"A ignorância é muito atrevida"
Vem isto a propósito de um artigo saído no Expresso, no passado dia 10 de Março, intitulado "CUF proíbe pílula do dia seguinte":
«Em nome do “respeito absoluto pela vida humana”, o Código de Ética dos hospitais da CUF, do grupo José de Mello, impõe a todo o pessoal hospitalar regras de prática clínica que vão muito para lá da proibição da prática de aborto.
De acordo com o documento a que o Expresso teve acesso, “a vida humana, desde a sua origem no zigoto até à morte natural, é inviolável”. Por isso, além da prática de aborto, é vedado a todos os profissionais de saúde do grupo CUF “a prática de procriação medicamente assistida, a esterilização definitiva da mulher (laqueação de trompas), a esterilização definitiva do homem (vasectomia) e a prática de anticoncepção abortiva (pílula do dia seguinte)”. A justificação para estas normas vem logo a seguir onde se diz que “a maternidade e a paternidade são o suporte natural e necessário à fertilidade”.»
Até aqui, tudo bem. Aliás, tudo óptimo. Não só era um direito da CUF, sendo uma organização privada, não alinhar nas novas "modas", como a CUF deu um excelente exemplo de integridade, ética médica e coerência de princípios, visto que o objectivo da prestação de serviços de saúde médica a seres humanos não deve incluir atropelos éticos a estes, sob pena de se ferir o exacto bem que se quer servir.
«Contactado pelo Expresso, o ministro da Saúde recusou pronunciar-se sobre este Código de Ética alegando que “até à entrada em vigor da Lei da Interrupção Voluntária da Gravidez aprovada esta semana no Parlamento, o ministro não faz declarações sobre essas matérias”.»
Aqui, vemos o Ministro da Saúde a guardar-se para mais tarde, ele que terá certamente qualquer coisa na manga para os privados e para os objectores de consciência em geral. A coisa não vai ficar apenas pela privação do aconselhamento prévio para objectores. Isso é só um prelúdio do Senhor Ministro...
«Já o bastonário da Ordem dos Médicos lembrou que, ao contrário das normas éticas impostas pelos hospitais da CUF, “o Código Deontológico não levanta restrições à utilização da pílula do dia seguinte”. Pedro Nunes considerou ainda que “esse código numa unidade pública de saúde seria inaceitável, mas no sector privado prevalece o princípio de que ninguém é obrigado a ser tratado nessa instituição”. O bastonário acrescentou ainda que no sector privado as regras podem ser estabelecidas autonomamente mas “o que os médicos devem fazer é encaminhar as pessoas para um hospital com outras regras ou para o sector público”.»
O senhor bastonário, com todo o respeito, toma uma posição precipitada e injustificada. O Código Deontológico é incompatível com o aborto (terá que ser mudado em breve, devido à nova lei), e se é certo que a pílula do dia seguinte pode ter efeitos abortivos (se impedir a nidação do ovo fertilizado), é evidente que o uso deste tipo de fármaco constitui uma zona eticamente "nebulosa", uma vez que a mulher que o toma não sabe se, na prática, está a cometer um aborto ou não na altura da toma. Saberá certamente a posteriori, visto que os efeitos do Levonorgestrel são bem diferentes nos casos em que actua de forma abortiva e nos casos em que actua de forma anovulatória. Só que aí, havendo asneira ética, o mal já estará feito!
Mas vejamos agora o que diz o senhor Luís Graça:
«Mais contundente, Luís Graça, o presidente do Colégio de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos, considerou “um absurdo que uma estrutura administrativa adopte medidas que fazem parte das práticas de ginecologia e obstetrícia. É um abuso da interpretação relativamente ao exercício da medicina”.
Sobre o facto de o Código de Ética dos hospitais da CUF proibir os médicos de prescreverem a pílula do dia seguinte, Luís Graça não poupa nas críticas: “A pílula do dia seguinte é perfeitamente legal e não tem nada a ver com o que ‘esses pequenos cérebros’ acham que provoca aborto. A pílula do dia seguinte não é um método abortivo: ela impede a nidação de um ovo”.» (negrito meu)
Dificilmente é possível dizer-se mais asneiras em poucas frases. Luís Graça parece estar em competição com o Dr. Albino Aroso, de quem falei num texto há uns dias atrás. O senhor Luís Graça diz que a CUF está a cometer "um abuso de interpretação"? É curioso: sempre achei que o acomodar do aborto no Juramento de Hipócrates é que seria um abuso de interpretação. O mundo está, de facto, a ficar virado de pernas para o ar. Pelos vistos, no novo quadro mental que emergiu de 11 de Fevereiro último, agora, a recusa da prática do aborto é um "abuso de interpretação relativamente ao exercício de medicina".
A recusa da CUF é simples e lógica: evitar a prática de um acto (a toma de Levonorgestrel) que pode ter efeitos abortivos, quando impede a nidação de um ovo fertilizado, ou seja, de uma gravidez em curso. Ou seja, quando impede a nidação, a "pílula do dia seguinte" provoca um aborto. Isto é tudo muito bonito quando as palavras saem da boca para fora para os jornalistas apontarem: mas todas as mulheres que já tomaram Levonorgestrel depois da fertilização sabem bem o efeito que este fármaco produz. Elas sabem bem quando é que ocorreu um aborto ou quando é que a ovulação foi simplesmente anulada.
Depois, Luis Graça comete a crassa confusão mental entre "legalidade" e "eticidade". Um acto legal não tem que ser sempre um acto ético. E um acto ético não tem que ser sempre um acto legal. Por isso, invocar a legalidade do uso do Levonorgestrel não influi uma vírgula na eticidade do seu uso. De nada serve. Mas o mais divertido, nas palavras de Luís Graça, é o uso da expressão "pequenos cérebros". Evidentemente, a dimensão craniana não influi necessariamente na inteligência, e a inteligência de cada um mede-se pela capacidade de gerar raciocínios lógicos, coerentes e acertados, e não pelo volume da massa cinzenta. Nesta medida, dir-se-ia que é precisamente Luis Graça que não está nada em boa situação de comparação, devido a estas suas palavras incoerentes e erradas, que denotam um raciocínio pouco apurado e pouco acostumado a pensar em termos Éticos.
Veja-se esta pérola de contradição:
«A pílula do dia seguinte não é um método abortivo: ela impede a nidação de um ovo»
Hmmm...
Impede a nidação de um ovo... Ovo esse que, não podendo nidar, morre. Morte essa que costuma ser chamada de... aborto!
Na sua incauta arrogância, Luís Graça lá acaba por ter a sua graça e ser um bom exemplo do acerto do adágio popular com o qual comecei este texto.
Terminemos, para desenjoar de tanta asneira, com as palavras sensatas de Daniel Serrão:
«Daniel Serrão, consultor de Ética dos hospitais CUF, garantiu ao Expresso que o Código assenta “nos valores da ética personalista”. O médico contesta ainda que a pílula do dia seguinte não seja abortiva, uma vez que “impede o desenvolvimento do embrião”.»
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