até uma pessoa pouco razoável a reconhecer a existência de Deus. Um dos números mais impressionantes em defesa do "fine tuning" vem do físico Roger Penrose (ele mesmo um agnóstico), que em 1989 apresentou o problema do baixíssimo nível de entropia (ou altíssimo nível de ordem) do Universo nos seus instantes iniciais. Segundo Penrose (1), de forma a termos um universo que permita a vida, foi preciso que as condições iniciais da distribuição de massa-energia estivessem numa região tão "afinada" e tão específica que a sua probabilidade é de uma parte sobre 10 levantado a 10 levantado a 123. Trocado por miúdos, 10 levantado a 23 é o número 10000.... (com 123 zeros). Agora suponha-se o número cujo número de zeros é o anterior. É absurdamente baixa a probabilidade de o nosso universo ter tido, por acaso, a entropia que teve nos seus instantes iniciais.

Como é que daqui se deduz que a causa do universo é inteligente (é Deus)? Basta considerar as hipóteses alternativas:

  1. Facto bruto: o universo simplesmente partiu de um estado estupidamente improvável (uma parte em 10 levantado a 10 levantado a 123), e é assim que as coisas são; esta é a opção do "não faças perguntas complicadas, pá"
  2. Multiverso: o nosso universo é apenas um de muitos (infinitos?) universos; bom... à parte do facto de que é filosoficamente absurda a existência de infinitas coisas (surgem contradições se o admitirmos), não há uma só evidência científica a favor da existência de outros universos, pelo facto de que se tivéssemos forma de chegar a eles, eles fariam parte do nosso universo

A tese do multiverso é uma tese "ad hoc", de especulação científica, feita para evitar a espantosa probabilidade de o universo ter uma causa inteligente para a sua existência. Para evitar a espantosa probabilidade de um ser inteligente e dotado de espantosos recursos ser a causa do nosso Universo.


Vivemos tempos espantos.

Nunca foi tão fácil a uma pessoa razoável e informada acreditar na existência do Deus teísta, e no caso dos cristãos, esse é o Deus de Jesus Cristo, o nazareno, que morreu crucificado, foi sepultado, e três dias depois ressuscitou.


(1) "This now tells how precise the Creator's aim must have been, namely to an accuracy of one part in 10 to the 10^123rd power. This is an extraordinary figure. One could not possibly even write the number down in full in the ordinary denary notation: it would be 1 followed by 10^123 successive 0's." Roger Penrose, The Emperor's New Mind, 1989.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Resposta às críticas do Ludwig ao meu Curso Ciência e Fé


Caro Ludwig,

Obrigado pelo teu tempo, pelos teus comentários e pelo destaque dado ao meu trabalho!

Em primeiro lugar, leste (do que percebi) apenas o resumo do Curso. Esse resumo não é apenas uma síntese de todos os temas que tratei. É uma síntese de uma selecção dos temas que tratei. Ou seja, esse resumo deixa muitos temas de fora. O Curso faz um todo (que me parece) coerente, e é preciso tomá-lo como um todo. Senão, há ideias afloradas superficialmente no Resumo que ficam sem o aprofundamento necessário, por falta de leitura do(s) módulo(s) onde elas são aprofundadas.

"Em primeiro lugar, não há “o conceito de Deus”. Há uma carrada. Cada religião – diria até cada religioso – tem um, diferente dos restantes."

Há coisas que me pasmam. Não és o primeiro, e não serás o último, a pedir a um cristão que defenda TODOS os conceitos de Deus. Será que tu tens que defender TODOS os conceitos de ateísmo?
Eu não estou em defesa da "religião" (seja lá o que isso for). Estou em defesa do cristianismo, e de um Deus concreto. O Deus de Jesus Cristo.

"Alguns são inconsistentes, é verdade. Por exemplo, o de ser omnipotente e omnisciente. Se já sabe tudo o que irá acontecer não pode fazer mais do que assistir, impotente, ao desenrolar do destino."

Entendo que a Teologia não seja o teu forte, e eu diria que isso sucede apenas por falta de leitura e estudo da tua parte. Mas todos temos que tomar opções, dado que o nosso tempo de vida é limitada, certo?
O Cristianismo não defende um fatalismo, no qual o futuro está todo decidido. Se achas isso, gostava de perceber de onde te vem essa ideia.
Imagina o futuro como uma complexa árvore com todas as ramificações de todas as possibilidades, quer das decisões de agentes livres, quer do desenrolar de processos naturais. Deus conhece essas ramificações todas, sabe o que irá acontecer se agente A fizer B, ou se agente C deixar de fazer D. Deus conhece, como se diz em Filosofia, todos os contrafactuais. É assim que se deve entender o conhecimento de Deus. Esse conhecimento em nada interfere com a omnipotência ou com a liberdade dos agentes realmente livres, como os seres humanos. Deus não decide por mim. Senão, eu não teria livre arbítrio.

Tens que te esforçar mais por apontar as tais alegadas contradições e inconsistências!

"E se pode fazer tudo o que entender então não há nada para saber. Vai chover no Sábado? A Terra é redonda? Será como quiser e pronto. Em vez de sabedoria só terá caprichos. Quanto aos conceitos de deuses que não são inconsistentes, são tão pouco plausíveis que também não se justifica acreditar neles."

Não só tens que ser mais rigoroso e profundo nas tuas tentativas de refutação, como há coisas que não convém deixar vagas. Falas em conceitos de "deuses" que não são inconsistentes? Quais? E porque são pouco plausíveis?

"Segundo o Bernardo, «Só se pode dizer que [a crença na existência de Deus] é irracional se se mostrar que é impossível que Deus exista». Não é verdade. Por exemplo, é possível que o Bernardo seja um extraterrestre e que a Alexandra Solnado escreva o que Jesus lhe dita, mas ainda assim é irracional acreditar em tais coisas."

Não entendo este exemplo. Eu concordo que ambas as teses que escreves são teses erradas. Mas são irracionais? Se há extraterrestres (eu acho que não há), é pelo menos metafisicamente possível que eu fosse um deles (caso eu conseguisse disfarçar a minha aparência). E se Deus existe (eu acho que sim), é metafisicamente possível que Ele fale com a Alexandra Solnado. O que queres dizer, julgo eu, é que não podemos dar crédito a essas teses, e não que elas são irracionais. Uma coisa irracional é uma coisa que viola a razão. Essas teses não são más por violarem a razão, mas simplesmente por não terem qualidade epistémica. Não são credíveis pela sua falta de indícios, pela falta de evidências que reforcem a sua verosimilhança.

"Porque o irracional está logo em dar mais crédito a uma hipótese do que se justifica pelo peso das evidências."

Em primeiro lugar, não trataste sequer das evidências. Deste de borla que aquelas duas teses atrás não tinham crédito. Eu acho que não têm, mas tu não mostraste isso. Afirmaste numa de "magister dixit". E, quando dizes que é irracional dar mais crédito a uma hipótese do que se justifica pelo peso das evidências, estás a usar a palavra "irracional" num segundo sentido, e não no sentido literal e etimológico. De certa forma, porque a nossa razão deve estar guiada pelas evidências, é irracional fazer o que dizes tu, e concordo contigo, mas quando encontras a palavra "irracional" nos meus slides, estou a usá-la correctamente, no sentido etimológico original, no primeiro sentido da palavra.

Tu usas a palavra "irracional" no sentido de falhar nas boas práticas do uso da razão. Eu uso a palavra "irracional" no sentido literal, de violar a razão, de defender ou acreditar numa contradição ou numa ideia inconsistente.

"Por isso, é irracional crer que o criador do universo engravidou uma palestiniana para nascer dela e depois morrer torturado como requisito para nos perdoar os pecados dos nossos antepassados já defuntos. Não é que seja impossível, mas não é uma hipótese favorecida pelo peso das evidências."

Dizes tu. Sem o explicar.
Devemos acreditar em ti com base em que credenciais? Já que não apresentas fundamentos para as tuas afirmações, como as devemos tratar? Qual a base epistémica das tuas afirmações?

"Seguidamente, o Bernardo apresenta o cristianismo como «berço da Ciência» pela sua visão judaico-cristã de um universo inteligível, um criador separado da criação, o «enorme valor dado à Criação e ao Homem», o «Fim do Cosmos pagão» e assim por diante. Isto não encaixa na história."

Se calhar não. Vamos supor que tens razão (não tens)... Mais uma vez, era bom mostrares porquê.

"O primeiro grande passo em direcção à ciência foi a filosofia grega, que pôs a análise metódica, a discussão aberta e a argumentação racional à frente do misticismo e da prepotência religiosa."

Qual é o título do segundo módulo do meu Curso?
Eu dou uma ajuda: Filosofia Grega.
E o módulo seguinte chama-se Cosmologia Grega.

"O cristianismo veio depois, recuando meio passo pelo menos."

Enquanto não estudares, quer a filosofia grega, quer a filosofia cristã, não entenderás um facto histórico cabal. A sabedoria grega, fenómeno socialmente minúsculo e longe de afectar a sociedade grega como a intelectualidade cristã afectou a sociedade cristã, teria morrido sem os cristãos. De um ponto de vista estritamente histórico, o saber dos gregos iria à fava sem sábios cristãos como Agostinho, Boécio ou Cassiodoro. Isto é um facto histórico. Mas há muito mais... Os cristãos purificaram os erros dos gregos. Um São Tomás defendeu a verdade do Cosmos criado (como início temporal) contra o cosmos eterno de Aristóteles. E um Etienne, Bispo de Paris, em 1277, condenando as ideias peripatéticas, abriu as portas da física moderna, ao forçar o mundo académico de então a procurar uma nova física não aristotélica, o que permitiu o desenvolver das ideias antigas de João Filopono até à maturação da física do ímpeto, trabalhada pelos Doutores de Paris (Buridan, Oresme) e pelos "calculadores" de Merton College (Oxford), como Dumbleton, Swineshead, Heytesbury, Grosseteste, etc.

"E o segundo grande passo foi a tecnologia dos instrumentos de medição e observação, a partir do século XV, que deu à filosofia uma base empírica sólida e a tornou no que agora chamamos ciência. O cristianismo limitou-se a atolar o primeiro passo na teologia e depois a ameaçar com prisão ou fogueira os que começaram a dar o segundo."

É uma pena este teu parágrafo.
É uma pena porque simplesmente perdeste uma boa oportunidade para evitar dizer tretas.
E bastaria teres lido os módulos seguintes do meu curso. Não por causa da minha sabedoria (que é escassa e amadora), mas porque lá encontrarias a mais recente informação em termos do estado-da-arte em história de Ciência.

Por favor, procura os detalhes nestes módulos:
Filosofia Medieval
Ciência Medieval
São Tomás de Aquino
Inquisição e Ciência
O Caso Galileu, parte 1
O Caso Galileu, parte 2
A revolução científica

Está hoje demonstrado, sobretudo com o trabalho seminal de William A. Wallace, que o método experimental desenvolvido por Galileu, só para ir buscar um exemplo bem conhecido, remonta às aulas dos jesuítas do Collegio Romano, e que estes, por sua vez, pegaram numa longa e antiga tradição de prova científica e de método científico que remonta a Aristóteles, tendo sido esse método amplamente trabalhado e fortalecido por São Tomás de Aquino. Não basta falar de experiências e instrumentos (apesar de termos inúmeros exemplos medievais disso mesmo, como os notáveis trabalhos de Pierre de Maricourt com o íman), é preciso também falar das bases filosóficas do método científico, de como os medievais amadureceram os conceitos de prova, demonstração, certeza científica, e assim por diante.

Estás totalmente desligado do "mainstream" académico de História da Ciência.
É urgente que leias Drake, Kraghe, Wallace, Westfall, Baldini, Artigas, Wallace, e essa gente toda, os investigadores "top" sobre estes temas, em vez de te ficares por estereótipos do século XIX acerca do mítico "conflito" entre cristianismo e ciência, porque a tese do conflito foi abandonada há quase um século, apesar de ainda não te teres dado conta disso.

"O Bernardo alega também haver «certos princípios que aceitamos como verdadeiros, mesmo sem provas empíricas», mas depois dá exemplos do mais empírico que há, como «Existo […] Sou distinto do que me rodeia […] Há uma realidade objectiva […] Os meus sentidos reflectem, de certo modo, a realidade» e assim por diante. Estas conclusões não são deduzidas de axiomas abstractos."

Nem eu digo que são. Usas a falácia do espantalho, atacando uma posição que não é a minha.
Aliás, isso seria bizarro, dado que eu sou tomista, e São Tomás diz que todo o conhecimento vem através dos sentidos, pelo que Tomás é , em certo sentido, um empiricista em termos da sua epistemologia. O que eu pretendo, com esse "slide", é explicar que há inúmero conhecimento verdadeiro que aceitamos sem PROVA empírica. Claro que nem sequer formaríamos essas frases sem os sentidos, porque em primeiro lugar, não saberíamos falar nem escrever nem ler. Não teríamos vocabulário, sem os sentidos. O que quero dizer é que aceitamos tais ideias com bases filosóficas, e não com provas empíricas.
Como sabes, poderíamos viver num mundo "matrix", alimentados artificialmente com ideias erradas através de sentidos enganadores, e se rejeitamos essa visão "matrix", é por uma convicção sem provas. Uma convicção perfeitamente racional e justificada, mas sem provas. Isto é bem conhecido: falo do "génio" de Descartes, que poderia existir e enganar-nos acerca de tudo o que recebemos pelos sentidos.

"São fruto da nossa experiência."

São fruto dela, mas não estão provados por ela. Como referi, a mesma experiência poderia ser fruto de uma imensa estrutura sofisticada, tipo "matrix", que nos enganaria.

"Outra confusão é achar que a ciência e o conhecimento exigem pressupor «um Cosmos racional e inteligível». Nada disso. Para procurar conhecimento basta ter curiosidade. Não é preciso pressupor essas coisas."

Que disparate. Qual é o cientista que não se socorre da matemática? A matemática, o próprio uso da matemática em Ciência, pressupõe que a realidade natural é analisável matematicamente.

"Hoje até sabemos que o universo está longe de ser inteligível. Não conseguimos imaginar um angstrom, um ano luz, um picosegundo ou um milhão de anos."

Confundes inteligibilidade com imaginação. São coisas diferentes. Não consigo imaginar um picosegundo, mas consigo inteligir o conceito.

"Não conseguimos perceber os detalhes dos modelos do clima, de reacções nucleares ou de dinâmica molecular que, sem computadores, nunca conseguiríamos implementar."

Confundes complexidade com inteligibilidade. São coisas diferentes. Não consigo perceber os detalhes ínfimos de um modelo complexo, mas consigo inteligir o modelo como um todo, na sua estrutura.

"Graças a sistemas formais como a matemática conseguimos criar modelos rigorosos de processos sub-atómicos, mas não temos forma de os transpor para a nossa experiência subjectiva de forma a que a mecânica quântica seja inteligível."

A mecânica quântica pode ser inteligível. Este teu parágrafo é preocupantemente obscurantista. O facto de existirem uma dúzia de diferentes, e complexas, interpretações da mecânica quântica não nos deve desanimar de procurar uma interpretação que seja inteligível e que faça sentido. Os paradoxos da interpretação de Copenhaga deviam levar-nos a rejeitar (ou procurar melhorar) essa interpretação, e não a apelar, como tu fazes, à ininteligibilidade da mecânica quântica.

Aquela bezerrice do físico que, virado para um leigo estupefacto, lhe diz que a mecânica quântica é bizarra e paradoxal "porque sim", enquanto que o físico permanece pateta com um sorriso na cara, de quem acha que acabou de dizer uma coisa muito sofisticada, e enquanto o leigo permanece estupefacto porque não aceita que a realidade seja paradoxal ou bizarra, fala toneladas sobre o valioso senso comum do leigo e sobre a parvoíce tonta do físico que sacrificou a sua racionalidade em favor de má filosofia da natureza.

Os paradoxos da mecânica quântica são má filosofia da natureza, um estágio ainda imperfeito do nosso conhecimento, porque caminhamos para uma sólida e correcta filosofia da natureza, que nos vai ajudar a compreender cada vez melhor a realidade.

"O universo é muito mais do que qualquer um de nós consegue compreender e, colectivamente, até a ciência já ultrapassou os limites do cérebro humano."

Confundes inteligibilidade com infinitude do conhecimento. Nunca disse que o nosso conhecimento era infinito. Defender a inteligibilidade do Cosmos não implica defender a infinitude do nosso conhecimento. Acho também piada ao que dizes sobre a ciência ter ultrapassado os limites do cérebro humano. Que queres dizer com isso?

"O Bernardo tenta também demonstrar que se pode obter conhecimento sem um fundamento empírico apelando para os axiomas “da Lógica” (2). Isto presume que a origem da lógica está na formalização e nas regras de manipulação sintática que definem, por exemplo, que de P e P→Q se deduz Q."

Não, não presume. Alerta espantalho! Estás a criticar um espantalho. Eu não disse que podemos obter conhecimento sem fundamento empírico, e já o escrevi ali atrás. Disse que podemos ter conhecimento verdadeiro que não foi provado empiricamente, o que é bem diferente. Para mais, na origem da Lógica não está a formalização, mas sim a natureza do intelecto. A Lógica está intimamente relacionada com a natureza da intelecção. A formalização (até onde ela é possível) vem depois.

"Mas isto é ver a coisa ao contrário. As lógicas formais pretendem automatizar processos de inferência abstraindo-se do significado das proposições."

Sim, concordo, e então? Eu disse o contrário?

"Nesse contexto abstracto parece que o conhecimento surge magicamente pela aplicação das regras, mas isso é uma representação simplificada do nosso raciocínio."

Eu nunca disse tal coisa. Eu não acho que possamos provar os axiomas da Lógica (identidade, não contradição e exclusão do terceiro termo) aplicando regras, pela razão óbvia de que eles são axiomas, logo, não são demonstráveis através de regras. Como sabemos, pelo menos desde Aristóteles (talvez os hindus já o soubessem antes), os axiomas da Lógica são aceites porque se os tentamos negar, chegamos a resultados contraditórios ou inconsistentes. Eles parecem estar na base do que é a natureza do pensar e do inteligir.

"Na prática, lidamos com símbolos que têm significado, em vez de apenas Ps e Qs, e o nosso raciocínio, que tentamos modelar com lógicas formais, é fundamentalmente empírico, quer na determinação do significado dos termos quer na escolha dos axiomas que melhor o representem."

E então? Não entendo o que estás a criticar acerca da minha posição. Concordo com o que escreves, mas não vejo em que é que isso refuta o que eu escrevi. Acho também curioso que venhas defender a semântica (significado). Concordo contigo, mas gostava de saber como um ateu materialista como tu consegue fazer uma defesa não nominalista da realidade da semântica. Isso choca de frente com uma visão materialista da mente humana. Se a nossa mente é inteiramente material, só vejo duas hipóteses: ou não existe semântica (ela é ilusória), ou então a semântica que existe é puramente convencional (não é verdadeira nem falsa, é uma invenção humana), e então caímos no nominalismo.

"Há conflito entre fé e ciência porque cada fé dá muito mais crédito a algumas hipóteses, arbitrariamente escolhidas conforme a religião, do que aquilo que se justifica sem essa fé ou com uma fé diferente."

Isto é uma frase vaga, imprecisa e generalista. Repito: eu não sei, nem quero, defender "fés" ou "religiões". Procuro saber defender o cristianismo e a ciência.

"Isto é contrário ao método da ciência, que visa convergir para conclusões independes de preferências pessoais ou preconceitos, procurando indícios objectivos que favoreçam uma hipótese em detrimento das restantes. A ciência serve para descobrir como as coisas são e não para maiorem Dei gloriam."

Descobrir como as coisas são é chegar à Razão criadora que tudo fez, e que tudo dispôs "segundo medida, número e peso" (como diz o Livro da Sabedoria). Uma das formas de servir à maior glória de Deus é fazer ciência, procurar a verdade sobre o Mundo, sobre a Criação, sobre a realidade natural. Procurar a verdade é procurar Cristo, Aquele que é "o caminho, a verdade e a vida".

Um abraço,

Bernardo

sábado, 16 de junho de 2012

Fatal e precário?


É com estes epítetos que Pedro Mexia se refere ao casamento, no seu artigo de opinião da revista Atual  (sic) de hoje (jornal Expresso). Mexia baseia-se num ensaio de Eduardo Lourenço, ensaio esse que eu não li e por isso não irei comentar. No entanto, o texto de Pedro Mexia merece uma série de críticas...
Diz Pedro Mexia que "não há nada de 'natural' no casamento, trata-se de ritualizar e institucionalizar uma troca e uma realidade biológica que, essa sim, é estritamente animal.". Em primeiro lugar, há uma patente contradição aqui: se, como diz Mexia, não há nada de natural no casamento, como é que se apoiaria numa realidade biológica (animal), e portanto, natural?
Evidentemente, o casamento, antes de ser um ritual, antes de ser uma instituição social, é uma realidade biológica, e portanto natural. Quando nos referimos à espécie humana sabemos que, sendo a nossa espécie uma das que se reproduzem de forma sexuada, ela só está totalmente representada pelos dois sexos, o masculino e o feminino. Antes de mais nada, há o facto biológico de que o ser humano é homem e mulher. O casamento representa, antes de mais nada, antes de qualquer ritual ou instituição, um facto biológico inegável.
Pedro Mexia diz que o casamento assenta numa realidade biológica que, segundo ele, "é estritamente animal". Ora se é verdade que no que diz respeito à sexualidade, o acto conjugal humano é análogo ao dos restantes animais, dado que o ser humano possui faculdades intelectuais e psicológicas (emotivas, afectivas) superiores e únicas quando comparadas com as dos restantes animais, torna-se evidente que o casamento entre seres humanos é um facto que transcende o aspecto puramente animal do acto conjugal. Incorpora-o, mas contém ainda a união entre um intelecto masculino e um intelecto feminino, entre uma psique feminina e uma masculina, a mesma união de realidades complementares que vemos no acto conjugal. E só desta forma, vemos o casamento humano, antes de qualquer ritual ou instituição, como uma realidade multi-camada (física, psicológica, intelectual) que, na união dos opostos complementares do masculino e do feminino, representa de forma completa o que é o ser humano.
Por tudo isto, e a um nível ainda pré-social, vemos que a ideia que Pedro Mexia tem do casamento humano é uma ideia errada e amputada.
Mas a parte mais espantosa é a que se segue: Pedro Mexia diz que o casamento indissolúvel "é uma formulação antiga, mas que entretanto deixou de ser efectiva como crença", dizendo ainda a temeridade de que "as pessoas, mesmo as crentes, mesmo as que casam 'pela Igreja', não acreditam em casamentos indissolúveis, e dedicam à 'indissolubilidade' uma indiferença vaga e calada".
Mas Pedro Mexia pretende mesmo que não existem no Mundo pessoas que acreditam no casamento indissolúvel? Bom, permita-me, Pedro, dizer-lhe que eu acredito. E tenho a leve impressão de que não estou sozinho.E tenho ainda a impressão de que haverá uma pessoa ou outra, mesmo não crente, que também acredita nesse conceito, que antes de ser religioso, antes de ser social, é um conceito antropológico. Antes da teologia (cristã ou outra) do casamento, está a antropologia da coisa, e não há como negar a verdade de que o conceito de indissolubilidade, antes de qualquer teorização teológica, está ligado à estabilidade familiar. Não só à estabilidade do homem e da mulher, casal, que vêem o seu cônjugue como a outra metade de uma coisa só, que se entregam um ao outro e se realizam na plenitude do que a sua essência humana, masculina e feminina, lhes diz. Mas também à estabilidade da família no sentido em que tal indissolubilidade proporciona o meio ideal, e mesmo natural, para a protecção e a educação dos filhos. E mesmo quando estes se emancipam, o matrimónio dos seus pais, quando perdura (e muitas vezes perdura) permanece como uma realidade agregadora, como a realidade sobre a qual as suas vidas estão construídas. Tudo isto é o casamento.
Depois, Pedro Mexia mostra desconhecer alguns aspectos elementares da teologia cristã acerca do matrimónio: Mexia alvitra que o cristão "precisa de uma instituição 'idealmente eterna'", mas porque razão equipara ele a indissolubilidade à eternidade? Nunca o cristianismo pretendeu que o casamento, sendo indissolúvel nesta vida como é, teria que ser eterno. Em primeiro lugar, como é sabido, o cristianismo nunca considerou imoral que uma viúva ou um viúvo se voltasse a casar, o que imediatamente destrói a ideia errada de Pedro Mexia acerca do casamento cristão ser uma institução "idealmente eterna". Mas o erro de Mexia vai mais fundo: é que o próprio Cristo deixou bem claro que nenhum casamento perdurará para a vida eterna:
"Na ressurreição, nem os homens terão mulheres nem as mulheres, maridos; mas serão como anjos no Céu.", São Mateus, 22, 30.
E, espantosamenete, Pedro Mexia sugere a enormidade de que o casamento, para os cristãos, seria como que um "mal menor". E, para isso, socorre-se de São Paulo. Ora, isso é de pasmar, sobretudo quando o casamento humano é a imagem que a teologia cristã, e também São Paulo, utiliza para explicar a união mística entre Cristo e a Sua Igreja:
"Por isso, o homem deixará o pai e a mãe, unir-se-á à sua mulher e serão os dois uma só carne. Grande é este mistério; mas eu interpreto-o em relação a Cristo e à Igreja.", Carta de São Paulo aos Efésios, 5, 31-32.
Será que tal união mística entre Cristo e a Igreja é explicada com base num "mal menor"? Seria absurdo que o cristianismo considerasse a união entre homem e mulher como "um mal menor", e isso significaria nada mais e nada menos do que a queda na heresia gnóstica, que a Igreja sempre rejeitou, porque considerava a Criação como maléfica, obra de um demiurgo maligno, considerando portanto que a sexualidade era imoral e repulsiva.
Quando São Paulo diz que "mais vale casar-se do que abrasar-se", ele está, obviamente, a dizer que mais vale tomar a opção pelo casamento, para aqueles que não são capazes de uma vida celibatária de consagração a Deus. Que tal opção, nesses casos, é melhor do que, não se casando, viverem uma vida de concupiscência. Nunca São Paulo pretende considerar o casamento como um mal menor, pela simples razão lógica de que São Paulo não considera o casamento como um mal. E se São Paulo louva as virtudes do ideal celibatário que ele mesmo escolheu, é em vista do que Cristo disse (São Mateus, 19, 12) acerca daqueles que, por amor a Deus, vivem o celibato, e não como uma crítica ao casamento.
Se o cristianismo tivesse imposto o celibato como ideal cristão, no sentido de regra moral para toda a humanidade, as consequências sociais dessa recomendação seriam ruinosas, as mesmas que teríamos sofrido se a heresia cátara (gnóstica) tivesse vingado na Europa medieval, com a sua condenação da reprodução como acto imoral: a extinção de populações inteiras por falta de descendência. O cristianismo não é gnóstico: é, aliás, o oposto disso.
O cristianismo vê o casamento como uma união mística, como uma realidade querida e desejada por Deus, e mais ainda, como uma espécie de imagem do próprio Deus:
"Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher.", Génesis, 1, 27.
Em justiça, devo dizer que concordo com o que Pedro Mexia escreve acerca do facto de que o cristianismo não entendeu nunca o casamento como algo fundado exclusivamente na paixão ou no amor. Sem dúvida que uma realidade tão importante como a do casamento não poderia estar estruturada sobre emoções ou paixões voláteis ou temporárias, e se o cristianismo assim o entendeu, isso só soma pontos à maturidade da sua visão antropológica e social.


sábado, 26 de maio de 2012

Alvin Plantinga - Ciência e religião teísta



Alvin Plantinga é um dos mais competentes filósofos analíticos da actualidade. E é a principal figura por detrás do regresso da filosofia cristã às universidades anglo-saxónicas (na Europa continuamos atolados, em boa parte, num pós-modernismo decadente). Mas ele é bem mais do que isso: é uma pessoa impecável, um excelente comunicador. Nesta palestra, Plantinga apresenta o seu mais recente livro sobre a relação entre ciência e religião: "Science and religion - where the conflict really lies". Nesse livro, Plantinga não defende apenas que o conflito entre cristianismo e ciência é ilusório ou superficial: ele defende que o conflito está entre ateísmo (o naturalismo materialista) e ciência. Nesta palestra, Plantinga apresenta o seu principal argumento: quando conjugadas, as teses do ateísmo materialista e do evolucionismo destroem a nossa confiança nas nossas capacidades cognitivas. Se tudo o que existe é matéria e se o evolucionismo é um processo não guiado, então as nossas faculdades cognitivas não são minimamente fiáveis. E por isso, a eventual crença de um ateísmo evolucionista e materialista auto-refuta-se. Vale a pena ver o vídeo várias vezes, com a calma e o tempo que ele merece.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A Igreja Católica e a Maçonaria

No passado Sábado fiz uma palestra intitulada A Igreja Católica e a Maçonaria, na qual expus as origens históricas da Maçonaria moderna (especulativa, simbólica) e alguns detalhes acerca da primeira condenação papal e das suas razões. Historicamente, cingi-me apenas ao século XVIII, pelo que esta apresentação, necessariamente, nada contém acerca da maçonaria irregular ou da fase anticlerical de certas correntes maçónicas. Creio que, demonstrando de que forma a Maçonaria, na sua génese cristã (protestante) e inglesa, já é incompatível com a doutrina católica, será ainda mais evidente a sua incompatibilidade em ulteriores épocas históricas quando certos elementos e correntes da Maçonaria trabalharam contra a Igreja Católica e contra o cristianismo.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O baixo nível da revista Sábado

Quem compra a revista Sábado e a lê com dois dedos de testa, já se deu conta de que essa revista está a querer conquistar mercado de leitores à TV Guia e à revista Maria. Os temas de capa oscilam, "grosso modo", entre quatro categorias: sexo, Igreja Católica (normalmente nos sub-temas Opus Dei, evangelhos secretos, revelação de segredos que a Igreja ocultou, códigos secretos, negócios ocultos, etc.), destinos de férias ou restaurantes, e finalmente, sexo (que inclui a sub-categoria "vida sexual dos padres e das freiras". Este tipo de literatura faz lembrar os bons velhos tempos panfletários da Primeira República e dos "papa-padres". Hoje em dia, os "media" são o pelourinho ideal para supliciar a Igreja Católica ao abrigo do último preconceito que a nossa sociedade tolera: o anticatolicismo. O Opus Dei, nos nossos tempos, cumpre a função outrora a cargo da Companhia de Jesus: ser o alvo das teorias da conspiração e de todo o tipo de traulitadas anticatólicas. O comunicado de imprensa emitido hoje pelo Opus Dei em Portugal é um documento muito educado, civilizado, e de uma elevação tal que chega a chocar quando contrastado com a falta de seriedade e o populismo rasca da revista Sábado.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Maçon e católico?

Maçon e católico? Impossível. Uma contradição. Aqui fica alguma documentação, que peca certamente por omissão, acerca da incompatibilidade entre catolicismo e Maçonaria. A pertença de um católico à Maçonaria está vedada desde 28 de Abril de 1738, data da bula "In eminenti" de Clemente XII, o primeiro documento do Magistério a declarar a incompatibilidade e a condenar a Maçonaria de forma clara. Para se ter uma ideia das datas em questão, a Maçonaria moderna data de 1717, ano da fundação da Grande Loja de Inglaterra, a loja mãe da Maçonaria, que é o resultado da fusão de quatro pequenas lojas londrinas que se reuniam em tabernas. O projecto de fundação tem como figuras de proa o pastor protestante escocês (presbiteriano) James Anderson (1680-1739) e o cientista Téophile Desaguliers, oriundo de uma família calvinista francesa, e membro da Royal Society. Dado que o projecto da Maçonaria moderna nasceu em solo protestante, e pela mão de protestantes, nunca fez grande sentido ser-se católico e maçon, apesar de terem existido lojas quase exclusivamente compostas por católicos, como é um caso paradigmático a Casa Real dos Pedreiros Livres da Lusitânia, um órgão independente da maçonaria andersoniana, composta maioritariamente por católicos irlandeses, e estabelecida em Lisboa por volta de 1733-34, mas que se dissolveu voluntariamente aquando da bula de Clemente XII.