quinta-feira, 29 de março de 2007

Ludwig e os "mafaguinhos"

O meu caríssimo Ludwig brindou-me, recentemente, com um texto que, não sendo inteiramente dedicado à minha pessoa, começa, não obstante, com uma citação a uma frase minha, o que muito me apraz.
[Importa dizer, logo à partida, que não há uma só grama de ironia ou de sarcasmo nestas minhas palavras. Tenho a certeza de que as pequenas provocações do Ludwig não são gratuitas ou estéreis, e que constituem apenas a capa estilista usada por ele para fazer passar um raciocínio que suponho sério.]

«O Bernardo Motta apontou que «em grego, "pistis" (fé) é um termo bem diferente de "gnosis" (conhecimento).» Em Português também. Feliz coincidência. Assim não precisamos continuar a conversa em Grego.»

Para quem não leu o meu comentário que deu origem a esta nota de Ludwig, importa repetir o trecho em questão, para que se perceba que não estava em jogo qualquer tipo de elitismo linguístico oco e inconsequente. Até porque este vosso miserável escriba não sabe ler grego, e muito menos escrever ou falar em grego. O meu elementar conhecimento de uma mão cheia de palavras em grego não chega, evidentemente, para que me possa apresentar como fluente na língua helénica, nem era essa a ideia.

Vejamos o meu trecho em questão:
«Urge distinguir entre a crença sem conhecimento e a crença com conhecimento. Em grego, "pistis" (fé) é um termo bem diferente de "gnosis" (conhecimento). No entanto, elas podem coexistir no intelecto de um crente conhecedor. No meu percurso pessoal, a adesão pística foi essencial para o conhecimento que dela adveio.»

Note-se como a palavra “crença” surge duas vezes, juntamente com a expressão “percurso pessoal”. Isto de nada vale para quem não me conhece (não que haja grande relevância em conhecer-me!), mas há que sublinhar que o trecho acima repetido era apenas um mero comentário dirigido a uma pessoa em concreto, Ludwig, que sabe bem que os termos “crença” e “percurso pessoal”, se escritos por mim, referem-se ao meu percurso de crente cristão.

Nesse contexto, que importa conhecer para se entender porque razão a fiz, a alusão ao grego é essencial, porque provém do facto de que essa língua é a base da formalização do pensamento cristão. Apesar de o latim ser a língua oficial da Igreja Católica, não há como negar que, na génese do cristianismo, a língua de eleição foi o grego, e nela foi vertida uma míriade de textos patrísticos de valor intelectual inestimável, e muitas vezes totalmente desconhecidos. Por exemplo, é da total ignorância acerca da Patrística que nasce uma das teorias anti-cristãs mais populares dos nossos tempos: a teoria de que a doutrina da Igreja Católica seria, sobretudo, romana e pagã, resultando da obra política de Constantino, e de que tal doutrina estaria muito longe da doutrina de salvação proposta por Jesus Cristo. Obviamente, só é possível sustentar tal asneira quando nunca se leu uma só linha de um qualquer autor patrístico.

Como se vê, para qualquer cristão que procura ir às origens da sua doutrina, o grego é uma língua de referência. Por essa boa razão, eu quis trazer para a conversa os dois termos gregos, “pistis” (fé) e “gnosis” (conhecimento) porque tais termos são empregues com abundância pelos Padres da Igreja que escreveram em grego, o que demonstra cabalmente que, ao invés do que poderá defender um leitor de Ludwig (o próprio Ludwig sabe-o bem e não cometeria erros grosseiros desse calibre), a fé verdadeira não vive sobre a ignorância nem apela à ignorância como solidificação de si mesma: a fé é o prelúdio necessário ao conhecimento. A patrística cristã alude à fé e ao conhecimento como duas modalidades distintas e complementares da intelectualidade cristã. Ambas são indispensáveis, no sentido em que a gnosis (o conhecimento de Deus) é o destino, o objectivo, e a pistis é o caminho, o percurso. Embora aceite facilmente que tenham existido raros cristãos que alcançaram, com a graça de Deus, a plenitude da gnose cristã (o misticismo cristão está repleto de bons exemplos), suspeito que nenhum desses casos teria sucedido sem o suporte da fé, o que seria sinal de invulgares qualidades espirituais (estranhas ao ser humano), diria mesmo “sobre-humanas”.

E, dado o carácter único de Deus, a sua infinitude obriga a uma relação necessariamente assimétrica entre Ele e a criatura finita. Mas isso não significa que Deus esteja inacessível ao ser humano:

São Tomás: «De facto, quanto aos bem-aventurados, eles certamente atingem com a mente a essência divina, mas não a compreenderão», De divinis nominibus, 22.

O que quer isto dizer? “Não a compreenderão”, na acepção literal de compreender, ou seja, “abarcar”. O que é um truísmo: a criatura finita não pode abarcar (compreender) o Deus Infinito. Contudo, sendo o intelecto humano a “ponte” que este tem para o universal, é certo que o homem pode, se for persistente e “bem-aventurado”, «atingir com a mente a essência divina».

Ludwig continua:
«Eu propus que a verificação independente permite distinguir o conhecimento da mera crença. O Bernardo retorquiu que:

«eu faço a "verificação independente" da justeza e veracidade da minha fé por intermédio de operações intelectuais.»

É como fazer eu próprio a verificação independente da minha declaração de impostos. Será que a DGCI vai na conversa? Por verificação independente quero dizer mesmo isso. Independente. Se o aluno diz que sabe a matéria, o professor verifica. Se um cientista propõe uma hipótese, outro cientista verifica. Independentemente. E nunca por mera operação intelectual. Algures, alguma ideia será confrontada com alguma observação, senão não se verifica nada. Aposto que em Grego «verificar» e «olhar para o umbigo» também são termos diferentes.»


O meu caro Ludwig parece ignorar, por breves instantes, que está a criticar um mero comentário, curtas notas soltas escritas de forma despreocupada, num espaço limitado e desadequado a grandes exposições. Mas vou agora tentar ser mais claro, dispondo de espaço e oportunidade para o fazer.
Há dois aspectos que importa analisar separadamente: “verificação”, e “independente”. Comecemos pelo primeiro...
Estas singulares palavras de Ludwig levantam imediatamente, no meu espírito limitado, uma série de questões que me parecem de monta. Primeiro, é preciso sublinhar que a verificação de qualquer tese é sempre uma operação intelectual, sendo também certo (nunca afirmei o contrário) que muitas das verificações que fazemos quotidianamente recorrem ao auxílio dos sentidos (Aristóteles atribuía estas operações intelectuais ao que ele determinou chamar de “intelecto possível”). Mesmo quando um cientista procura demonstrar, recorrendo ao método experimental, a adequação de uma tese à realidade de um dado fenómeno, ele está permanentemente a aplicar operações intelectuais. Operações que mais nenhum animal por nós conhecido é capaz de efectuar, mesmo sabendo-se que muitos animais também possuem equipamento sensorial. Não será também isto uma pista interessante?

Podemos dizer, sob um determinado ponto de vista (o do objecto do conhecimento), que há duas classes ou categorias de operação intelectual no ser humano que importa considerar agora como distintas:

a) Operação intelectual sobre objectos apreensíveis empiricamente: é a mais corrente, e qualquer verificação científica por método experimental usa-a quotidianamente;

b) Operação intelectual sobre objectos supra-empíricos (ideais): é uma operação comum ao filósofo, por exemplo; neste caso a verificação da veracidade de uma tese ou raciocínio é uma operação puramente intelectual (usa-se como ferramenta central a Lógica), que não carece necessariamente de confronto com o nível empírico da realidade; o facto de, em muitos casos, o filósofo recorrer a analogias que nascem do empírico não nos deve enganar: o ser humano usa o mental, quase sempre, com base em imagens, em experiências sensoriais anteriores a um presente raciocínio; no entanto, a analogia é uma ferramenta potente, porque podemos perfeitamente usá-la para apreender objectos supra-empíricos; um exemplo: quando usamos o termo “reflectir”, vem-nos logo à mente a imagem de um espelho: as operações reflexivas que ocorrem na nossa mente, quando veras, resultam da “reflexão” de um arquétipo no “plano” do nosso intelecto; o recurso a um termo que invoca experiências sensoriais com superfícies reflectoras ajuda-nos a compreender o próprio processo de conhecimento.

Poderíamos ainda falar do conhecimento metafísico, cuja natureza é intuitiva e não dedutiva, mas nem vale a pena ir mais além do segundo tipo de operação referido. É evidente que, negando o metafísico, Ludwig negue sequer que se possam efectuar operações intelectuais em tal domínio. O problema de Ludwig vem mais de trás: Ludwig parece não aceitar sequer que a operação mental feita pelo filósofo sobre uma determinada ideia seja, realmente, uma “verificação” válida! Isto é puro consensualismo (ver adiante), é o negar de qualquer valor à evidência individual! No entanto, dada a sua formação científica, o Ludwig conhece bem as ferramentas da Lógica. Só que parece apenas querer aplicá-las sobre objectos empíricos, duvidando da sua utilidade no tratamento de objectos supra-empíricos, como as ideias.
O que diria, Ludwig, acerca do trabalho científico na área filosófica específica dos argumentos ontológicos? Será que se trata de trabalho intelectual vão, por não gerar aplicações práticas ou por não estar fundamentado em verificações empíricas?
Veja, por exemplo:
Ontological Arguments

É curioso…
A eterna discussão em torno da Teoria do Conhecimento, que ocupa filósofos de todos os continentes desde a aurora do pensamento humano, uma questão que está longe de estar encerrada (nunca esteve tão em aberto), encontra-se dramaticamente simplificada na cosmovisão de Ludwig: para ele, parece que o conhecimento humano deve estar forçosamente cingido ao puro e estrito empirismo. No fundo, para Ludwig, “conhecer” não seria uma operação intelectual, carente de suporte ontológico, mas seria apenas um mero processo bioquímico explicável por elementares fenómenos positivos na matéria que compõe o nosso cérebro. “Verificação”, para Ludwig, parece ser sempre algo de sensorial, totalmente dependente da “matéria” (essa “pedra filosofal” desta modernidade caída), e é com esforço que, sequer, admitirá que, mesmo no caso elementar da verificação usando os sentidos, a operação em causa seja um processo intelectivo vero que transcenda a matéria!

Mas não quero, de forma alguma, escamotear o texto de Ludwig: a esmagadora maioria dos seus textos, de tal forma são intensos que qualquer um deles daria a possibilidade de uma extensa e profunda troca de ideias filosóficas. É o que eu queria fazer, aproveitando mais esta oportunidade por ele proporcionada.

Diz Ludwig:
«É verdade que poucas vezes precisamos desta verificação independente. Quando consultamos o horário do autocarro ou compramos bolachas basta-nos comparar crenças com observações e rever as primeiras se necessário. Não precisamos que outros confirmem cada inferência que fazemos. Mas quando há empenho pessoal numa certa conclusão, seja nos impostos, passar no exame, publicar o artigo, ou em matéria de fé, é provável que factores subjectivos guiem crenças e afirmações e as afastem da realidade. Nestes casos é importante testar a crença de uma forma independente.»

Este trecho de Ludwig é muito sensato e vejo-me forçado a concordar com ele. Adiante, falarei acerca da limitação humana, e da nossa permanente necessidade de confiar nos outros quando não estamos plenamente capazes de chegar a uma evidência individual. Curiosamente, este trecho de Ludwig ajuda-me a explicar porque razão a fé precede sempre o conhecimento, porque não é uma via alternativa e contraditória: é a via que leva àquele destino, mas já lá iremos…
Mas fica-se com a impressão de que esta “verificação independente” de que fala o Ludwig é verdadeiramente o melhor que temos para conhecer o real. É aqui que nasce a nossa profunda divergência, pelo simples e elementar facto de que eu reconheço a Deus a possibilidade (bem simples para Ele) de ter comunicado um caminho aberto para que o Homem pudesse conhecer a verdade sobre todas as coisas. Para o cristão, esse caminho chama-se Jesus Cristo.
Ludwig insiste na exclusividade do teste empírico.
Eu insisto na na ineficácia desse teste para coisas supra-empíricas.
Eu insisto na necessidade da crença em Deus (Fé) para que daí advenha conhecimento vero e descritivo do real.

Vejamos primeiro as fraquezas da visão de Ludwig, e depois vejamos a força da visão cristã que eu defendo.

As fraquezas da visão de Ludwig

Independência
O teste independente não é uma garantia de veracidade. Ludwig diz que, quando estamos pessoalmente envolvidos numa inferência, é importante evitar que «factores subjectivos guiem crenças e afirmações e as afastem da realidade». Totalmente de acordo! Mas será que a verificação independente vai resolver o problema gnoseológico? Veremos isto adiante…

Testabilidade
O problema com o testar exclusivamente por via empírica de uma proposição é duplo:

a) só serve para proposições empíricas, ou seja, só é útil para aferir afirmações acerca da realidade empírica; não é possível testar uma tese metafísica (Karl Popper); o testar é impossível e inútil em termos metafísicos; as teses metafísicas têm que ser verificadas intelectualmente (quanto mais pessoas o fizerem, e aperfeiçoarem tal verificação – colegialidade – tanto melhor)

b) na análise de fenómenos, o teste empírico só serve para fenómenos repetitivos; é inútil em fenómenos cuja ocorrência é única e irrepetível (como testar a ressurreição de Cristo ou a concepção de Cristo no seio virginal de Maria se se trataram de eventos únicos e irrepetíveis?)

É que eu não tenho a mais pequena dúvida disto, Ludwig: se um cientista moderno estivesse presente dentro da sepultura de Cristo, naquelas dezenas de horas que se seguiram ao enterro do Mestre, e estivesse munido da mais sofisticada tecnologia de medição, ele poderia ter presenciado esse acontecimento único que foi a ressurreição. O Ludwdig, num texto mais recente, admitiu que um fenómeno inexplicável empiricamente poderia ser alvo de uma explicação metafísica, se se adequasse ao observado. Mas não havia cientistas dentro do túmulo de Cristo! Nada foi fotografado, medido, registado! Apenas testemunhos de pessoas, Ludwig, que viram o túmulo vazio e o Mestre ressuscitado (até tocaram no seu corpo, portanto não se tratava de uma aparição "fantasmagórica")... De que vale isso? Testemunhos pessoais, que vale isso para si, se as ferramentas da Ciência não puderam lá estar?
Entende como é pouco interessante o seu critério, Ludwig, para uma explicação total da realidade? Tudo o que eu não puder repetir, não posso conhecer! Bela ciência... Com ciência assim, havemos de ir longe!

Como vemos, o “teste independente” sugerido por Ludwig de nada serve em teses metafísicas (pouco grave para um ateu), mas também de nada serve para analisar fenómenos únicos e irrepetíveis (muito grave para um ateu). O caso da (suposta) evolução das espécies é um óptimo exemplo de que a ciência deve ter cuidado com as suas teses, quando não consegue repetir os fenómenos que quer explicar. Por exemplo, quando não consegue repetir o fenómeno do surgimento da vida ou do surgimento da vida inteligente.

Por sua vez, a verificação intelectual (por tentativa de falsificação) de uma tese metafísica pode seguir por duas vias distintas e complementares:

a) procura de contradição interna: se, após aturada busca, a tese metafísica não possui contradição interna, teremos uma das condições necessárias da sua veracidade; basicamente, as leis da Lógica não podem ser nunca violadas;

b) procura de incompatibilidade com o empírico (não se aplica a qualquer tese metafísica, mas apenas às que podem ser causas de fenómenos empíricos): se uma tese metafísica pretende explicar um determinado fenómeno empírico, pode-se tentar averiguar intelectualmente se o efeito observado pode ser explicado pela causa metafísica proposta a verificação.

Mas, como veremos adiante, a metafísica só é verdadeiramente eficaz, demonstrativa e explicativa com a consideração axiomática (acima de discussão) do Infinito, do Ser, do Uno. Enfim, com a fé em Deus…

A força da visão cristã

A importância e actualidade do legado do Aquinate
«Um dos motivos que levam os homens através dos tempos ao estudo da filosofia foi o desejo de compreender a sua própria natureza. Em particular, os homens voltam-se para a filosofia para procurar um maior conhecimento da natureza dos seus próprios espíritos. Desde os tempos antigos, os filósofos tentaram ganhar este conhecimento, reflectindo sobre os seus próprios processos mentais e capacidades, e considerando a linguagem que usamos par exprimir e descrever os nossos estados mentais. Em séculos recentes, apareceu um número de disciplinas científicas dedicadas ao estudo do espírito – ramos da psicologia experimental, social e clínica. A informação adquirida por estas disciplinas ajuda-nos imenso na compreensão da natureza humana: mas não competem com, nem conseguem substituir, o estudo filosófico do espírito. Isto acontece porque a relação entre os fenómenos estudados pelo cientista e os acontecimentos ou estados mentais que se manifestam nestes fenómenos, é, ela própria, um problema filosófico: é o problema central da filosofia da psicologia, ou o que hoje se chama vulgarmente, “filosofia do espírito”. Devido à natureza estável do quadro filosófico para o estudo do espírito, os escritos de filósofos antigos, medievais, e dos séculos XVII e XVIII, não se tornaram antiquados com o progresso da ciência, como aconteceu com os escritos em outras áreas. Em particular (…) os escritos de Aquino sobre os tópicos hoje tratados por filósofos do espírito continuam a ter valor» - A. Kenny, São Tomás de Aquino. Tradução de Maria M. Pecegueiro, Lisboa, 1981, pp. 107-108, in prefácio da obra de São Tomás de Aquino, A unidade do intelecto (contra os averroístas), Edições 70, 1999, escrito por Mário Santiago de Carvalho.

Não é possível afirmar, de forma mais clara, que a área científica de trabalho de São Tomás de Aquino, sendo das mais perenes acessíveis ao ser humano, porque visa o intelecto, não passa de moda só porque os ideólogos modernos querem que passe de moda!

Vejamos mais um texto interessante, para deixar bem claro que as presumidas incompatibilidades entre Ciência moderna e Fé têm que ser demonstradas, e não tomadas como auto-demonstradas só porque dá jeito...

A importância da exegese e da hermenêutica – a inerrância do texto sacro
«São Jerónimo, Cartas, n.º 27 [a Marcela, 382-385]
Aos meus detractores, a minha resposta é esta: Eu não sou tão pobre de espírito nem tão ignorante (qualidades que eles tomam como santidade, chamando a si mesmos os discípulos dos pescadores como se os homens fossem feitos santos por nada saberem) – Eu não sou, repito, tão ignorante que suponha que alguma das palavras do Senhor necessite de correcção ou não seja divinamente inspirada; mas já se provou que os manuscritos latinos das Escrituras estão errados pelas variações que todos eles exibem, e o meu objectivo tem sido o de restaurá-los para a forma do original Grego, do qual os meus detractores não negam que eles tenham sido traduzidos.»


Se há problemas de tradução, se há problemas de interpretação, se apenas uma hermenêutica competente pode fazer ressaltar a essência do texto sacro, é de espantar a ligeireza com que se apontam as supostas incompatibilidades entre a fé cristã e o mundo observável...

A fé (como caminho) precede o conhecimento (como fim), porque não se pode chegar a um destino sem se procurar o caminho certo para o alcançar. Se não estou, intelectualmente, no destino que quero estar (o conhecimento), devo meter-me a caminho. Mas antes, devo escolher a direcção na qual quero caminhar. A fé é a direcção a escolher para caminhar para o conhecimento de Deus. Sendo Deus a origem de tudo, é evidente que o conhecimento correcto do divino não pode incompatibilizar-se com o conhecimento correcto do mundano.

Vejamos agora um excerto do prefácio excelente de Mário Bruno Sproviero e de Jean Luiz Lauand, escrito para uma obra que reune duas quaestiones disputatae de São Tomás:

«Na Suma contra os Gentios, ao explicar por que é necessário crer mesmo quando se trata de verdades divinas acessíveis à razão: «A própria debilidade dos nosso entendimento para discernir, e pela confusão dos fantasmas [nota: “phantasma”, em grego, é “imagem”], faz com que na maioria dos casos mescle-se nas investigações racionais o falso, e, portanto, para muitos parecerem duvidosas muitas verdades que estão efectivamente demonstradas, já que ignoram a força da demonstração, e principalmente vendo que os próprios sábios ensinam verdades contrárias. Também entre muitas verdades demonstradas, introduz-se, às vezes, algo falso que não se demonstra, mas que se aceita por razão provável ou sofística, tido como demonstração. Por isto foi conveniente apresentar aos homens por via de fé uma certeza fixa e uma verdade pura das coisas divinas” (I,4).
Se a razão particular de alguém não for capaz de compreender, por exemplo, a demonstração de Wiles (Nota: Andrew Wiles apresntou, em 1994, a demonstração do último teorema de Fermat), nem por isso deixará de aceitar o teorema, a não ser que coloque a sua razão acima de tudo, o que acontece em muitos casos.
Em hipótese alguma deve-se desvalorizar a evidência particular e não incentivar a sua busca. Ela é o único critério pelo qual o indivíduo pode dizer que conhece por si a verdade. Mesmo quando não tenha essa evidência, o indivíduo pode e deve aceitar verdades, quer pela evidência dos outros, quer por Revelação.
Quando o indivíduo tem a evidência das verdades que aceita, deve confrontá-las e submetê-las aos outros, como acontece com as verdades científicas.»
, Mário Bruno Sproviero e Jean Luiz Lauand, em Verdade e Conhecimento, de São Tomás de Aquino, pp. 116-117.

Já reparou, Ludwig, como estamos perto da sua ideia sensata acerca da necessidade da fé razoável em milhares de ocasiões da nossa vida? Como não temos a possibilidade de estudar tudo a fundo, com o detalhe do especialista, vivemos permanentemente mergulhados em pequenas "fés", assentes em pessoas ou instituições que nos dão confiança pessoal!

Sobre a evidência individual e colectiva – contra o consensualismo
«Deve ficar claro que se tenho uma evidência e esta evidência também é participada por outros, isto é um indício superior ao caso em que esta evidência só é minha e outros não a condividem. Claro que pode haver exceções, e houve muitas na história da ciência, geralmente quando algo novo é introduzido; mas depois de certo tempo, haverá a aceitação. Daí que foram estabelecidos muitos critérios, nos meios científicos, considerando esta evidência colectiva. Um neopositivista como Moritz Schlick (1882-1936) não tem outro critério do que a comunidade científica; a concepção sociológica da verdade, lançada por Durkheim e aceita por Goblot, defende que a verdade é atestada não pela confrontação do espírito com o real, mas pelo acordo dos espíritos. Este é um critério que procede de Kant, da intersubjectividade. Substitui-se a razão interpessoal de Kant pela sociedade. Assim, a verdade é definida pela crença colectiva; o que eu penso é subjectivo, o que toda a socieade pensa é a verdade. Isto é o consensualismo.
Na postura consensualista, tudo está invertido: temos dois princípios que se confundem facilmente e que, no entanto, distam como o céu da terra.
O primeiro, o autêntico, o que foi mostrado até agora, e que deve completar a evidência individual, é este: se algo é verdadeiro, então deve mostrar-se evidente ao maior número de sujeitos. Estes devem ter abertura e capacidade para a verdade. O princípio espúrio, o consensualismo, é: se a maioria, independentemente de qualquer evidência e competência, considerar verdade, então deve ser verdade. Então, não é por muitos considerarem verdade que é verdade, mas, ao contrário, se for verdade, muitos deveriam aceitar como tal.»
, Ibidem, pp. 119-120.

Eis, em suma, Ludwig, o seu grande erro (que, obviamente, não é só seu, é de toda a ciência positivista): a verdade pré-existe ao ser humano que a detecta intelectualmente. Só se obtém ciência verdadeira pela adequação dos nossos intelectos ao real. Isto é sensato. Se uma ideia é verdadeira, é natural que muitos homens inteligentes a atinjam. No entanto, os tempos modernos provaram a vitória do consensualismo: quantas mais pessoas partilharem de uma tese, mais veracidade lhe dão... É precisamente o inverso!

O Ludwig, centrando toda a ciência no cogito cartesiano (existo porque penso), já está desviado radicalmente da realidade. É que nós pensamos porque existimos! A existência é o ponto de partida. O cartesianismo levado ao extremo (como sucede nos dias de hoje) resulta nessa ideia absurda de que é a matéria que, por evolução, engendra o intelecto. Quando sucede precisamente o oposto: o intelecto pré-existe e determina a matéria.

Mais sobre isto noutros textos futuros...

Ludwig termina assim:
«Mas «deus» é mesmo uma palavra mafaguinho. Para os teístas é uma pessoa que se preocupa, que perdoa ou castiga, que se zanga ou se alegra, que ama ou odeia. Para os deístas é o relojoeiro que deu corda ao universo e agora não liga a nada ou ninguém. Para os panteístas é tudo. Para Einstein era a elegância da relatividade. Para Hawking a complexidade da mecânica quântica. Mas não há nada em comum entre todos os estes usos da palavra. Dizer «deus» dá tanta informação como dizer «mafaguinho».»

O que o Ludwig fez foi citar várias definições de Deus, quiçá todas erradas! Do mesmo modo que a história da ciência nos deu várias definições de matéria, ou de energia, ou mesmo de átomo. O caso da palavra "átomo" (em grego, literalmente "sem partes", ou "indivisível") é excelente. Para Demócrito, significava uma partícula sem partes. Nos tempos modernos, a palavra continua a ser usada, mas a fissão do átomo (separação da tal supostamente indivisível partícula) é fenómeno central na produção de energia eléctrica por via nuclear!
Então em que ficamos, Ludwig?
Se me permite, dizer que a palavra "Deus" é um mafaguinho é uma redonda treta! Para si, que é sensível às tretas, será que a palavra "átomo" não será também uma treta?

É claro que não é...
Como é que aprendo a dar o devido contexto e interpretação ao termo "átomo"? É simples: estudando a filosofia de Demócrito e simultaneamente a Física das partículas.

Ludwig, pelo seu lado, aposta na postura agnóstica, na vitória da ignorância:
«O mesmo se passa com espiritual, sagrado, revelado, e todas essas palavras que as religiões usam para se definir. São inúteis para comunicar ideias concretas pois nunca se sabe ao certo o que querem dizer. E é por isso que abundam na doutrina religiosa.» (negrito meu)

Nunca se sabe ao certo?
Afirma isto baseado em quê, ao certo?
Que culpa teremos nós, cristãos, destes factos, Luwdig?

a) você não aceita que haja uma ideia verdadeira acerca de Deus (considera todas as ideias sobre Deus como equivalentes porque irrelevantes)

b) você não aceita que pode estar a ignorar muita coisa em matéria de religião

Esta sua última frase é espantosa: é, simultaneamente, uma confissão de ignorância ("nunca se sabe ao certo o que querem dizer"), e uma afirmação categórica ("são inúteis para comunicar ideias concretas"). Parece-me bastante sensato que, perante o confesso desconhecimento numa dada matéria, se evitem as afirmações categóricas...

Um abraço,

Bernardo

quinta-feira, 15 de março de 2007

Exortação Apostólica do Papa Bento XVI

[Nota: o último parágrafo deste texto foi revisto face à versão originalmente publicada]

Já está disponível para consulta o texto completo da primeira exortação apostólica de Bento XVI, Sacramentum Caritatis.

A leitura é altamente recomendada, sobretudo aos católicos. É evidente que qualquer proclamação papal tem uma importância enorme, e deveria ser recebida por todo o universo católico. Infelizmente, estes textos são pouco divulgados. Mas com o advento da Internet, cada vez é mais fácil estar atento aos textos emanados da Santa Sé.

O Papa Bento XVI presenteia-nos com um texto de grande qualidade e profundidade, relembrando a mentes mais distraídas a essência e a razão de ser de pontos fundamentais da doutrina católica. Aqui e acolá, os media já se vão acotovelando, apresentando títulos imbecis como Vaticano não aceita alteração - Papa mantém celibato de padres".

O carácter cretino desta notícia está no facto de ignorar totalmente a realidade que pretende retratar em modo jornalístico. Nesta notícia em concreto, não se percebe se o problema é a parcialidade anti-católica do jornalista ou se é pura ignorância. Ou um misto das duas.

Primeiro ponto: o uso desadequado do termo "Vaticano"; o Vaticano é um lugar, não é uma entidade ou uma organização. Afirmar que Vaticano e Santa Sé são a mesma coisa é uma asneira ao estilo de Dan Brown. A Santa Sé nem sempre esteve sedeada no Vaticano, que é apenas o nome de um lugar específico na cidade de Roma.

Segundo ponto: partir do pressuposto que a manutenção do celibato é uma opção pessoal deste Papa. Muitas pessoas continuam a ignorar o carácter especial da função petrina do Papa. Há coisas que vêm do próprio Cristo e que nenhum Papa pode mudar.

Por estas e por outras razões, vale muito a pena despender alguns minutos no meio da correria do dia-a-dia para ler o texto da Sacramentum Caritatis. Ele é especialmente útil para aqueles imensos católicos dos nossos tempos, que são presas do erro da heresia do modernismo (muitos sem o saberem). Está na altura de começarem a compreender porque razão é que certas coisas são como são, e para entenderem que as coisas são como são por honra, louvor e fidelidade ao magistério inaugurado pelo próprio Cristo.

Há muitos católicos que ainda se mantêm fiéis à Verdade revelada por Cristo, e fiéis aos ensinamentos da Igreja que nunca abandonou esta mesma Verdade.
Está na altura de estes católicos ganharem a coragem necessária para, mesmo sob pena de perda de popularidade, afirmarem alto e em bom som, para todo o Mundo ouvir e entender, que:

ESTAMOS COM O PAPA BENTO XVI!

terça-feira, 13 de março de 2007

Luís Graça e os "pequenos cérebros"

Um dos adágios populares que mais aprecio é aquele que diz assim:

"A ignorância é muito atrevida"

Vem isto a propósito de um artigo saído no Expresso, no passado dia 10 de Março, intitulado "CUF proíbe pílula do dia seguinte":

«Em nome do “respeito absoluto pela vida humana”, o Código de Ética dos hospitais da CUF, do grupo José de Mello, impõe a todo o pessoal hospitalar regras de prática clínica que vão muito para lá da proibição da prática de aborto.

De acordo com o documento a que o Expresso teve acesso, “a vida humana, desde a sua origem no zigoto até à morte natural, é inviolável”. Por isso, além da prática de aborto, é vedado a todos os profissionais de saúde do grupo CUF “a prática de procriação medicamente assistida, a esterilização definitiva da mulher (laqueação de trompas), a esterilização definitiva do homem (vasectomia) e a prática de anticoncepção abortiva (pílula do dia seguinte)”. A justificação para estas normas vem logo a seguir onde se diz que “a maternidade e a paternidade são o suporte natural e necessário à fertilidade”.»


Até aqui, tudo bem. Aliás, tudo óptimo. Não só era um direito da CUF, sendo uma organização privada, não alinhar nas novas "modas", como a CUF deu um excelente exemplo de integridade, ética médica e coerência de princípios, visto que o objectivo da prestação de serviços de saúde médica a seres humanos não deve incluir atropelos éticos a estes, sob pena de se ferir o exacto bem que se quer servir.

«Contactado pelo Expresso, o ministro da Saúde recusou pronunciar-se sobre este Código de Ética alegando que “até à entrada em vigor da Lei da Interrupção Voluntária da Gravidez aprovada esta semana no Parlamento, o ministro não faz declarações sobre essas matérias”.»


Aqui, vemos o Ministro da Saúde a guardar-se para mais tarde, ele que terá certamente qualquer coisa na manga para os privados e para os objectores de consciência em geral. A coisa não vai ficar apenas pela privação do aconselhamento prévio para objectores. Isso é só um prelúdio do Senhor Ministro...

«Já o bastonário da Ordem dos Médicos lembrou que, ao contrário das normas éticas impostas pelos hospitais da CUF, “o Código Deontológico não levanta restrições à utilização da pílula do dia seguinte”. Pedro Nunes considerou ainda que “esse código numa unidade pública de saúde seria inaceitável, mas no sector privado prevalece o princípio de que ninguém é obrigado a ser tratado nessa instituição”. O bastonário acrescentou ainda que no sector privado as regras podem ser estabelecidas autonomamente mas “o que os médicos devem fazer é encaminhar as pessoas para um hospital com outras regras ou para o sector público”.»


O senhor bastonário, com todo o respeito, toma uma posição precipitada e injustificada. O Código Deontológico é incompatível com o aborto (terá que ser mudado em breve, devido à nova lei), e se é certo que a pílula do dia seguinte pode ter efeitos abortivos (se impedir a nidação do ovo fertilizado), é evidente que o uso deste tipo de fármaco constitui uma zona eticamente "nebulosa", uma vez que a mulher que o toma não sabe se, na prática, está a cometer um aborto ou não na altura da toma. Saberá certamente a posteriori, visto que os efeitos do Levonorgestrel são bem diferentes nos casos em que actua de forma abortiva e nos casos em que actua de forma anovulatória. Só que aí, havendo asneira ética, o mal já estará feito!

Mas vejamos agora o que diz o senhor Luís Graça:

«Mais contundente, Luís Graça, o presidente do Colégio de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos, considerou “um absurdo que uma estrutura administrativa adopte medidas que fazem parte das práticas de ginecologia e obstetrícia. É um abuso da interpretação relativamente ao exercício da medicina”.
Sobre o facto de o Código de Ética dos hospitais da CUF proibir os médicos de prescreverem a pílula do dia seguinte, Luís Graça não poupa nas críticas: “A pílula do dia seguinte é perfeitamente legal e não tem nada a ver com o que ‘esses pequenos cérebros’ acham que provoca aborto. A pílula do dia seguinte não é um método abortivo: ela impede a nidação de um ovo”
(negrito meu)


Dificilmente é possível dizer-se mais asneiras em poucas frases. Luís Graça parece estar em competição com o Dr. Albino Aroso, de quem falei num texto há uns dias atrás. O senhor Luís Graça diz que a CUF está a cometer "um abuso de interpretação"? É curioso: sempre achei que o acomodar do aborto no Juramento de Hipócrates é que seria um abuso de interpretação. O mundo está, de facto, a ficar virado de pernas para o ar. Pelos vistos, no novo quadro mental que emergiu de 11 de Fevereiro último, agora, a recusa da prática do aborto é um "abuso de interpretação relativamente ao exercício de medicina".

A recusa da CUF é simples e lógica: evitar a prática de um acto (a toma de Levonorgestrel) que pode ter efeitos abortivos, quando impede a nidação de um ovo fertilizado, ou seja, de uma gravidez em curso. Ou seja, quando impede a nidação, a "pílula do dia seguinte" provoca um aborto. Isto é tudo muito bonito quando as palavras saem da boca para fora para os jornalistas apontarem: mas todas as mulheres que já tomaram Levonorgestrel depois da fertilização sabem bem o efeito que este fármaco produz. Elas sabem bem quando é que ocorreu um aborto ou quando é que a ovulação foi simplesmente anulada.

Depois, Luis Graça comete a crassa confusão mental entre "legalidade" e "eticidade". Um acto legal não tem que ser sempre um acto ético. E um acto ético não tem que ser sempre um acto legal. Por isso, invocar a legalidade do uso do Levonorgestrel não influi uma vírgula na eticidade do seu uso. De nada serve. Mas o mais divertido, nas palavras de Luís Graça, é o uso da expressão "pequenos cérebros". Evidentemente, a dimensão craniana não influi necessariamente na inteligência, e a inteligência de cada um mede-se pela capacidade de gerar raciocínios lógicos, coerentes e acertados, e não pelo volume da massa cinzenta. Nesta medida, dir-se-ia que é precisamente Luis Graça que não está nada em boa situação de comparação, devido a estas suas palavras incoerentes e erradas, que denotam um raciocínio pouco apurado e pouco acostumado a pensar em termos Éticos.
Veja-se esta pérola de contradição:

«A pílula do dia seguinte não é um método abortivo: ela impede a nidação de um ovo»

Hmmm...
Impede a nidação de um ovo... Ovo esse que, não podendo nidar, morre. Morte essa que costuma ser chamada de... aborto!

Na sua incauta arrogância, Luís Graça lá acaba por ter a sua graça e ser um bom exemplo do acerto do adágio popular com o qual comecei este texto.

Terminemos, para desenjoar de tanta asneira, com as palavras sensatas de Daniel Serrão:

«Daniel Serrão, consultor de Ética dos hospitais CUF, garantiu ao Expresso que o Código assenta “nos valores da ética personalista”. O médico contesta ainda que a pílula do dia seguinte não seja abortiva, uma vez que “impede o desenvolvimento do embrião”.»

segunda-feira, 12 de março de 2007

Peter Gumpel comenta revelações de Ion Pacepa

O padre Peter Gumpel, relator da causa de beatificação de Pio XII, comentou recentemente, em entrevista à agência noticiosa Zenit, o artigo-revelação do ex-espião soviético Ion Mihai Pacepa. Vale a pena ler o que Peter Gumpel tem para dizer, ele que é um dos especialistas neste período histórico e na carreira papal de Pio XII:

Houve um complô da KGB contra Pio XII?

Apesar do peso e da importância das históricas revelações de Ion Pacepa, a verdade é que se trata de um ex-espião, e não faria sentido levar à letra tudo o que ele afirma sem fazer um confronto com a verdade histórica e com os documentos. Peter Gumpel lança luz sobre algumas partes mais obscuras do artigo de Pacepa, nomeadamente sobre o presumido papel do diplomata da Santa Sé, monsenhor Agostino Casaroli, numa também presumida manobra de ospolitik relativa a um presumido empréstimo a ser prestado pela Santa Sé, sem juros, e durante 25 anos, de mil milhões de dólares à Roménia.

Na segunda parte de suas revelações o general Pacepa sustenta que se encontrou em Genebra com o então monsenhor Agostino Casaroli, futuro secretário de Estado, para facilitar um «modus vivendi» entre a Santa Sé e a União Soviética, e haveria tido inclusive uma oferta de dinheiro.

Para Gumpel, «toda esta parte é muito difícil de crer. Ainda que devo admitir que pessoalmente fui muito cético sobre a ‘Ospolitik’ e não somente pelo que sabia do mundo comunista, mas também pelo que diversos cardeais, que viviam na parte ocupada pelos russos, me haviam dito».

«Graças aos contatos diretos que tinha com os cardeais Alfred Bengsch de Berlim, László Lékai e József Mindszenty da Hungria --sublinha--, posso dizer que os três eram muito contrários à ‘Ospolitik’. Não queriam ouvir falar dela».

O padre Gumpel explica que «há que ser extremamente prudentes e tentar verificar os fatos. Há perguntas sobre as que não temos resposta. Por exemplo, quando se encontrou com Casaroli? Em que hotel? Por exemplo, ele diz que há documentos no Arquivo Secreto Vaticano, documentos escritos por quem? Dirigidos a quem? Datados quando? Que tipo de documentos?, etc.».

«Definitivamente --conclui--, há que levar em conta que os espiões devem justificar sua existência e devem dar valor também a coisas de escassa ou nenhuma importância. Muitas vezes não são sérios e em alguns casos inventam coisas...».

sábado, 10 de março de 2007

Separação e distinção

A primeira reacção quando se lê uma obra de metafísica a sério, como o Les états multiples de l'être, do René Guénon, é de pura e total confusão mental. E é normal. Apesar da linguagem límpida e objectiva do autor, a verdade é que a mente ocidental moderna está totalmente destreinada no pensar metafísico. As estruturas mentais não estão preparadas: uma natural consequência, não só da uniformização do ensino e da sistematização das ciências, mas também do "nivelamento por baixo" do conhecimento em geral. Desde que nascemos que somos ensinados e formatados para pensarmos de forma sistemática e nada sintética. Nem é por mal: é porque aqueles que deveriam ter sido, ou deveriam ser, os nossos mestres também não têm esse treino mental e portanto não são capazes de nos ensinar a pensar desse modo. O mundo moderno prefere a análise à síntese, as caixinhas pequenas, seguras e controladas dos "sistemas" à arriscada intuição intelectual da Metafísica.

Hoje, já nem me recordo bem porquê, dei comigo a pensar nestes dois termos: separação e distinção. À partida pareciam-me sinónimos, mas comecei a tentar vê-los de um prisma metafísico primário, nada complexo, nada profundo, e a coisa ficou clara.

Porque é que uma coisa distinta de outra deve estar separada dela? Porque é que duas coisas distintas não podem coexistir? De repente, este simples dilema fez-me aplicar esta questão a diversas áreas.

Exoterismo e esoterismo
Muitos católicos não sabem, hoje em dia, que existe um lado esotérico ("esotérikos", grego para "interior") da doutrina cristã. Muitos experimentam-no sem sequer se aperceberem que se trata de algo esotérico. Os sacramentos católicos são exotéricos no ritual e esotéricos na influência sacramental (mistérica) que exercem sobre o seu receptor. Assustados (e com razão) pelo avançar galopante de um pseudo-esoterismo rasteiro, New Age, neopagão e superficial, é normal que a palavra "esoterismo" evoque a muitos católicos um Paulo Coelho ou um Dan Brown. Porventura, não sabem que um Padre da Igreja como Clemente de Alexandria usava o termo "esotérikos" em textos doutrinais perfeitamente ortodoxos.
Afinal, a dualidade esoterismo-exoterismo é uma dualidade normal e corresponde a um espelhar, se bem que assimétrico, do processo de conhecimento de uma doutrina. De um lado, temos a exterioridade da forma, na sua multiplicidade e inconstância. Do outro, temos a interioridade da essência, na sua unidade e constância. Uma doutrina sem esoterismo é uma casca sem miolo.
E o inverso?
Um esoterismo sem exoterismo?
Igual asneira. Num mundo em mudança incessante, é fundamental possuir alicerces sólidos que nem rocha. Por essa razão, o interessado em perseguir conhecimentos esotéricos não deve abdicar de uma prática exotérica rigorosa. É impossível penetrar na gnose cristã sem o exercício regular de uma prática religiosa ortodoxa. Não foi à toa que Jesus Cristo considerou São Pedro como a "pedra" sobre a qual seria edificada a Sua Igreja.
Um esoterismo sem exoterismo divaga facilmente, e cai rapidamente no erro, na heresia. Um exoterismo sem esoterismo é pobre, é superficial.

Teologia sacramental
Como é possível que, durante a Eucaristia, uma hóstia se torne no Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo? Afinal, desde pequenos que somos ensinados na "catequese cartesiana" a separar o espírito da matéria, e de repente, ficamos sem forma de compreender a presença divina na Eucaristia. Deveríamos ter sido, ao invés, ensinados a distinguir o espírito da matéria, sem termos que imaginar que tais ordens da realidade estejam, de facto, separadas ao ponto de existir um vazio entre ambas. Aliás, o vazio é algo que não existe. Toda e qualquer partícula da hóstia consagrada, que pressentimos nas papilas gustativas como hóstia, serve de receptáculo formal para uma essência divina que "desce" (na epiclese) do domínio informal ao domínio formal no momento da consagração. Isto sucede por simples vontade e decreto divinos, visto que Cristo ensinou aos seus discípulos como proceder "em sua memória" (anamnese, ou seja, evitar o esquecimento, "amnésis") para repetir este sacramento. E o efeito é sempre o mesmo e invariável, dependendo apenas do rito e não do celebrante ("ex opere operato", e não "ex opere operantis"). A forma "exterior" da hóstia suscita nas papilas gustativas uma reacção sensorial igual a qualquer outra hóstia, mesmo não consagrada. No entanto, a essência divina contida no "interior" dessa forma é comunicada, durante a comunhão, à alma do crente que comunga. Ou melhor, a alma individual do crente (essa sim contingente) comunga da fonte inesgotável que é a essência divina.
Esta noção de fonte tem uma enorme profundidade analógica e simbólica, pois da mesma fonte podem "beber" múltiplos seres sem que aquela deixe de ser a mesma inalterada fonte. A essência divina que "desce" a, ou que se manifesta em, toda e qualquer hóstia consagrada permanece una e imutável no domínio do Espírito, enquanto que a forma do seu "recipiente" é sempre múltipla e contingente. Há, então, uma distinção entre a matéria da hóstia consagrada e a essência divina que a preenche. Mas não há separação! O ente "hóstia" muda radicalmente de natureza após a consagração, porque ganha uma co-existência com o espírito divino que a transforma (literalmente, que a eleva para lá do formal).
Isto apenas é possível se duas realidades distintas não tiverem que estar verdadeiramente separadas, no sentido de possuirem existências separadas. Não obstante ser certo que há pouco rigor linguístico no uso da palavra "existência" para o Espírito, uma vez que este é o Ser sobre o qual todos os seres têm fixa a sua existência ("ex-stare", "ex-essere"), a conclusão não deixa de fazer sentido: a distinção não elimina a coexistência.

Vejamos mais aplicações...

Agnosticismo e Panteísmo
Para compreender o conceito de Criação é também importante ter bem claro o que se disse atrás acerca de distinção e de separação. Deus é seguramente distinto da criatura finita (o panteísta erra ao discordar disto). No entanto, a criatura finita tem a sua existência em Deus. Mais um exemplo de co-existência de todos os seres no Ser, sem que isso nos faça perder de vista a radical diferenciação entre o Uno Infinito (Deus) e os indefinidamente múltiplos finitos (criaturas). Temos de novo uma distinção sem separação. Não há "vazios" existenciais, uma vez que todos os seres estão contidos no Ser, sem no entanto serem confundidos com Ele.
Se o agnóstico erra ao conceber um abismo existencial entre a criatura e Deus, negando à primeira o acesso ao último, o panteísta erra ao conceber que a finita criatura consegue "acomodar" a infinitude divina. Impossibilidade metafísica!

Receio que poderia estar horas a encontrar mais exemplos que se apoiam nesta ideia: distinção sem separação. Co-existência de realidades ou entes distintos, mas não separados. Poderia pegar na angeologia e falar no Anjo da Guarda ("anjo", criatura imaterial de puro intelecto) que cada um tem atribuído a si por Deus, e a quem podemos rezar para obter intercessão divina. Mas por hoje, chega!

sexta-feira, 9 de março de 2007

Albino Aroso

Antes de principiar, convém ter bem presente alguns pontos essenciais. As críticas que se seguem são ao quadro intelectual defendido pelo Dr. Aroso, e não à sua pessoa. Infelizmente, poucos conseguem fazer a distinção entre a ideia errada e a pessoa que a defende. Pouco me interessam as críticas pessoais ou a depreciação de uma pessoa em concreto. O que tem interesse é o apontar dos erros intelectuais que certas pessoas defendem, sobretudo quando tais pessoas alcançaram um elevado estatuto de reconhecimento social. O perigo de situações destas é nítido: quanto mais elevado o estatuto e o reconhecimento social, maior a responsabilidade de tais pessoas, e mais gravosos e danosos se tornam os seus erros intelectuais.

O Dr. Albino Aroso ganhou o Prémio Nacional de Saúde. Só a sua idade e carreira em prol da saúde obrigam a um respeito à sua pessoa. Não obstante, ele defende uma série de ideias erradas acerca da vida intra-uterina e do aborto que merecem destaque. Evidentemente, este texto é uma minúscula crítica a uma entrevista em concreto, e não tem a pretensão de abarcar toda a acção intelectual do Dr. Aroso nesta matéria.

Trata-se de um artigo do Jornal de Notícias, datado de 13 de Janeiro último. Irei comentá-lo por trechos...

«Dr. Albino Aroso: Aborto é uma coisa morta, é aquilo uma mulher elimina espontaneamente, ou que é provocado, e que sai do útero, morrendo cá fora. Nós não estamos a discutir isso - estamos a discutir uma coisa extremamente simples, que é saber se a sociedade portuguesa deve continuar, ou não, a considerar a interrupção voluntária da gravidez em início (aquela em que a maior parte dos cientistas considera não haver ainda um ser humano) um crime.»

Duas falsidades:

a) A "maior parte" dos cientistas (belo rigor estatístico) não tem problemas em ver aquele ser como humano; o probema não é o de saber que se trata, biologicamente, de um ser humano: esse problema não existe, porque tal ser só pode ser humano; o problema está no estatuto ético desse ser, saber se tal ser humano tem o mesmo estatuto ético que tem um ser humano nascido ou numa fase mais avançada da gravidez; um pouco de rigor ajuda sempre;

b) O referendo não era, seguramente, para apenas despenalizar; esta era uma das várias consequências, sendo as restantes: legalizar o aborto (o aborto poderia ter sido reduzido de crime a contra-ordenação, mas foi passado a acto legal), e liberalizar o acesso ao aborto (mediante a prestação subsidiada de serviços abortivos aos utentes do SNS); mentir é feio.

«Entrevistador: O que está em causa no dia 11 de Fevereiro (data do referendo) não é também saber quando começa a vida humana?

Dr. Albino Aroso: No mundo civilizado, há dois tipos de mentalidades. Nos EUA encontramos os criacionistas, que acreditam que Deus criou tudo como está. Ou seja a vida humana começa na fecundação.»


Este é um perfeito e paradigmático exemplo da falácia ignoratio elenchi, ou seja, em português corrente, "fugir do assunto". A resposta nada tem a ver com o início da vida humana nem com a sua definição científica ou ética. A resposta dada reflecte uma série de coisas:

a) Visão simplista das teorias criacionistas como sendo uma só coisa: ignorância acerca destas várias teorias e das enormes diferenças entre elas;

b) Transformação do aborto numa questão de base religiosa: clara falácia, porque há argumentos contra o direito ao aborto que não invocam razões religiosas;

c) Preconceito anti-americano: há criacionistas em várias partes do globo;

d) Falta de coerência lógica: mesmo que os criacionistas fossem todos como descrito pelo Dr. Aroso, não se percebe esta conclusão partindo dessa premissa: "Ou seja a vida humana começa na fecundação"; a conclusão está certa, mas não tem nada a ver com a premissa.

«Entrevistador: Mesmo sem acreditar em Deus não é possível acreditar nisso?

Dr. Albino Aroso: Entre a fecundação e a chegada ao útero, 30 a 40% dos embriões iniciais desaparecem. São vidas humanas que se perdem, alguém comunica à sociedade que se perderam essas vidas humanas?»


Outro belo exemplo do uso da ignoratio elenchi. Por favor, alguém pode fornecer ao Dr. Aroso um manual rudimentar de Lógica?
A pergunta era bem clara: será que não se pode defender que a vida humana principia na fecundação sem invocar argumentos religiosos? A resposta deveria ser "sim" ou "não". Que responde o Dr. Aroso? Desvia o tema, não responde, e termina devolvendo uma pergunta de retórica. Deveria ser evidente que quem defende que a vida humana principia na fecundação também defende que os abortos espontâneos (naturais) são vidas humanas que se perdem.
Também seria útil dar ao Dr. Aroso um manual de Ética, bastaria um rudimentar. Pelos vistos não sabe, ou não quer, distinguir entre estas duas situações:

a) aborto espontâneo ou natural: problema exclusivamente médico ou biológico; não tem consequências éticas, nem tem qualquer peso ético porque é o resultado de um processo natural que não foi provocado por nenhum agente humano; está fora do alcance da Ética;

b) aborto provocado: resultado decorrente de uma acção humana propositada; tudo o que tem a ver com a conduta humana, com o ethos, pertence à esfera da Ética e deve ser avaliado e classificado nessa esfera.

«Entrevistador: É católico?

Dr. Albino Aroso: Sou. Porquê?»


Parte humorística da entrevista.
Para o Dr. Albino Aroso, a incoerência intelectual, pelos vistos, não é um problema para si. Pelos vistos, tolera bem a coexistência no seu intelecto de conceitos, convicções e noções totalmente incompatíveis entre si. Será que tal incoerência pode alguma vez dar bom resultado, em termos de afirmações intelectualmente válidas nestas matérias? É certo que só pode dar mau resultado...
É impossível a coexistência coerente, num mesmo intelecto, de uma doutrina católica completa e genuína, juntamente com a defesa do aborto provocado. Isto é matéria de facto, e não de opinião.

«Dr. Albino Aroso: A Sociedade Americana de Obstetrícia e Ginecologia distribui por todos os membros, há uns anos, uma frase que dizia assim "A vida é um processo contínuo". Isto ninguém pode discutir. Do ponto de vista científico, não é possível dizer quando se inicia a vida humana, somente do ponto de vista religioso, moral ou teológico. Aqui está um problema fundamental de que as pessoas têm que ter consciência. Quando se discutiu na Europa, sobretudo em França, este problema, os cientistas concluíram que não era vida humana o embrião. Ou seja: não seria crime interromper essa vida enquanto não estava formado o sistema nervoso central. Que valor tem a eliminação espontânea?»

O Dr. Albino Aroso insiste em confundir Biologia com Ética. Biologicamente, o zigoto já é um ser humano totipotente, dotado de todo o genoma que faz dele um espécime Homo Sapiens. Darwin, nada suspeito em matéria de religião, não teria dúvidas a este respeito... Outra questão mais melindrosa diz respeito ao estatuto ético do zigoto, do embrião, do feto. Mas, enfim, nem vale a pena prosseguir, porque a confusão do Dr. Aroso está num nível anterior, está em não ser capaz de distinguir o carácter biológico humano do embrião do carácter ético humano do mesmo.

«Entrevistador: No seu entender, tem o mesmo que a eliminação voluntária?

Dr. Albino Aroso: Nós seremos um país moralmente mais avançado que os países nórdicos, que já tiraram da sua legislação a incriminação das mulheres? Estamos numa fase em que ainda aceitamos que Deus é o responsável pelas gravidezes, ou isso é totalmente da responsabilidade das mulheres?»


De novo, ignoratio elenchi. Parece que o Dr. Aroso procura bater um recorde no uso deste tipo de falácia em poucas frases. O Dr. Aroso insiste em não responder à pergunta ética que lhe é feita, e que é bastante simples e objectiva. Eticamente, é ou não o mesmo um aborto provocado ou um não provocado? A resposta deveria ser clara: são coisas distintas. Onde não há acção humana (aborto espontâneo) não há problema ético.
O Dr. Aroso invoca a sempre presente protecção dos irmãozinhos mais velhos nórdicos, esses que estão sempre à frente em tudo, a julgar pela fé popular e pela opinião pública do "diz que disse". A frase final sobre a responsabilidade é uma perfeita asneira: nenhum crente inteligente diz que a gravidez é responsabilidade de Deus. Deus não obriga ninguém ao acto sexual, pelo que toda e qualquer gravidez é sempre responsabilidade dos progenitores. Por isso mesmo, a mulher que mata ou pede que lhe façam um aborto deve ser responsabilizada pelo erro ético desse acto, que termina com a vida de um ser humano com direito a ela.

«Entrevistador: Em que fase estamos?

Dr. Albino Aroso: Depende. Nós dizemos uma coisa, mas fazemos outra. As sociedades fazem hoje, rigorosamente, tudo aquilo que é da sua responsabilidade, não fazem caso nenhum da intervenção de Deus. Somos totalmente responsáveis por aquilo que fazemos.»


Esta resposta é incompreensível. O conceito de responsabilidade também está presente quando a Justiça tem que lidar com um assaltante ou com um homicida. Ambos têm responsabilidades sociais e humanas. Ninguém as nega. Não se entende como é que este discurso em prol da responsabilização (que é louvável enquanto tal) pode alguma vez legitimar dar a morte a um feto, um embrião ou um zigoto humano. Pelo contrário, a interdição da destruição de uma gravidez deveria ser uma clara marca de que o acto sexual deve ser responsabilizado. Se os meios para evitar tal gravidez falham, como se costuma dizer, "azar"! Há que ser responsável e aceitar a gravidez como um facto. O aborto nunca será um método contraceptivo ou de regulação da gravidez, porque a gravidez já é um facto. E "interrompê-la" é só uma forma maciazinha de dizer "exterminá-la".

«Entrevistador: Somos o quarto país do Mundo com a mais baixa taxa de mortalidade infantil.

Dr. Albino Aroso: Tudo isso tem os seus antecedentes. Estamos a falar no planeamento familiar

Entrevistador: Planeamento familiar que a associação que o senhor criou lançou em 1969…

Dr. Albino Aroso: A primeira consulta pública e gratuita foi dada no Hospital e S. António, no Porto, em 1969. Nessa altura não era ainda possível anunciar contraceptivos, nem receitar com essa finalidade»


O Dr. Aroso parece insinuar que a censura moral aos contraceptivos tem a mesma razão de ser da censura moral ao aborto provocado.
Isto é um estratagema clássico: considerar a moralidade da contracepção como sendo equivalente à moralidade do aborto. É certo que a moral religiosa considera imoral o recurso à contracepção artificial, e não vale a pena negá-lo porque as coisas são assim e devem ser assim. Mas também é certo que o erro moral de abortar é dramaticamente mais grave que o erro moral de usar um método contraceptivo:

a) Quando uma pessoa usa um método contraceptivo, aos olhos da moral católica (por exemplo), está a cometer um acto imoral porque distorce a finalidade última da relação sexual; mas seguramente, não mata ninguém nem acomete contra a vida de ninguém: quando muito, enfraquece a sua fortaleza moral;

b) Quando uma pessoa aborta ou ajuda a abortar, aos olhos de uma moral universal (portanto, neutra em termos religiosos), está a cometer um acto imoral porque mata um ser humano com direito a viver.

«Entrevistador: Como é que se fazia?

Dr. Albino Aroso: Era possível receitar os mesmos produtos para regularizar os ciclos. Todas as mulheres tinham ciclos irregulares. O que nós queríamos é que as mulheres tivessem os filhos que elas quisessem ter, e quando pudessem. Nós dizíamos que a mulher tinha o direito - e não o dever - de ter os filhos. A sociedade evoluiu rapidamente e a mulher ascendeu rapidamente, por via dessa política social, a todos os lugares públicos. A gravidez torna-se um problema extremamente complicado para a mulher que trabalha, que estuda e que sai de casa às oito da manhã.»


Bom, esta é a clássica retórica feminista, e não vale a pena repisar mais sobre ela. A mulher realiza-se, certamente, de muitas formas para lá da maternidade. Mas se lhe dão o falso direito a matar, isso é o mesmo que uma mulher tentar negar (porque não consegue fugir dela) a sua maternidade enquanto mulher grávida. Isso é contrasenso. A mulher grávida já é mãe. O aborto é um atentado contra a essência da mulher enquanto mãe. Se a mulher, hoje em dia, tem menor disponibilidade para a maternidade, isso não pode ser visto como uma coisa boa: é uma coisa má, que traz consequências nefastas para todos. Está na altura de atirar para o lixo a retórica feminista extremista, e procurar regressar ao simples bom senso. Sem mães, não há crianças, e sem crianças, não há Humanidade. Por isso é que dá algum jeitinho, enfim, é cómodo, que o conceito de mulher não esteja assim tão radicalmente separado do conceito de mãe.

«Entrevistador: Concorda com o referendo?

Dr. Albino Aroso: É-me indiferente. A questão é se isto é problema essencialmente feminino, porque não ouvir só as mulheres? Só que a maior parte das mulheres é contra as mulheres. E os homens que são normalmente responsáveis, colocam-se de fora e ainda são capazes de culpar as mulheres. Convém não esquecer que somos o país educacionalmente mais atrasado da Europa civilizada. Não admira que só agora estejamos a repetir o referendo que se fez em 1998 em que o "Sim" perdeu. Em relação a esta despenalização, defendo a existência, à semelhança do que faz a Alemanha, de um interrogatório à pessoa que quer interromper a gravidez, no sentido de saber por que é que ela engravidou: é culpa do Estado, é culpa da sociedade, não há o fornecimento atempado de contraceptivos, a culpa é do médico, o que é que falhou?»


Tudo isto é uma embrulhada de asneiras:

a) O problema do aborto não é "essencialmente feminino", enquanto não se provar que o estatuto ético da vida humana intra-uterina é rigorosamente zero; onde está a prova, a demonstração científica e filosófica, Dr. Aroso?

b) «A maior parte das mulheres é contra as mulheres»: nem vale a pena comentar este disparate, puro flatus voci, uma frase de guerrilha, precipitada, sem conteúdo intelectual, puramente gratuita, absurda e indemonstrável;

c) "Os homens colocam-se de fora": veremos agora, com o aborto legal, se os homens não o irão usar para impor violência pró-aborto às suas mulheres, filhas, namoradas, etc.;

d) "Somos o país educacionalmente mais atrasado": a mesma óptica miserabilista, que considera que tudo, rigorosamente tudo, o que é estrangeiro é bom; seja a técnica, sejam os serviços sociais, seja a ética, tudo o que é estrangeiro é bom e tudo o que é nacional é mau; nova frase gratuita, e que nada traz ao debate ético do aborto;

e) "Não admira que só agora estejamos a repetir o referendo...": de novo, o mito não demonstrado, e omnipresente, do Progresso, ou seja, a ideia insensata de que as mudanças (boas ou más, é indiferente) devem ser feitas quanto antes, para que permitam acelerar essa grande coisa que é o Progresso; curiosamente, alguns países pioneiros em matéria de aborto livre (o caso mais flagrante é o dos EUA) estão a rever as suas decisões de há trinta anos nesta matéria; mas o progresso dos EUA nesta matéria, ou seja, o recente repensar de restrições ao aborto legal (que está a ser proposto mesmo pelos Democratas norte-americanos) agora, já não interessa, certo, Dr. Aroso?

A sua defesa final do "interrogatório" à mulher é verdadeiramente notável, e é o corolário de uma entrevista intelectualmente deprimente. É esta uma das versões do "aconselhamento prévio" de que tantos defensores do "sim" falaram? Repare-se a ironia da coisa: o real erro ético (abortar, matar) não é problemático para estes senhores, porque no final do "interrogatório", o senhor doutor lá vem com os forceps ou com as pastilhas de RU-485. O aborto não está em causa, repare-se! É como interrogar uma criança para lhe perguntar quem fez a asneira, prometendo um rebuçado no fim.
Curiosamente, a "asneira" parece ser "engravidar", que é uma função biológica natural e normal.
E mais curiosamente ainda, o "rebuçado" parece ser "abortar", que é uma aberração ética, que viola a mais básica e rudimentar deontologia médica, que priva um ser humano da sua vida futura, e que mata psicologicamente a mulher que se submete a tal intervenção grotesca e bárbara.

quinta-feira, 8 de março de 2007

Os surreais reais no país do aborto livre

Hoje, Dia da Mulher, a coisa propiciava uma série de disparates avulsos a propósito de aborto livre.

A professora Manuela Tavares, conhecida e antiga defensora daquela categoria lata de "direitos" das mulheres, falou hoje na rádio para afirmar que este Dia da Mulher, de 2007, era importante por coincidir com a aprovação parlamentar da nova lei do aborto.

Esta senhora, cujo esforço incansável pelos seus ideais (quase todos errados, por sinal) merece sempre respeito, defende, contudo, ideias erradas que não merecem respeito algum. Elogiando este novo "direito" a matar por parte das mulheres grávidas portuguesas, ela aproveitava para o colocar na linha de uma série de direitos conquistados a pulso. Já não me recordo das palavras exactas, mas no final da peça radiofónica afirmava que, hoje, ainda há pessoas que não aceitam que uma mulher possa ser competente para ocupar um alto cargo de chefia...

Eu ouvia isto, boquiaberto, consciente de que existiriam, infelizmente, poucos portugueses chocados como eu. O que é que tem a ver uma coisa com a outra? O direito a ocupar um cargo de chefia com o direito a matar um feto? Não contesto que uma mulher, demonstrando competência (como um homem), pode ocupar um lugar de chefia. Como contestar? Se um lugar de chefia, normalmente, deve pertencer a quem é competente, que interessa se tal competência vem no feminino ou no masculino?

Porque raio é que o aborto é ainda visto por tanta gente como um direito da mulher? Será apenas analfabetismo em matéria de Ética? Sim, esse analfabetismo existe, e é fácil de detectar. Muitos filósofos pró-escolha de referência aceitam que há, no aborto, um conflito de direitos: o direito da mulher ao seu corpo colide com o direito à vida do feto. Na generalidade, os filósofos pró-escolha, perante esse conflito, optam pela mulher, legitimando eticamente o aborto. Mas há filósofos que, perante esse conflito, não permitem à mulher matar.

Seja qual for a nossa posição no terreno da Ética, a verdade é que não se pode encarar o aborto como um puro direito da mulher, sob pena de reduzir o valor do direito à vida do feto a um redondo zero.

Porque é que a professora Manuela Tavares, com anos de experiência nestas lides, não parece ter pensado nisto nestes termos? Um recente artigo seu, tristemente intitulado Vencer o défice democrático para além dos "valores", pode apontar para uma explicação...

«Os partidos devem pronunciar-se sobre o défice democrático que representa o julgamento de mulheres por interromperem uma gravidez que não desejam. Ao tomarem esta decisão as mulheres estão a exercer um direito de cidadania que não pode ser negado- o da escolha de uma maternidade livre e consciente.»

Está comprovado. Não só a professora Manuela Tavares ignora completamente a existência ética do embrião/feto, como podemos ainda detectar um problema lógico nesta frase.

«escolha de uma maternidade»

Só que a maternidade apenas se escolhe antes de se ser mãe. Uma mulher que já é mãe não pode "escolher" não ser, sob pena de matar, o que é um erro ético. A escolha é feita ao nível da prevenção da gravidez, do tentar evitá-la. Se ela já ocorreu, então a maternidade, nessa mulher, já é um facto, e contra factos não há argumentos.

Depois, poderíamos ainda questionar o próprio título do seu artigo. Será que a democracia deve ir "para além dos valores"? Mas a democracia não pretende estar fundada sobre valores? Que raio de confusão de conceitos é esta?

De onde vem esta corrupção da intelectualidade, que faz com que pessoas adultas aparentemente racionais não sejam capazes de tecer considerações racionais?

Infelizmente, o dia de hoje está cheio de disparates para comentar. Nessa mesma emissão radiofónica, tive o desprazer de escutar também a voz do Dr. Albino Aroso, que questionado acerca do problema logístico das unidades hospitalares serem capazes de fazer face aos pedidos de aborto legal, ele afirmava categoricamente, menosprezando esse real problema, que o aborto era "um fenómeno raro" nos dias de hoje. Esta frase inexplicável, dita sem pensar aos microfones da rádio, faz sentido no seu contexto de tentar capitalizar uma vida inteira dedicada à contracepção artificial, ao ponto de ser considerado por muitos (e pela jornalista) como o "pai" português do planeamento familiar (será isto um elogio? deve ser!). Curiosa frase sua, quando em plena campanha, as forças políticas pelo "sim" afirmavam, em plenos pulmões, querer acabar com o "flagelo", o "drama", a "calamidade" do aborto clandestino. Será que um "fenómeno raro" pode ser apelidado de "flagelo", "drama" ou "calamidade"? Mas do Dr. Aroso, tratarei mais tarde...

terça-feira, 6 de março de 2007

Aborto obrigatório para os médicos?

A cada dia que passa, as forças "pró-escolha" concentram-se na nova frente da guerra pelo aborto. Agora que o aborto está practicamente legalizado em todo o mundo ocidental, o esforço centra-se na eliminação da objecção de consciência por parte do pessoal médico.

Um recente editorial do New York Times, de 13 de Fevereiro, tragicamente intitulado Doctors Who Fail Their Patients, é um bom exemplo de como grande parte dos media estão milimetricamente sincronizados com os movimentos pró-aborto e com as grandes organizações de saúde como a OMS ou a WMA.

«It was bad enough when pharmacists who call themselves pro-life refused to fill prescriptions for morning-after pills and an emergency medical technician refused to help drive a woman to an abortion clinic.»

Não se percebe a frase. Um farmacêutico que se recusa a vender medicamentos com potencial efeito abortivo está, coerentemente, a defender a vida humana. Os técnicos de saúde que se recusam a colaborar num aborto, mesmo que seja sob a forma de transporte de uma mulher para o local onde ela vai abortar, estão a ser coerentes.

«Now a new survey has revealed that a disturbing number of doctors, at the presumed pinnacle of the health professions, feel no responsibility to inform patients of treatments that the doctors deem immoral or to refer them to other physicians for care.» (negrito meu)

Note-se como os editores usam a palavra "treatment" ("tratamento") para se referirem a medidas como o aborto. Mas veja-se que esta mesma má argumentação também poderia (e muitos o fazem) ser usada em abono da eutanásia. É evidente que nenhum médico tem o direito de se recusar a tratar um doente: faz parte do seu código de conduta e da sua obrigação profissional. Outra coisa completamente diferente diz respeito a estes novos "tratamentos" feitos para pessoas que não estão doentes, como o aborto, ou para pessoas cujo suposto "tratamento" vai, na prática, matá-los. É certo e claro que um médico pode ser objector de consciência em relação aos dois "tratamentos", visto que nenhum deles faz parte da sua obrigação deontológica profissional.

«Although the close-mouthed doctors claim a right to follow their consciences, they are grievously failing their patients and seem to have forgotten the age-old admonition to “do no harm.”»

"Do no harm"...
Custa a perceber, à primeira vista, se o editorial é satírico ou se eles estão mesmo a falar a sério. Será que um médico está mesmo a "falhar gravemente" aos seus doentes, ao se recusar a aplicar pseudo-"tratamentos" que não visam nenhuma doença em concreto, que visam apenas uma solução facilista que vai contra a ética do médico profissional?
Se a expressão "do no harm" parecia estranha perante um aborto, visto que o médico que aborta faz objectivamente mal à mãe e ao filho, então no caso da eutanásia, a expressão torna-se definitivamente patética.

É melhor esmiuçar um pouco esta questão da ética médica. É evidente que nenhum médico pode defender dois sistemas éticos contraditórios, ou defender uma ética viciada com contradições internas. Se um médico fez o Juramento, está comprometido com a obrigação de defender a vida e de dar assistência ao tratamento de doentes, pelo que não poderá invocar a objecção de consciência para, por exemplo, negar o tratamento a um criminoso.
Por outro lado, visto que nem o aborto nem a eutanásia fazem parte das obrigações dos médicos, não há mal algum em que tais médicos possam ser objectores de consciência. No caso do aborto, não há nenhum doente em questão, há apenas um utente do sistema de saúde que não está doente e que se quer ver livre de uma criança. No caso da eutanásia, a sua prática corresponde precisamente ao oposto da função do médico: matar em vez de salvar ou tratar um doente.

Há que explicar, e ninguém parece interessado em fazê-lo do ponto de vista ético, porque razão é que matar (no caso do aborto ou da eutanásia) deveria fazer parte da carteira de serviços obrigatórios para um médico.

«The survey, by researchers at the University of Chicago, was published last week in The New England Journal of Medicine. The researchers mailed questionnaires to some 2,000 doctors asking whether they had religious or moral objections to three controversial practices. Of the 1,144 who responded, only 17 percent objected to “terminal sedation” to render dying patients unconscious, but 42 percent objected to prescribing birth control for adolescents without parental approval, and 52 percent opposed abortion for failed contraception.
The encouraging news is that substantial majorities thought that doctors who objected to a practice nevertheless had an obligation to present all options and refer patients to someone who did not object. But that left 8 percent who felt no obligation to present all options and an alarming 18 percent who felt no obligation to refer patients to other doctors. Tens of millions of Americans probably have such doctors and are unaware of their attitudes.»
(negrito meu)

Este imbecil e autista editorial insiste em escrever frases absurdas como se fossem verdades incontestáveis. Porque razão seria um médico obrigado a apresentar "opções" de pseudo-tratamentos a pessoas que não estão doentes (no caso do aborto)? Porque razão deveria sugerir a morte a um doente (no caso da eutanásia)? Porque razão deveria, nestes casos, estar obrigado a encaminhar esta pessoa para um médico de "ética flexível"?
Sinceramente, considero que os médicos objectores que, recusando-se a cometer os actos que reprovam, insistem em apresentar opções deste tipo, estão a ser incoerentes. Se consideram que tais opções são más, é porque as vêem como más em absoluto, ou seja, não só não resolvem mal algum como também não trazem benefícios (e podem mesmo trazer malefícios, como no caso do aborto e da eutanásia).
Ou seja, o médico objector que se recusa a dar informação desse tipo é um médico profissional e intelectualmente coerente.

«The researchers put the burden on patients to question their doctors upfront to learn where they stand before a crisis develops. But that lets doctors off the hook.»

"Off the hook"?
Esta expressão dá a ideia de que o médico se quer "safar" das suas responsabilidades, quando estas são inexistentes e não fazem parte do seu código deontológico nem das suas obrigações profissionais.

«Physicians have a right to shun practices they judge immoral (...)»

Pelo resto do texto do editorial, é quase anedótico que tenham escrito esta frase...

«(...) but they have no right to withhold important information from their patients. Any doctors who cannot talk to patients about legally permitted care because it conflicts with their values should give up the practice of medicine (negrito meu)

Veja-se bem como este editorial termina. "Legally permitted care", é o termo usado para o aborto, mas também poderia ser usada, do mesmo modo, para a eutanásia. Acho que a palavra "care" está terrivelmente mal empregue, e sobretudo no contexto do aborto ou da eutanásia (morte provocada de um ser humano) a palavra ganha contornos sinistros e macabros. "Care"?

Mas veja-se a admoestação: "should give up the practice of medicine"!
É para isto que caminhamos, dia após dia.
É mesmo só uma questão de tempo. A classe médica está, neste momento, a ser posta à prova no teste ético mais importante da História da Medicina.
Esperemos que os nossos médicos não se comportem como muitos "médicos" dos negros tempos do Terceiro Reich... Mais vale perder o emprego que a dignidade e a honra profissional e humana.

segunda-feira, 5 de março de 2007

Complexos da esquerda radical

É certo que já ninguém lhes liga nenhuma. Que os "amanhãs cantantes" do Avante estão a desaparecer, finalmente, da nossa sociedade, ainda marcada por um forte complexo de esquerda.
Mas, de tempos a tempos, e porque eles ainda não morreram todos, lá temos que aturar com a chinfrineira dos "anti-fascistas".
O que se viu neste fim-de-semana em Santa Comba Dão foi de uma tristeza e de uma miséria profundas, daquelas que há vários anos não se viam em Portugal. Só faltou uma bombazita no cemitério, na campa do Salazar, para nos recordar os belos anos do terrorismo "anti-fascista" das FP-25.

Eles nunca perceberam a diferença entre nazismo e fascismo. Por isso é que alguns confundem nazismo ou neonazismo com apoio a Salazar. Nem nunca perceberam as enormes diferenças entre o regime fascista de Mussolini (o único ao qual se pode aplicar correctamente o termo "fascista") e o regime ditatorial de Salazar.
É que a palavra "facho" evoca um simbolismo que se apresentava como saudosista do Império Romano, recuperando alguma iconografia dos tempos imperiais, o que só seria útil para um governo centrado em Roma.

Só que a palavra "fascista" é sonora: arranha na garganta.
Ouve-se aquela gente a gritar "FAXISTA", assim mesmo com um "X" bem vincado na garganta, e até se sentem os perdigotos na cara. É uma palavra áspera, fica bem. É bruta. Só que, historicamente, não tem nada a ver com Salazar nem com o Estado Novo.

O mais triste disto tudo é constatarmos que os extremos se atraem sempre. Enquanto os fanáticos gritavam impropérios contra Salazar, a normalmente boa e pacífica população de Santa Comba Dão entusiasmava-se demais, e o sentimento dava origem a gritos disparatados de sentido oposto, exageradamente laudatórios à figura do ditador.

O fanatismo gera sempre fanatismo, e atrai novo fanatismo.
E o ódio cego e irracional "anti-fascista" atrai sempre o seu congénere de sinal oposto. Até me espantei por não ver em Santa Comba Dão os desmiolados "nacionalistas" rapados do costume...

sexta-feira, 2 de março de 2007

Sobre a consciência

(este texto foi actualizado e aumentado)

Enquanto me debruçava sobre a problemática ética do aborto, uma das coisas que mais me chocou foi a de descobrir as acções dos vários movimentos pró-aborto, dos quais se destacam as várias Associações para o Planeamento Familiar em vários países, a favor da limitação da liberdade de ser objector de consciência.

Recordo-me de pensar que aquilo era (e é) algo de incrível. Propor limitar o número de objectores de consciência, criando um esquema de quotas mínimas de objectores. Parecia algo como uma requisição pública obrigatória em caso de greve. Ou seja, por outras palavras, parecia que queriam transformar os médicos objectores de consciência numa espécie de "médicos grevistas" que, em caso de greve geral, deveriam ser chamados, à força, às suas funções. Este chamamento à força para a prática do aborto torna-se ainda mais sinistro pelo facto de que matar não é uma função médica, não se encaixa na ética de um médico profissional. O médico é treinado e formado para fazer precisamente o oposto: salvar vidas.

Isto parecia demasiado mau para ser verdade, mas basta dar uma vista de olhos pelas ideias defendidas pelos nossos mais esforçados abortófilos. Muitos deles acham perfeitamente normal impor restrições à classe médica neste sentido. De facto, se os médicos portugueses fizessem greve a matar, isso colocaria um grave problema à promessa política de entregar aborto livre a quem o pedir.

Ou seja, do que estamos aqui a falar é disto: se um médico tem a consciência de que abortar é matar um ser humano, e este médico reconhece o mal ético dessa acção (ou seja, sabe pensar e discernir em termos éticos e morais), ele pode vir a ser coagido a fazê-lo contra a sua vontade e em violação da sua liberdade e dos seus direitos fundamentais. Ainda não é o que sucede, mas os vários movimentos pró-aborto têm-se esforçado, em vários países, para tentar colocar um travão à objecção de consciência. Isso está a ser feito para o aborto, mas será certamente também tentado com a eutanásia, e com toda a restante claque de aberrações éticas, como a manipulação de embriões, o infanticídio (Peter Singer e Michael Tooley, um dia, vencerão), entre outras. Só a manipulação genética do ser humano abre já hoje caminhos fascinantes, numa óptica ao estilo dos romances de Mary Shelley, para as futuras e modernas violações à Ética e à deontologia médica.

Apesar de isto me parecer uma aberração, porque concebo que a consciência de cada um é terreno intocável, tenho notado que para muitas pessoas, a requisição obrigatória de médicos para a prática do aborto é algo que vêem com naturalidade, como sendo fundamental para garantir um "bom serviço abortivo". Do "direito a matar", vitória de 11 de Fevereiro último, passamos agora para a "coação a matar".

Porventura, o problema reside numa ideia intelectualmente distorcida do que é a consciência individual. Deveria ser evidente que a consciência está ligada à razão, e não apenas a uma subjectividade emotiva, a uma sensação, a uma predisposição sentimental. Um médico que recusa praticar um aborto por objecção de consciência tem, normalmente, a noção racional do mal ético que é matar um ser humano na sua fase inicial de desenvolvimento. A ponderação da racionalidade versus emotividade poderá variar de médico para médico, mas é certo que há uma base racional para ver o aborto como um mal ético, pelo que isso é possível e torna racional a objecção de consciência.

Vemos então que, no contexto da actual crise intelectual, na qual já não há verdades absolutas nem bens éticos absolutos (isso acabou tudo), a consciência deixa de ser algo de racional, deixa de ser visto como uma tentativa de aderir intelectualmente a uma verdade universal. Passa a ser algo de meramente opinativo. Paradoxalmente, a elevação da subjectividade individual ao estatuto de "verdade individual" permite-o. Visto que cada um pode ter "a sua verdade", isso transforma a consciência pessoal numa ferramenta questionável e contestável. É que se a consciência recta fosse a daquela pessoa que aderiu com a sua razão a uma verdade absoluta ou à protecção de um bem ético absoluto, então violá-la seria um absurdo, uma agressão, um erro ético e lógico imediatamente perceptível.

Como, para muitos, já nada há de absoluto ou de intocável, porque todas as opiniões se "democratizaram", porque a opinião do sábio vale tanto como a do burro, então as consciências dos médicos objectores podem ser vistas como "caprichos" que são toleráveis enquanto existirem médicos de "ética flexível" para matar. Se o número de médicos de ética impecável começar a se manifestar contra o aborto, então esses "caprichos" terão que ser restringidos, e as organizações abortófilas entrarão em marcha.

É a própria subjectividade relativista, campeã da pseudo-intelectualidade moderna, que mina o fundamento racional da consciência individual, e a torna presa fácil das violências quotidianas, promissoras de falsos progressos.

Um dia, os médicos vão ser obrigados a matar, sob pena de perderem a sua carteira profissional. Isso é evidente, porque é o caminho natural da derrapagem...