(este texto foi actualizado e aumentado)
Enquanto me debruçava sobre a problemática ética do aborto, uma das coisas que mais me chocou foi a de descobrir as acções dos vários movimentos pró-aborto, dos quais se destacam as várias Associações para o Planeamento Familiar em vários países, a favor da limitação da liberdade de ser objector de consciência.
Recordo-me de pensar que aquilo era (e é) algo de incrível. Propor limitar o número de objectores de consciência, criando um esquema de quotas mínimas de objectores. Parecia algo como uma requisição pública obrigatória em caso de greve. Ou seja, por outras palavras, parecia que queriam transformar os médicos objectores de consciência numa espécie de "médicos grevistas" que, em caso de greve geral, deveriam ser chamados, à força, às suas funções. Este chamamento à força para a prática do aborto torna-se ainda mais sinistro pelo facto de que matar não é uma função médica, não se encaixa na ética de um médico profissional. O médico é treinado e formado para fazer precisamente o oposto: salvar vidas.
Isto parecia demasiado mau para ser verdade, mas basta dar uma vista de olhos pelas ideias defendidas pelos nossos mais esforçados abortófilos. Muitos deles acham perfeitamente normal impor restrições à classe médica neste sentido. De facto, se os médicos portugueses fizessem greve a matar, isso colocaria um grave problema à promessa política de entregar aborto livre a quem o pedir.
Ou seja, do que estamos aqui a falar é disto: se um médico tem a consciência de que abortar é matar um ser humano, e este médico reconhece o mal ético dessa acção (ou seja, sabe pensar e discernir em termos éticos e morais), ele pode vir a ser coagido a fazê-lo contra a sua vontade e em violação da sua liberdade e dos seus direitos fundamentais. Ainda não é o que sucede, mas os vários movimentos pró-aborto têm-se esforçado, em vários países, para tentar colocar um travão à objecção de consciência. Isso está a ser feito para o aborto, mas será certamente também tentado com a eutanásia, e com toda a restante claque de aberrações éticas, como a manipulação de embriões, o infanticídio (Peter Singer e Michael Tooley, um dia, vencerão), entre outras. Só a manipulação genética do ser humano abre já hoje caminhos fascinantes, numa óptica ao estilo dos romances de Mary Shelley, para as futuras e modernas violações à Ética e à deontologia médica.
Apesar de isto me parecer uma aberração, porque concebo que a consciência de cada um é terreno intocável, tenho notado que para muitas pessoas, a requisição obrigatória de médicos para a prática do aborto é algo que vêem com naturalidade, como sendo fundamental para garantir um "bom serviço abortivo". Do "direito a matar", vitória de 11 de Fevereiro último, passamos agora para a "coação a matar".
Porventura, o problema reside numa ideia intelectualmente distorcida do que é a consciência individual. Deveria ser evidente que a consciência está ligada à razão, e não apenas a uma subjectividade emotiva, a uma sensação, a uma predisposição sentimental. Um médico que recusa praticar um aborto por objecção de consciência tem, normalmente, a noção racional do mal ético que é matar um ser humano na sua fase inicial de desenvolvimento. A ponderação da racionalidade versus emotividade poderá variar de médico para médico, mas é certo que há uma base racional para ver o aborto como um mal ético, pelo que isso é possível e torna racional a objecção de consciência.
Vemos então que, no contexto da actual crise intelectual, na qual já não há verdades absolutas nem bens éticos absolutos (isso acabou tudo), a consciência deixa de ser algo de racional, deixa de ser visto como uma tentativa de aderir intelectualmente a uma verdade universal. Passa a ser algo de meramente opinativo. Paradoxalmente, a elevação da subjectividade individual ao estatuto de "verdade individual" permite-o. Visto que cada um pode ter "a sua verdade", isso transforma a consciência pessoal numa ferramenta questionável e contestável. É que se a consciência recta fosse a daquela pessoa que aderiu com a sua razão a uma verdade absoluta ou à protecção de um bem ético absoluto, então violá-la seria um absurdo, uma agressão, um erro ético e lógico imediatamente perceptível.
Como, para muitos, já nada há de absoluto ou de intocável, porque todas as opiniões se "democratizaram", porque a opinião do sábio vale tanto como a do burro, então as consciências dos médicos objectores podem ser vistas como "caprichos" que são toleráveis enquanto existirem médicos de "ética flexível" para matar. Se o número de médicos de ética impecável começar a se manifestar contra o aborto, então esses "caprichos" terão que ser restringidos, e as organizações abortófilas entrarão em marcha.
É a própria subjectividade relativista, campeã da pseudo-intelectualidade moderna, que mina o fundamento racional da consciência individual, e a torna presa fácil das violências quotidianas, promissoras de falsos progressos.
Um dia, os médicos vão ser obrigados a matar, sob pena de perderem a sua carteira profissional. Isso é evidente, porque é o caminho natural da derrapagem...
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